sobre a obra Cachaprego
(Anome Livros, 2004)
do poeta e ator Wilmar Silva
Ousadia da Reforma Agrolírica
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Mas aí o Leitor aponta primeiro a 'estranheza' linguística – do
mesmo jeitinho que fizeram com o Rosa – e deixa de lado o
Chamamento: ousas conhecer a ti mesmo? (coisa que um
certo Sócrates de um certo Platão já tinha dito há mais de
dois mil anos!) A linguagem 'estranha' é apenas um teste: o
primeiro do labirinto (e confesso que eu mesmo – o
Crítico-Mor – estremeci.) A linguagem é afiado espinho de
cactus, é lấmina de abrir peixe, é ferida gotejando sem
socorros. Então, o Leitor dá um salto e berra: que
diabos é isto?
Cansao/ esperoia / aceino / deulgum / meues / liqueido / ardsente /
nsanhaçom caocantante / papaeis / escarevo / dsaesearto / cantochaoa
aégua / maeu / pestge / óipio / diamtante / dianamite / atrauvesso /
carnefecinan / jutasombiram / mesmios / quebraanzoal / ntoviago /
bicosquebrados / gambvás / deumalontra / árovredod / estilhasasdos
eis alguns exemplos de 'estranhezas' que pontuam o texto hermético
(eu adoro esta palavra!) e à espera da pronta intervenção de um
especialista em léxicos – aquele que vai explicar, catalogar e dar
significações engessadas ao verbetes, igualzinho fizeram com o
léxico do Rosa. (Então, precisaremos de um outro 'Wilmar Silva'
e assim por diante...)
Mas creio que tais 'verbetes' nascem de um espontaneísmo da
Escrita, tal uma escrita espontânea dos Surrealistas, muito usada
pelos escritores-datilógrafos (vide um Jack Kerouac ou uma
Clarice Lispector), onde a escrita hipnótica é intensificada pelo
dinamismo dos dedos – sendo a caligrafia mais lenta... No mais,
experimentem 'traduzir' tais 'neologismos' (ou 'neo-grafias') e elas
perderam a 'magia' (do mesmo modo que traduzir “Ulysses” e
“Finnegans Wake”, ou passar “Grande Sertão” para o alemão.
(Quem já leu a correspondência de Rosa com o tradutor alemão
Curt Meyer-Clason? É sensacional) Experimentem:
cansaço / espera / aceno / meus eus / líquido / arde sente (ardente)/
ou
canto - chão / notivago / gambás / árvore-arvoredo / estilhaçados /
o que conseguimos? Somente voltar a 'forma de dicionário'
(aquela forma engessada da palavra, da qual o Poeta a libertará)
e deixar 'tudo como está', sem nenhuma tentativa de 'exumar'
a proto-linguagem, aquela antes da 'burocratização' do mundo.
(O Burocrata é aquele que 'desencanta' o mundo, segundo uma
leitura de Weber)
A presença do corpo e da sexualidade é outra afronta. Desde
seus primeiros versos, o Poeta Wilmar Silva mostra que é um
corpo falante, não um 'figura de linguagem'. Seu corpo não é
uma metáfora, é entranhas, cuspe, suor, cheiro, gestos. Não é
um 'corpo literal' mas um 'corpo de delito', a denunciar quando
a Palavra despreza o Corpo (graças ao nosso Platonismo cristão,
que continua atacando o Corpo. O que muito incomodava
Whitman, que escreveu: “Sagrado é o corpo do homem / e
também sagrado é o corpo da mulher, /sagrado — não importa
de quem seja.” )
E o Poeta esta ciente da sua 'missão' de resgatar o simbolismo
e a validade do Corpo, neste tempo de hipocrisia, outdoor de
lingerie e revistas pornográficas na sala-de-estar. A língua ferina
do Poeta ousa dizer o que anda escondido nas mentes sujas
que andam com poses de santorrões, em linguagem de Tartufo
pra inglês ver.
meu destino é ser um animal felino e provocar a fagulha de olhos
que me olhemantes que os olhos virem gralhas longe das folhas que folham
os bicos deminhasbotas que farfalham atrás de linces a cego faro olho o próprio
olho da fome ondesou arrefecido no cardume do escuro e mais que a fome do mundo
e mais que aboca famélica sou vadio
como se a Poesia fosse mesmo 'missão' (não mais um Sentido que
inventamos para viver, além dos 'imperativos fisiológicos) e o Poeta
mesmo vivesse se espantando com suas ousadias (aliás, sem
'assombro' o Poeta mesmo não escreveria, não recitaria, não
saíria de debaixo das cobertas), como um cão a se surpreender
quando ouve o próprio uivo para a lua,
sou espanto e sombra sou espantado e sou o espantalho na casa delona
onde sou vira-lata e meu latido fosse uma fala e minha fome
tivesse
uma bandeja e minha sede uma talha eu caço meu semblante na
poça
d’água e um fogopara afogar a sede que racha a boca onde procuro
um açude piscoso na lâmpadaque me enxerga de longe através de
árvores as sombras de minhas pálpebras onde moinhos de
sobrancelhas arremessam eu todo calado e meu mundo mudo
eu com minha lanterna
presa dentro de meus olhos e dentro de minha boca uma palavra
impronunciável como o amor
Repito: sem o 'assombro', o Poeta não produz (perdoem-me este
industrialismo), então o Poeta precisa, urgentemente, sempre se
assombrar, se surpreender, se deixar laçar por novidades léxicas
e fonéticas, ou gestação de palavras, ou pretensão de Desbravador,
para que a Novilíngua possa ser concretizada – e, se possível,
publicada. É esta Novilíngua de “Cachaprego” (e de ANU, e de
Arranjos, e de Estilhaços) é que denomino (sem patente ainda)
Agrolírica. E Reforma Agrolírica é a Reforma Agrária proposta por
um ousado Poeta Wilmar Silva, para remodelar nossas sensibildades
urbanas - asfaltadas, concretadas e banalizadas.
Maio/09
Por
Leonardo de Magalhaens
http://leoliteratura.zip.net
Zum Welt-AIDS-Tag
Há 14 anos
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