sobre a obra Cachaprego
(Anome Livros, 2004)
do poeta e ator Wilmar Silva
Ousadia da Reforma Agrolírica
1/2
/A Crítica /
Quando a linguagem padrão engessa a Fala Poética, é tarefa
urgente do Poeta a criação de uma nova Linguagem, através
de uma Reforma Linguística, com termos ou vocábulos novos.
Exatamente assim ousou James Joyce na prosa, em Ulisses
e Finnegans Wake, e Guimarães Rosa, em contos e no romance
“Grande Sertão: Veredas”. Assim ousou Maiakovski, no Futurismo
russo, assim ousou Ezra Pound na poesia elegíaca, inspirando
os Concretistas, com a exploração da 'palavra-em-si', até a
'palavra-objeto'.
Estes 'reformadores' ousaram uma nova forma de Escrita, que
vem afrontar os padrões ossificados pela mesmice, pelo 'óbvio
ululante', quando de tanto uso as palavras perdem o acesso ao
sensível, tornam-se 'chavões', antigos sentimentos tornam-se
'frases feitas', tudo vulgariza-se, cai no banal. O reformador atua
como Interferência: obriga o 'sistema linguístico' a se re-adaptar,
para abrigar a agudeza da 'afronta' (assim criou-se toda uma
cátedra em torno de Joyce, e em torno de Rosa – interessante-
mente, homens com pós-nomes femininos, o que por se só gera
alguma ambiguidade, deslocamento)
Esta ousadia ocorre muito em 'forasteiros', naqueles que
abandonam uma pátria, uma cida natal, em busca de ares outros
em cidades, países outros. O 'forasteiro' acaba por sentir-se
deslocado, e começa a construir seu 'próprio mundo', quer será
diverso, e será depois digerido pelos que não mudaram, e ficaram
pra trás. É o fenômeno de toda Vanguarda: ir na frente, 'com o facão
na mão' (numa imagem resgatada pelo escritor Vinícius Fernandes
Cardoso) para desbravar (ou para criticar/resenhar) a novidade.
Depois, os outros seguem a sombra dos Desbravadores, os Gênios.
Então, o fenômeno se explicita: Wilmar Silva, o autor de “Cachaprego”
não é belorizontino, mas de Rio Paranaíba (próxima a Araxá), assim
da mesma forma que Carlos Drummond de Andrade era de Itabira,
Juscelino Kubitschek era de Diamantina, Cyro dos Anjos era de
Montes Claros, Pedro Nava era de Juiz de Fora, X era de A, Z era
de B, e até o fim do volume, pois parece que Belo Horizonte só é
mesma agitada pela passagem dos 'forasteiros'. É que os filhos
da terra são mesmo muito acomodados...
(Culpa não apenas de BH! Vejam a História: parece que só
mesmo o estrangeiro, o Ausländer, para agitar a mornidão, a
estagnação dos nativos. Assim, Alexandre Magno não era grego,
era macedônio. Trajano não era romano, mas da Hispânia.
Napoleão não era francês, era da Córsega. Stálin não era russo,
mas da Georgjia. E Hitler não era alemão, mas austríaco. Etc, etc)
A publicação de “Cachaprego”, em si, já é um marco. Não pela
obra apenas, mas pela localização: os jardins internos do Palácio
das Artes. O Quartel-General (perdoem-me o militarismo) dos
Artistas Mineiros do mainstream. O palco dos menestréis e bardos
para o fino ouvido da Burguesia (perdoem-me o marxismo) E com
a presença de vários poetas outsiders, marginais, geograficamente
dispersos (gente de Betim, Contagem, Sete Lagoas, Nova Lima,
e outros interiores) misturados aos poetas da downtown.
Um marco também pela obra, claro. Uma escrita que desestabilizou
muita gente (inclusive este Autor), e ficou suspensa nos olhares
perplexos dos leitores (que viviam assustados com o ANU, e depois
seriam apaziguados com “Estilhaços no Lago de Púrpura”). Tudo
porque a obra de Wilmar Silva não dá tréguas: sempre incomodando,
sempre interferindo, criando mal-estar. Como se somente ele tivesse
a 'nova forma', aquela que vai nos redimir.
Durante uns dois anos eu mesmo pensei assim: o Wilmar quer
arrumar barulho. Todavia o Poeta pode ser performático, mas ele é
sério. Não está aqui brincando, não faz teatrinho (é ator profissional,
aliás), mas Poesia, e quer ser reconhecido. Então com “Estilhaços”,
ele não mais deve a ninguém. Estilhaços é a Obra, visceral como
as anteriores, e lírica como nenhuma das anteriores, talvez com
exceção de “Arranjos de Pássaros e Flores” (outro 'clássico' da
Novilíngua Agrolírica)
/A Obra/
A publicação de “Cachaprego” é o Manifesto da Reforma Agrolírica.
O que é isso? Reforma Agrolírica: mais do que reforma da Expressão
e da Escrita: uma Reforma do Sentido. “Voltemos ao Campo”, eis a
proclamação. Algo de bucólico, de Arcadismo? Anseios dos “Alberto
Caeiros” em nós? Voltemos ao Campo: assim o simbolismo de
“Grande Sertão: Veredas”. Por que? Pois, a cidade está falida. Está
sufocante e sufocada. A cidade fede: gasolina, diesel, urina. A
Reforma Agrolírica é também Reforma Agrária: terra para todos, e
não aquela cova da Vida Severina, “é a parte que te cabe / deste
latifúndio” (J C de Melo Neto)
A Reforma Agrolírica não é apenas textual ou ortográfica. Limitadas
e logo superadas. A Agrolírica é linguística, teatral e fonética. É
sobretudo expressiva. Como fazer a Poesia resgatar a 'frescura' (a
novidade) das primeiras palavras? Como exumar a proto-linguagem?
Como trazer novo vigor aos verbetes e novas expressões aos
chavões? Assim, o Poeta jogou o Super-Ego pela janela, abandonou
as Repressões, e deixou vir à tona as manifestações do Recalcado:
as falas bestiais (no bom sentido!) do Id sub-Egóico. (Perdoem-me
o freudismo)
Primeiro que a noção de Eu (aquela 'positivista') não faz sentido
aqui. O Eu é uma dispersão nos Elementos (Água, Terra, Ar, Fogo)
e uma Pulsão solta, ao mesmo tempo ave de rapina e presa, ao
mesmo tempo carrasco e vítima. (O Eu que desde Baudelaire,
Poe, Dostoiévski, Nietzsche, Freud, Lacan, Sartre, percebemos
como fragmentado, não passando de mera 'ficção' e 'jogo de
máscaras'.) O eu é sem forma e cheio, é sem rumos e ambicioso,
é todo lírico e profundamente árido e cruel.
eu sou corvo sou capimerva para quemia febre nunca amofine
meuencherto de plantas e minha mão plantasndo os raios de
relampagosjiase
...
eu venho de longe de onde nem eu mesmo sei onde fica estas
lonjura nunca vista e mais uma folha dezinco para zincar e folhar
estas
...
sou a faísca fugidia que vemb ramir em meupapelde casa onde abroos braços
Caeiros” em nós? Voltemos ao Campo: assim o simbolismo de
“Grande Sertão: Veredas”. Por que? Pois, a cidade está falida. Está
sufocante e sufocada. A cidade fede: gasolina, diesel, urina. A
Reforma Agrolírica é também Reforma Agrária: terra para todos, e
não aquela cova da Vida Severina, “é a parte que te cabe / deste
latifúndio” (J C de Melo Neto)
A Reforma Agrolírica não é apenas textual ou ortográfica. Limitadas
e logo superadas. A Agrolírica é linguística, teatral e fonética. É
sobretudo expressiva. Como fazer a Poesia resgatar a 'frescura' (a
novidade) das primeiras palavras? Como exumar a proto-linguagem?
Como trazer novo vigor aos verbetes e novas expressões aos
chavões? Assim, o Poeta jogou o Super-Ego pela janela, abandonou
as Repressões, e deixou vir à tona as manifestações do Recalcado:
as falas bestiais (no bom sentido!) do Id sub-Egóico. (Perdoem-me
o freudismo)
Primeiro que a noção de Eu (aquela 'positivista') não faz sentido
aqui. O Eu é uma dispersão nos Elementos (Água, Terra, Ar, Fogo)
e uma Pulsão solta, ao mesmo tempo ave de rapina e presa, ao
mesmo tempo carrasco e vítima. (O Eu que desde Baudelaire,
Poe, Dostoiévski, Nietzsche, Freud, Lacan, Sartre, percebemos
como fragmentado, não passando de mera 'ficção' e 'jogo de
máscaras'.) O eu é sem forma e cheio, é sem rumos e ambicioso,
é todo lírico e profundamente árido e cruel.
eu sou corvo sou capimerva para quemia febre nunca amofine
meuencherto de plantas e minha mão plantasndo os raios de
relampagosjiase
...
eu venho de longe de onde nem eu mesmo sei onde fica estas
lonjura nunca vista e mais uma folha dezinco para zincar e folhar
estas
...
sou a faísca fugidia que vemb ramir em meupapelde casa onde abroos braços
e encontro esporasnos pés e mesmo
quando abroosbracos e abraço onada eestico osdedos ecresem as unhas
em busca de um solem naco e nesgas de febre para adormieser oinvernoqueiberna
umloboervalumcoiotesolto umalontranapuberdade que me anoitece no seio
nop ólen que étodogrude parauma noitada na calada da noite eu escuso no escuro
sou o espantalhoque espantava pássaros e arribados e agora sou espanto na
quando abroosbracos e abraço onada eestico osdedos ecresem as unhas
em busca de um solem naco e nesgas de febre para adormieser oinvernoqueiberna
umloboervalumcoiotesolto umalontranapuberdade que me anoitece no seio
nop ólen que étodogrude parauma noitada na calada da noite eu escuso no escuro
sou o espantalhoque espantava pássaros e arribados e agora sou espanto na
sombra de umespantalho
....
E mil outras descrições personificadas de seres animalescos, de
entes da Natura, soltos e em redemoinho, igual diabo e saci-pererê,
deixando os cabelos em pé e as bocas abertas, a lembrar que a
descida ao intimo de si-mesmo é vertiginosa e mui perigosa (“se eu
....
E mil outras descrições personificadas de seres animalescos, de
entes da Natura, soltos e em redemoinho, igual diabo e saci-pererê,
deixando os cabelos em pé e as bocas abertas, a lembrar que a
descida ao intimo de si-mesmo é vertiginosa e mui perigosa (“se eu
conhecesse a mim mesmo, eu fugiria”, disse Goethe), que a vida é
um sertão pedregoso (“viver é muito perigoso”, “o sertão é dentro da
gente”, “o sertão está em toda parte”, vai dizendo Riobaldo) e que é
uma viagem sem guias – a vida não tem ensaios – a gente já nasce
em cima do palco: escolha então a tua máscara!
Continua...
Por Leonardo de Magalhaens
http://leoliteratura.zip.net/
um sertão pedregoso (“viver é muito perigoso”, “o sertão é dentro da
gente”, “o sertão está em toda parte”, vai dizendo Riobaldo) e que é
uma viagem sem guias – a vida não tem ensaios – a gente já nasce
em cima do palco: escolha então a tua máscara!
Continua...
Por Leonardo de Magalhaens
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