sobre ESTILHAÇOS NO LAGO DE PÚRPURA (2006)
do Poeta WILMAR SILVA/JOAQUIM PALMEIRA
O Eu-bestial diante do olhar do Outro
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Nas suas metamorfoses algo barrocas (ainda que o Eu-lírico se
declare “medieval”/”medievo” (9), “faço medieval este poema que
diz vitupérios” (5)), o lirismo adquire transtornos imagéticos bestiais,
sendo ave, sendo réptil, sendo fera, formas andromorfas- zoomorfas,
abrigo de invertebrados (numa imagem à la Lautréamont, “tarântula
aninhada nas axilas” (11), besta selvagem sem rumos.
Mutante e delirante, o Eu se polimorfiza em “cavalo com escamas
nas crinas” (1), “pássaro/ de asas nos braços” (2), “um lobo eu faminto”
(3), “eu gambá” (4), “lontra que sou eu” (4), “pássaro azulão que perdi
o bico” (10), “tarântula aninhada nas axilas” (11), “mula que debate
bestas nos olhos” (11), “cavalos selvagens” e “cavalo indomável” (16),
“colibri que diz líricas” (23), “cavala com toda a brida” (29), em
conjunções 'cubistas' de pesadelos os mais bizarros, de um ser
humano às voltas com seu interior animalesco, indomesticado,
indomável, sendo e comunicando-se com todas as bestas-feras do
campo tal um louco Nabucodonosor.
Nessa perda de referencial, diante do outro, matriz de toda a
mestiçagem poética, resta apenas os fragmentos poéticos, os próprios
versos. Estes versos – o corpo do poema – são a ligação possível
entre o Eu e o Outro (“você”), assim em explícitos trechos metalinguísticos,
“sou este almíscar que fenece nos poemas” (4), “faço medieval esse
poema” (5), “enredo uma palavra ou arrefeço meu poema” (8), “eu e
minha fazenda de poemas a seus pés” (19), “um colibri que diz líricas
apenas para você” (23), “um ser // que engendra poemas” (26),
“cavalgar a noite é como cavalgar poemas // que escrevo com sangue
neste lago de veneno/” (28)
Ponte de ligação sobre o abismo que separa os seres, principal-
mente os entes amados, os outros-Eus desejados, o Poema surge
como referencial em si, única fala única solução. Não é um poema
sobre algo, mas é um poema que é algo – confunde Emissor e
Receptor, perde Referenciais, perverte o Código.
Fragilizado pela própria Mensagem, o Eu se perde em carinhos
e ameaças, a esbravejar com um Outro dentro-fora, espelhado, “você
ave de asas indóceis, indócil e fugaz” (15), “você tão febril: eu mais
febril ainda” (17), “você que anda com um pássaro preso” (22), “você
que é letal como uma ponta de punhal” (22), “você que vem com uma
manada de gumes / lâminas" (24), “quem é você que diz lançar meu
corpo sem alma” (30), pois o Outro pode não passar de um espelho
turvo, em águas revoltas, em lago manchado de sangue. “A boca
fala aquilo do que o coração está cheio”, diz um trecho bíblico, e
aqui o Eu está farto de si-mesmo na mesma proporção em que
ama/odeia o Outro.
Quer-se dizer que para o Eu o Outro não é indiferente. O Outro
pode ser o Inferno (como dizia uma peça de Sartre), mas também
pode ser um Paraíso, Abrigo, derradeiro Refúgio. “você com suas íris,
retinas, você com olhos // que me olhem e descubram íris, retinas” (20),
quando ainda resta o olhar do Outro e uma possível compreensão,
“sou este mulo que apenas você há de desvendar” (11)
Ciente de sua imagem – aquela que é sempre no olhar do Outro –
o Eu-lírico em suas andanças de metamorfoses nada mais faz do
que “cavalgar o poema”, nada mais do que estilhaçar-se em versos,
em imagens embaralhadas de si mesmo, possuidor e posse, vítima
e carrasco, face e bofetada, pele e punhal, Narciso e lago espelhado.
Jul/07
por
Leonardo de Magalhaens
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