sábado, 30 de maio de 2009

sobre CACHAPREGO de Wilmar Silva (1/2)



sobre a obra Cachaprego
(Anome Livros, 2004)
do poeta e ator Wilmar Silva


Ousadia da Reforma Agrolírica

1/2

/A Crítica /

Quando a linguagem padrão engessa a Fala Poética, é tarefa
urgente do Poeta a criação de uma nova Linguagem, através
de uma Reforma Linguística, com termos ou vocábulos novos.
Exatamente assim ousou James Joyce na prosa, em Ulisses
e Finnegans Wake, e Guimarães Rosa, em contos e no romance
Grande Sertão: Veredas”. Assim ousou Maiakovski, no Futurismo
russo, assim ousou Ezra Pound na poesia elegíaca, inspirando
os Concretistas, com a exploração da 'palavra-em-si', até a
'palavra-objeto'.

Estes 'reformadores' ousaram uma nova forma de Escrita, que
vem afrontar os padrões ossificados pela mesmice, pelo 'óbvio
ululante', quando de tanto uso as palavras perdem o acesso ao
sensível, tornam-se 'chavões', antigos sentimentos tornam-se
'frases feitas', tudo vulgariza-se, cai no banal. O reformador atua
como Interferência: obriga o 'sistema linguístico' a se re-adaptar,
para abrigar a agudeza da 'afronta' (assim criou-se toda uma
cátedra em torno de Joyce, e em torno de Rosa – interessante-
mente, homens com pós-nomes femininos, o que por se só gera
alguma ambiguidade, deslocamento)

Esta ousadia ocorre muito em 'forasteiros', naqueles que
abandonam uma pátria, uma cida natal, em busca de ares outros
em cidades, países outros. O 'forasteiro' acaba por sentir-se
deslocado, e começa a construir seu 'próprio mundo', quer será
diverso, e será depois digerido pelos que não mudaram, e ficaram
pra trás. É o fenômeno de toda Vanguarda: ir na frente, 'com o facão
na mão' (numa imagem resgatada pelo escritor Vinícius Fernandes
Cardoso) para desbravar (ou para criticar/resenhar) a novidade.
Depois, os outros seguem a sombra dos Desbravadores, os Gênios.

Então, o fenômeno se explicita: Wilmar Silva, o autor de “Cachaprego
não é belorizontino, mas de Rio Paranaíba (próxima a Araxá), assim
da mesma forma que Carlos Drummond de Andrade era de Itabira,
Juscelino Kubitschek era de Diamantina, Cyro dos Anjos era de
Montes Claros, Pedro Nava era de Juiz de Fora, X era de A, Z era
de B, e até o fim do volume, pois parece que Belo Horizonte só é
mesma agitada pela passagem dos 'forasteiros'. É que os filhos
da terra são mesmo muito acomodados...

(Culpa não apenas de BH! Vejam a História: parece que só
mesmo o estrangeiro, o Ausländer, para agitar a mornidão, a
estagnação dos nativos. Assim, Alexandre Magno não era grego,
era macedônio. Trajano não era romano, mas da Hispânia.
Napoleão não era francês, era da Córsega. Stálin não era russo,
mas da Georgjia. E Hitler não era alemão, mas austríaco. Etc, etc)

A publicação de “Cachaprego”, em si, já é um marco. Não pela
obra apenas, mas pela localização: os jardins internos do Palácio
das Artes. O Quartel-General (perdoem-me o militarismo) dos
Artistas Mineiros do mainstream. O palco dos menestréis e bardos
para o fino ouvido da Burguesia (perdoem-me o marxismo) E com
a presença de vários poetas outsiders, marginais, geograficamente
dispersos (gente de Betim, Contagem, Sete Lagoas, Nova Lima,
e outros interiores) misturados aos poetas da downtown.

Um marco também pela obra, claro. Uma escrita que desestabilizou
muita gente (inclusive este Autor), e ficou suspensa nos olhares
perplexos dos leitores (que viviam assustados com o ANU, e depois
seriam apaziguados com “Estilhaços no Lago de Púrpura”). Tudo
porque a obra de Wilmar Silva não dá tréguas: sempre incomodando,
sempre interferindo, criando mal-estar. Como se somente ele tivesse
a 'nova forma', aquela que vai nos redimir.

Durante uns dois anos eu mesmo pensei assim: o Wilmar quer
arrumar barulho. Todavia o Poeta pode ser performático, mas ele é
sério. Não está aqui brincando, não faz teatrinho (é ator profissional,
aliás), mas Poesia, e quer ser reconhecido. Então com “Estilhaços”,
ele não mais deve a ninguém. Estilhaços é a Obra, visceral como
as anteriores, e lírica como nenhuma das anteriores, talvez com
exceção de “Arranjos de Pássaros e Flores” (outro 'clássico' da
Novilíngua Agrolírica)

/A Obra/

A publicação de “Cachaprego” é o Manifesto da Reforma Agrolírica.
O que é isso? Reforma Agrolírica: mais do que reforma da Expressão
e da Escrita: uma Reforma do Sentido. “Voltemos ao Campo”, eis a
proclamação. Algo de bucólico, de Arcadismo? Anseios dos “Alberto
Caeiros” em nós? Voltemos ao Campo: assim o simbolismo de
Grande Sertão: Veredas”. Por que? Pois, a cidade está falida. Está
sufocante e sufocada. A cidade fede: gasolina, diesel, urina. A
Reforma Agrolírica é também Reforma Agrária: terra para todos, e
não aquela cova da Vida Severina, “é a parte que te cabe / deste
latifúndio
” (J C de Melo Neto)

A Reforma Agrolírica não é apenas textual ou ortográfica. Limitadas
e logo superadas. A Agrolírica é linguística, teatral e fonética. É
sobretudo expressiva. Como fazer a Poesia resgatar a 'frescura' (a
novidade) das primeiras palavras? Como exumar a proto-linguagem?
Como trazer novo vigor aos verbetes e novas expressões aos
chavões? Assim, o Poeta jogou o Super-Ego pela janela, abandonou
as Repressões, e deixou vir à tona as manifestações do Recalcado:
as falas bestiais (no bom sentido!) do Id sub-Egóico. (Perdoem-me
o freudismo)

Primeiro que a noção de Eu (aquela 'positivista') não faz sentido
aqui. O Eu é uma dispersão nos Elementos (Água, Terra, Ar, Fogo)
e uma Pulsão solta, ao mesmo tempo ave de rapina e presa, ao
mesmo tempo carrasco e vítima. (O Eu que desde Baudelaire,
Poe, Dostoiévski, Nietzsche, Freud, Lacan, Sartre, percebemos
como fragmentado, não passando de mera 'ficção' e 'jogo de
máscaras'.) O eu é sem forma e cheio, é sem rumos e ambicioso,
é todo lírico e profundamente árido e cruel.


eu sou corvo sou capimerva para quemia febre nunca amofine
meuencherto de plantas e minha mão plantasndo os raios de
relampagosjiase
...

eu venho de longe de onde nem eu mesmo sei onde fica estas
lonjura nunca vista e mais uma folha dezinco para zincar e folhar
estas

...

sou a faísca fugidia que vemb ramir em meupapelde casa onde abroos braços
e encontro esporasnos pés e mesmo
quando abroosbracos e abraço onada eestico osdedos ecresem as unhas
em busca de um solem naco e nesgas de febre para adormieser oinvernoqueiberna
umloboervalumcoiotesolto umalontranapuberdade que me anoitece no seio
nop ólen que étodogrude parauma noitada na calada da noite eu escuso no escuro
sou o espantalhoque espantava pássaros e arribados e agora sou espanto na
sombra de umespantalho


....

E mil outras descrições personificadas de seres animalescos, de
entes da Natura, soltos e em redemoinho, igual diabo e saci-pererê,
deixando os cabelos em pé e as bocas abertas, a lembrar que a
descida ao intimo de si-mesmo é vertiginosa e mui perigosa (“se eu
conhecesse a mim mesmo, eu fugiria”, disse Goethe), que a vida é
um sertão pedregoso (“viver é muito perigoso”, “o sertão é dentro da
gente”, “o sertão está em toda parte
”, vai dizendo Riobaldo) e que é
uma viagem sem guias – a vida não tem ensaios – a gente já nasce
em cima do palco: escolha então a tua máscara!


Continua...

Por Leonardo de Magalhaens
http://leoliteratura.zip.net/

quarta-feira, 27 de maio de 2009

sobre FOTOGRAMAS de Luiz Edmundo Alves (3/3)

sobre a obra FOTOGRAMAS DE AGOSTO
(2a ed,2008)(Anome Livros)
do poeta Luiz Edmundo Alves


Fotografias líricas da saudade


3/3


/a Saudade/


Aqui a poesia mais sentimental está sob a luz do palco.
Como falar de amor depois de Vinícius de Moraes, Cazuza
e Adriana Calcanhoto? Falar de amor é uma das coisas
mais banais hoje em dia. Quando se fala muito em amor
é porque já não se sente o amor. (Existe coisa pior do que
'discutir a relação'? O amor analisado, dissecado, avaliado,
pesado, mortificado)

Mas a Saudade já é outro assunto! É um patrimônio nosso,
do nosso espírito lusitano (por mais que sejamos brasileiros)
o de sentir saudade até do nem vivemos. (Inventar saudades
é o máximo! Eu morro de saudades de Paris, ainda que nunca
tenha ido lá!) Como se a saudade fosse o sentimento lírico
lusitano por excelência (que o diga Camões, Florbela e
Pessoa!)

Mas a saudade traz um ar de tristeza, principalmente nos
idiomas que tratam da 'nostalgia' (vide o inglês e o espanhol),
que deixa um toque 'romântico'. (Lembro de versos de Pablo
Neruda, “Posso escrever os versos mais tristes esta noite. /
Escrever, por exemplo: 'a noite está estrelada, e tiritam,
azuis, os astros, ao longe'
”)

E há alguma saudade mais romântica do que a saudade do
Ser Amado? Pois, Edgar A Poe escreveu que não há tema
mais poético do que as saudades da Amada, que foi-se
embora, que nos deixou, que faleceu em plena beleza.
A morte de uma bela mulher é o tema mais poético do
mundo e aquele capaz de desenvolver tal tema é o amante
sem o seu amor
” (in: “A Filosofia da Composição”)

Por abandono ou por morte, a ausência da Amada tem
movido os poetas-machos ao longo das eras da escrita (e
até antes, imagino) e deixado um rastro de cantigas chorosas
e cartas de suicidas até o sertanejo corno-music hodierno.
Mas falar de amor perdido não é fácil (tem uma 'comédia'
de Shakespeare que trata disso – Love's Labour's Lost – e
um livro de contos do M Kundera – Amores Risíveis – que
são o top!) e pode soar cafona, brega e afetado. Só o talento
pode resgatar o Autor. E Luiz Edmundo Alves foi resgatado.

O homem ama a mulher quando sente por ela uma amálgama
de 1)ternura, 2)desejo e 3)admiração/idealização, ou como
escreveu Kundera, “o amor nasce de uma metáfora' (e a
gente pode fantasiar tanto que se apaixona por alguém
antes até de conhecer a pessoa, vide as paixões via cartas
ou internet), pois amor vai além de 'prazer sensual' ou 'impulso
fisiológico para reproduzir a espécie', muito além de 'atração
física'. E um homem pode dormir com várias mulheres – mas
passar a vida toda apaixonado por uma (por exemplo, a
primeira namorada, aquela que nunca esquecemos)

Nos poemas de “Fotogramas de Agosto” há uma mescla dos
três elementos, fortalecidos pela dor da perda sem remédio,
a morte da Amada. E os os versos se materializam quando
o Poeta busca o consolo no ato da própria escrita,

minha saudade já consegue ser meu poema

quando a ausência se presentifica na escrita da Perda,
sobram sua falta e minha memória”, como se o fato de
lembrar e declarar aliviasse a mente e o coração de um
fardo insuportável. (Por isso escrevemos cartas de amor
que nunca enviamos – para desabafar, para despejar no
papel ), “eu, luiz-liberto- da-falta, / venho aqui projetar minha
saudade”,
no texto se derrama o belo e o amargo desta
medonha faculdade da 'memória aflitiva' (uma simples foto
pode desencadear um processo reativo de proporções
catastróficas) .

Que o diga Proust e Nava! A memória pode fugir ao controle
e, semelhante ao 'sono da razão', sueño de la razón, produzir
monstros (vejam o quadro de Goya em
http://commons. wikimedia. org/wiki/ File:Goya- El_sue%C3% B1o_de_la_ raz%C3%B3n- large.jpg
que assombram o presente do pobre obcecado pela Perda,
alfinetado pela doce-amarga Saudade. “Já não a amo, é
verdade, mas talvez a ame. / É tão curto o amor, e é tão
longo o esquecimento
”, escreveu Pablo Neruda.

minha saudade tem um sol,
e sombras de pára-sóis-da-china


quando vier a primavera, e vier outro dia
outro setembro, outro outubro,
quando outros calendários forem desfolhados,
que reste sempre alguns ml de poesia


E esperamos que ml de poesia sempre sejam destilados
pela pena cubista e imagética do Poeta Luiz Edmundo Alves,
que além de escrever para ele mesmo (como todo bom poeta
egocêntrico), escreve também para nós, Leitores ávidos de
Poesia, e Poesia com P maiúsculo, se não eterna, pelo menos
infinita enquanto dure”. (Pô, que suor!! para escrever esta
crítica!)


abr/mai/09


por
Leonardo de Magalhaens
http://leoliteratura.zip.net


Poemas de Luiz Edmundo Alves em
http://www.germinal iteratura. com.br/luiz_ edmundo_alves. htm


O blog do autor: http://www.tanto. com.br/destaques .htm

sobre FOTOGRAMAS de Luiz Edmundo Alves (2/3)

sobre a obra FOTOGRAMAS DE AGOSTO
(2a ed,2008)(Anome Livros)
do poeta Luiz Edmundo Alves


Fotografias líricas da saudade


2/3


/A Nação/


Tecendo numa mortalha lírica (a palavra eterniza o que
já morreu?) o conceitode Nação (ou vivemos num 'Estado
que não é Nação?
'), a voz poética apresenta suas impressões
da Terra, do Povo, do Naturalismo Indígena, do Misticismo
Tupi, da Civilização Lusitana, do Jeitinho Brasileiro, da
Democracia Racial, ou seja, tudo o que nos empurram
goela-abaixo desde as carteiras escolares. Contudo, numa
visão fragmentada, emotiva, cubista, saltando de uma 'tradição'
a outra (de modo a deixar louco qualquer antropólogo!) de
modo a anunciar : “minha nação descendo o morro”, em vozes
de índios, negros, mulatos, sambistas, políticos, malandros,
guerreiros, músicos, além do impávido 'poeta da nação' (será
o Castro Alves?) com “seu vocabulário bizarro e sua
sensibilidade dos ventos
” para inventar um poema “para
reconstruir na passarela das utopias nacionais
”, uma vez
que os “poetas são desconstrutores”. Adeus àquela
propaganda de “o poeta é a voz da raça” ?

E desconstrução é o que o Autor faz aqui. Em versos livres,
soltos, sem eira nem beira, sem rumos, atirando pratodolado,
sem perdoar figuras históricas e lendas urbanas.

transforma-se a nação
a cada instante. como uma adolescente
de 500 anos, com códigos próprios
de insegurança:
garotos roubam velhinhos à
luz lilás do crepúsculo”


e as imagens cubistas em colagem se sucedem (o Autor é
videomaker) numa colcha de retalhos linguística, em dialetos
afro, em sotaque caipira, em hinos de guerra indígenas, em
samba-enredos, em propagandas comerciais, em jogos-de-
palavras, presas em aliterações, assonâncias, metáforas

a musa de biquini e biquinho
de batom ou blush.
Na tela, bela / boa/ borbulhante.
Lá vem ela, vem outra. Elas,
barbarelas”


e não importa se é Carmen Miranda, Regina Duarte (a
'namoradinha do Brasil'), Vera Fischer, Gisele Bündchen
ou Juliana Paes, não interessa, pois sempre haverá uma
celebridade a rebolar em nome da Beleza Nacional.
Que abre sempre o desfile dos aldeões, dos crentes, dos
heróis, dos excluídos, dos violentados, dos privilegiados, dos
revoltosos, dos mestiços, tudo disposto em fragmentos de
um imenso painel (a lembrar aqueles murais mexicanos,
vejam em http://www.klepsidr a.net/klepsidra6 /muralismo. html ,
http://fbuch. com/murals. htm
e http://www.diegoriv era.com/murals/ index.php ) onde
tudo se confunde, em múltiplas perspectivas de uma
arte cubista.

Um desfile de Macunaímas, Martins Cererê, Zecas Tatu,
Cobras Norato, Geraldos Viramundo, Severinos e Tietas do
Agreste, toda uma fauna de personagens brasileiras que
personificam nossas 'mazelas nacionais' (personas e
chavões que todos nós conhecemos.. .) Rodinhas de capoeira,
famílias sem-terra, cantigas de candomblé, amuletos e patuás,
tudo vai sendo colado num mosaico verbal, entrecortado por
exclamações, pragas, invocações, resmungos, refrões, tudo
porque o Poeta que vê quer entender: “quero entender /
quero entender
”. Mas, aqui, a Arte consegue o êxito de
'descrever', 'testemunhar' .


/as Subtilezas/


Há um poema na 1a parte (digamos assim) que está
deslocado. O Autor que me desculpe. Mas na p. 30 vemos
um poema cheio de subtilezas, onde o Autor (vamos chamá-lo
de 'Luiz') se deixa em comparação com outros entes (irmãos?
parentes? ) Um certo 'Mário' que devota-se à pecuária, um
outro 'Ananias', a especializar em vacas leiteiras, um tal 'Zé',
a lidar com agriculturas, mas por fim, um 'Luiz' que se limita
à cidade e à escrita, sem ganhar um centavo com isso (triste
sina!) e a receber palavras de incentivo (veras ou cínicas),
e colhe uns tapinhas nas costas”.

Ora, esse é o 'espírito', a 'atmosfera', aqui das Subtilezas.
Impressões de poeta, sentimentalismos de poeta, dúvidas
de poeta, emails trocados com uma poeta (Ana Elisa Ribeiro,
conceituadíssima! ), cadernos de poeta, insônias de poeta.
O que (afinal de contas!) é esse lance de ser poeta? É
sentir-se sacudido por 'sentimentos brutais'? É possuir
dedos tão sentimentais”? É sentir a “palpitação salivação
queimação
”?

O que quer que seja ser Poeta é uma incógnita. (Alguém aí
sabe o que é ser astrofísico? Ou explorador-de-cavernas? ) E
somente quem mergulha na Poética (esta benção e maldição!)
sabe do que estamos falando. Ser movido por uma 'paixão
lírica' não é uma vida fácil. Ainda mais que não se sabe que
'paixão' é esta. Afinal, “a paixão é uma panorâmica / do
paraíso / ou do inferno
?”

As lembranças serão algo mais do que impressões saudosas?
Por que alguns fatos marcam mais do que outros? (Quem
se lembra do que comeu semana passada no jantar de
sábado?) Ou as lembranças são invenções nossas para
justificar o 'tempo perdido'? (A menos que o jantar tenha sido
com o homem ou a mulher de nossos desejos) As fotografias
são parte desse desejo de coisificar/ossificar/petrificar o
momento fugidio. (Tanto que as pessoas não viajam mais
sem levar uma câmera – precisam ver com as lentes e flashes)
E as lembranças podem transmutar o passado numa obsessão?

o verso é aflitivo. lembrar é aflitivo.
é aflitivo fugir, aflitivo reencontrar- me
.”

E o que o Poeta não lembra, ele inventa. A Saudade dá um
empurrão.


Continua...


LdeM
http://leoliteratura.zip.net

sábado, 23 de maio de 2009

sobre FOTOGRAMAS de Luiz edmundo alves (1/3)



sobre a obra FOTOGRAMAS DE AGOSTO
(2a ed,2008)(Anome Livros)
do poeta Luiz Edmundo Alves


Fotografias líricas da saudade

A Crítica

A poesia seria uma fotografia de um momento? A fotografia
emotiva, um registro verbal de instantes líricos? Ou tudo
produto da imaginação sem eira nem beira da voz poética?
Afinal, a poesia pretende ser 'eterna', pretende ser levada
à sério, aínda que hoje seja mais um produto fast food, para
ser lido no outdoor, ou no assento de ônibus.

Sem essa pretensão de 'eternidade' o poema não seria mais
que um outdoor, que um anúncio de creme dental, daqueles
'bem bolados' (alguns até mais criativos do que muito poema
por aí...), e perderia a 'aureóla' (aquela mesma que o/a poeta
perdeu, desde os tempos de Baudelaire), sobrando apenas
símbolos gráficos no papel branco/ou/preto, em esmerada
diagramação.

E, convenhamos, a poesia é mais do que 'arquitetura verbal',
é mais do que 'voz lírica num contexto', é uma forma (talvez
uma mais impactantes) de transmitir emoções (antes da
invenção do cinema 3-D) numa tentativa de comunicar (e
saltar por cima do abismo que separa as almas, numa
metáfora de Shakespeare, a qual F Pessoa respondeu num
english sonnet, “O abismo entre as almas não pode ser
transposto
”)

Para receber a comunicação, o leitor precisa de identificação,
de empatia e silêncio, o que seria um tanto complicado caso
estivesse lendo no metrô ou falando ao celular, ou esperando
o lotação na Praça Sete. A poesia que solicita um minuto de
atenção é aquela que exige este momento de atenção – caso
contrário será mais um outdoor 'bem bolado'.


Confesso que li “Fotogramas de Agosto” do poeta baiano-
mineiro Luiz Edmundo Alves, num quarto fechado, a ouvir
Debussy e após desligar o celular. Senão, seria interrompido
antes de ler o primeiro poema. Que aqui trata-se de uma
“apresentação”, coisa manjada em livros de poemas onde
(como diz Makely Ka) o “poeta é uma farsa do poeta”, o poeta
que ser mais que a escrita, ainda mais quando a escrita
pouco vale.

Mas a ironia da 'apresentação' vale o minuto de atenção,
entre acordes de violino e melodias de piano, onde o poeta
confessa que “só existe pelas mãos do poema”. Disse tudo,
a voz lírica não é o Poeta. E a crítica não fala do Poeta (a não
ser que a figura do/a Poeta desperte uma atenção maior que
a escrita dele/a, aí já não é assunto de 'crítica literária', mas
da revista Caras), pois a crítica fala da 'voz lírica', da
personagem que o Poeta 'inventa' quando escreve.

Por mais confessional que seja a obra, a figura social do
Escritor não interessa. Mas o contexto, a cultura, a época,
o texto e o estilo. Obviamente que um biógrafo poderá
completar o seguinte. Mas não preciso ler a biografia de
Edgar A Poe para compartilhar emoções com os poemas do
Autor. Uma vez que a obra vale mais que o Autor. (Depois de
escrever um livro, o Autor pode ir para as ilhas da Oceânia,
ou cair no ostracismo, igualzinho fez o Salinger)

Então o Poeta nasce da 'voz lírica'. Certo. Mas o que é 'voz
lírica'? O narrador do poema, aquela voz que diz algo. Pode
ser o Poeta? Sim, mas aí teríamos que pesquisar Que é o Poeta?
Quem é Luiz Edmundo Alves? Onde nasceu? Como viveu?
Fez faculdade? Foi amado e traído? Não interessa. Isso é
matéria para os Biógrafos. Para a (minha) 'crítica literária',
importa o Texto. (Desculpe-me a tom prolixo, mas é que muitos
ainda não entenderam minha perspectiva)

(As vozes do poeta: depois do poeta da torre-de-marfim, do
poeta maldito, do poeta marginal, do poeta beatnik, agora a
figura do poeta-midiático, autor de poemas-outdoors e
poemas-fast-foods. Até quando vai durar esta banal ingenuidade,
só quem viver verá.)

Afinal, ler um livro é se apropriar do mesmo. Um poema é
ainda mais 'apropriação', pois um poema é o que o Leitor
sentiu ao ler. Não é um monte de letras, mas uma Comunicação
Emotiva. O Poema é um desproporcional estrondo que desperta
o Leitor. O Poema era o que fazia falta e o Leitor nem percebia!
O poema só existe quando pode ser do outro / Quando cabe
na vida do outro
”, escreveu a poeta Elisa Lucinda (no poema
“Penetração do Poema das Sete Faces”), ao reconhecer sua
dívida para com o poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade.
O poema exige empatia (coisa que um outdoor não faz questão,
exceto se o ato levar a uma compra) e reconhecimento (o outdoor,
apenas consumo)


A Obra

Três são as divisões em “Fotogramas de Agosto”, a abordar a
Nação, as Subtilezas e a Saudade. Um lado mais político,
histórico; o segundo, mais impressionista, pessoal, intimista;
e o terceiro, saudosista, elegíaco. Numa colcha de retalho
feita de impressões – daí, os fotogramas – o olhar lírico coletando
momentos e ideias, num conjunto de imagens (para os Biógrafos
uma dica: LEA é videomaker) que geram caleidoscópios emotivos.


continua...
Leonardo de Magalhaens

quarta-feira, 20 de maio de 2009

RIMBAUD - O castigo de Tartufo




um poema de Arthur Rimbaud
a ironizar os hipócritas santarrões
que andam por aí a apontarem os dedos,
enquanto às ocultas acariciam seus pecados...

vou dedicar esta tradução livre ao
Poeta Rogério Salgado, autor do sempre lúcido, áspero,
herético e atualíssimo
QUERMESSES.

A. RIMBAUD


Le Châtiment de Tartufe
O castigo de Tartufo

Atiçando seu coração amoroso
Sob veste negra, feliz, mão enluvada,
Um dia em que seguia, horrivelmente meigo,
Babando fé de sua boca desdentada,

Um dia em que seguia, “Oremos”, - um sacana
Lhe agarrou rudemente sua orelha benzida
E dele jorrou pragas, ao arrancar
A veste negra de sua pele úmida!


Castigo!... Seu hábito está desabotoado,
E o rosário de pecados perdoados
Se desfia dentro, São Tartufo abatido...!

Pois, ele se confessou, rezou, em gemido!
O homem se contenta em puxar seu colarinho...
- Ora! Tartufo estava nu inteirinho!


Trad. livre by LdeM



Le châtiment de Tartufe
Tisonnant, tisonnant son coeur amoureux sous
Sa chaste robe noire, heureux, la main gantée,
Un jour qu'il s'en allait, effroyablement doux,
Jaune, bavant la foi de sa bouche édentée,
Un jour qu'il s'en allait, "Oremus", - un Méchant
Le prit rudement par son oreille benoîte
Et lui jeta des mots affreux, en arrachant
Sa chaste robe noire autour de sa peau moite !
Châtiment !... Ses habits étaient déboutonnés,
Et le long chapelet des péchés pardonnés
S'égrenant dans son coeur, Saint Tartufe était pâle !...
Donc, il se confessait, priait, avec un râle !
L'homme se contenta d'emporter ses rabats...
- Peuh ! Tartufe était nu du haut jusques en bas !


Tartufo é uma personagem de Molière que
Personifica o religioso hipócrita, na peça
Le Tartuffe (1664)

http://pt.wikipedia.org/wiki/Tartufo

sábado, 16 de maio de 2009

Rumo ao Front - Prelúdio e Drama (conto war10)



War10

RUMO AO FRONT – PRELÚDIO E DRAMA


Confinado à minha carteira escolar, recolho meus objetos.
São confusas as lições anotadas no caderno mofado, de
folhas grudadas.

Há um desconforto e um ar tenso na classe. Parece-me ouvir,
ao longo do horizonte, assustadoras trovoadas. Um matraquear
estridente. Os alunos não se concentram nas lições – estão
dispersos, um olhar de medo é compartilhado.

Quem era o demagogo, o ditador, que ousava negar uma
Constituição? E por que as rudes botas gaúchas com esporas?
Quem era esse ao qual papai chamava de ‘fascista’?

Não sei por que estou recolhendo os materiais – terá a aula
findado? Não sei. A professora insiste – escreve uma lição no
quadro-negro – e me obriga a copiar. Mas há um reflexo difuso
sobre a lousa – ou são as lágrimas nos meus olhos? – e desisto.
Com o caderno e a cartilha debaixo do braço, me levanto.

Os colegas percebem. A professora ali ao lado:

- O que é? Vai embora?

- Vou embora mesmo. – um tom agressivo na voz.

- O que aconteceu?

- Vou para casa, vou para a guerra. Meu irmão está lá.

- O seu irmão? – pergunta um colega.

- Aquele que não estuda nem trabalha. Se ele tiver morrido...

Mas deixo a sala, correndo. Não gosto de chorar diante
dos outros.

Nas ruas ouço os estrondos. Varrem as colinas. Clarões
arrepiam o horizonte. Chocantes, estas auroras boreais. Eu
sei o que é. É a guerra.


Rastejando numa casa em escombros – vidros partidos,
paredes em ruínas. Escondendo-me do quê?

Preciso alcançar as linhas revolucionárias. Projéteis tracejam
ao meu redor, explodem nas ruas. Vejo os corpos abandonados,
charcos de sangue. Mãos enrijecidas pediam clemência.
Maldição sobre os governistas!


Estou na frente de batalha, ou bem próximo. Onde está o
meu irmão? Os regimentos de Taubaté estão dispersos. Nós,
os paulistas, desesperados?

E aquelas máquinas voadoras riscando os céus? Preciso
encontrar o Pedro! Mas sei que se sair daqui, se me mostrar,
serei atingido, baleado! Estarei próximo ao inimigo ou indo ao
encontro das trincheiras, onde enlameado está o meu irmão?
Não foi o italiano Giuseppe que apontou Taubaté? A tropa
avançada rumo às montanhas, ele disse. Ou proseava?

A janela se parte, acima da minha cabeça. Agito o chapéu,
cheio de estilhaços. Correndo, avanço para os fundos do casarão.
Entro numa senzala – ou o que sobrou dela. A frente da casa
grande parece desmoronar – tal o estrondo. A artilharia se
aproxima. Amigos ou inimigos? É preciso sair daqui! O cafezal!

Bebo água num balde enferrujado, sobre o poço. O rosto
lavado na água fria. Em breve, outros soldados, aqui matarão
a sede. Não posso espera-los. Não sei quem são.

O cafezal se estende por hectares, mas, ao fundo da sede
da fazenda, vejo um barranco. Puxo a sacola, com as coisas
que trouxera para o meu irmão, e começo a escalada. Lá de
cima poderei observar melhor o movimentar das tropas.

Uma vez lá em cima, vejo do outro lado, lá embaixo. Uma
estrada. Um casal de camponeses acaba de abandonar um
casebre. O homem arrasta um baú. A mulher uma trouxa,
uma grande mala. Nem um burrinho, eles têm!

Procuro não assusta-los com gestos bruscos. Vou descendo
para o outro lado, com calma. Eles agora podem me ver, mas
seguem o caminho, sem se hostilizarem. Não estou de farda.

A tal distância, também, quem saberá distinguir paulista,
fluminense ou mineiro? Diferente, o sangue dos mártires
constitucionalistas? Seguem, os pobres, sem olhares para trás.

Não sei se fiquei meio erguido, e me tornei bom alvo, mas
é então que sou atingido, um rasgo na perna, vou caindo. E o
que eu guardava na mochila, coisas para o meu irmão, na
mochila agora longe de minhas mãos, tudo se espalha pela
grama.

Faces ocultam o céu azul.

Serão amigos ou inimigos?



Jul/02 e dez/04


Leonardo de Magalhaens

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Song Of Myself .52 / Walt WHITMAN






WALT WHITMAN


SONG OF MYSELF


52.


O gavião malhado vem sobre mim a acusar-me de falação
e preguiça.

Também não fui domado, também pouco fácil de traduzir,
solto o meu brado bárbaro sobre os telhados do mundo.

A última nuvem do dia se detém por minha causa,
e lança a minha imagem com as outras, tão real como as
outras nas regiões obscuras,
e me guia para o mistério e as trevas.

Vou embora igual ao ar, a agitar os cabelos brancos ao sol
derramo em redemoinhos a minha carne
e deixo-a flutuar nas ondas enfurecidas.

Eu me planto na lama para crescer, com a relva que eu amo,
quando me quiseres novamente, é só me procurarem sob
a sola de seus sapatos.

Dificilmente saberás que quem eu sou, o que quero dizer,
mas serei saúde para vocês
dando ao vosso sangue pureza e frescor.

Se não me encontrarem logo, paciência,
se eu não estiver num lugar, procurem-me outro,
em algum lugar, estarei à espera.


Tradz. by Leonardo de Magalhaens

Obs. Este é o poema ao qual se refere
a cena de “
Dead Poets Society”,
“my barbaric yawp over the roofs of the world”…


52
The spotted hawk swoops by and accuses me,
he complains of my gab and my loitering.
I too am not a bit tamed, I too am untranslatable,
I sound my barbaric yawp over the roofs of the world.
The last scud of day holds back for me,
It flings my likeness after the rest and true as any
on the shadow'd wilds,
It coaxes me to the vapor and the dusk.
I depart as air, I shake my white locks at the runaway sun,
I effuse my flesh in eddies, and drift it in lacy jags.
I bequeath myself to the dirt to grow from the grass I love,
If you want me again look for me under your boot-soles.
You will hardly know who I am or what I mean,
But I shall be good health to you nevertheless,
And filter and fibre your blood.
Failing to fetch me at first keep encouraged,
Missing me one place search another,
I stop somewhere waiting for you.


O poema SONG OF MYSELF completo
In::: http://www.daypoems.net/poems/1900.html
LdeM

domingo, 10 de maio de 2009

Annabel Lee - Edgar Allan Poe





EDGAR ALLAN POE


ANNABEL LEE


Há muito, muito tempo, existia
num reino junto ao mar,
uma donzela que eu sabia
Annabel Lee se chamar;
Donzela em que outro pensar não se via
do que ser amada e muito amar.

Eu era criança e criança ela também,
num reino junto ao mar,
nos amamos com amor imenso,
Annabel Lee e eu, de tanto amar
com um amor que os alados Serafins
lá no Céu ousaram invejar.

E esta foi a razão de, tempo atrás,
num reino junto ao mar,
de uma nuvem soprar um vento
e a bela Annabel Lee congelar.
Então seus nobres parentes vieram
para de mim a afastar,
para fecharem-na num sepulcro
no reino junto ao mar.

Os anjos, pouco felizes no Céu,
começaram a invejar: -
Sim! - eis aí a razão (todos sabem,
no reino junto ao mar)
de um vento soprar na noite nublada,
e minha Annabel Lee congelar.

Mas nosso amor era mais forte que o amor
daqueles mais antigos
daqueles mais sábios -
e nem os anjos lá nos Céus
nem os demônios no mar,
Não podem mesmo minha alma
da bela Annabel Lee afastar.

Pois a lua nunca brilha, sem trazer-me sonhos
da bela Annabel Lee;
E estrela alguma surge, mas posso sentir o olhar
da bela Annabel Lee;
E assim, noite adentro, deito-me ao lado
de minha querida - minha vida e minha noiva,
no sepulcro junto ao mar -
em seu túmulo junto ao borbulhante mar.


Trad. by Leonardo de Magalhaens



EDGAR ALLAN POE

Annabel Lee
It was many and many a year ago,
In a kingdom by the sea,
That a maiden there lived whom you may know
By the name of Annabel Lee;
And this maiden she lived with no other thought
Than to love and be loved by me.
I was a child and she was a child,
In this kingdom by the sea:
But we loved with a love that was more than love--
I and my Annabel Lee;
With a love that the winged seraphs of heaven
Coveted her and me.
And this was the reason that, long ago,
In this kingdom by the sea,
A wind blew out of a cloud, chilling
My beautiful Annabel Lee;
So that her high-born kinsman came
And bore her away from me,
To shut her up in a sepulchre
In this kingdom by the sea.
The angels, not half so happy in heaven,
Went on envying her and me--
Yes!--that was the reason (as all men know,
In this kingdom by the sea)
That the wind came out of the cloud by night,
Chilling and killing my Annabel Lee.
But our love it was stronger by far than the love
Of those who were older than we--
Of many far wiser than we--
And neither the angels in heaven above,
Nor the demons down under the sea,
Can ever dissever my soul from the soul
Of the beautiful Annabel Lee.
For the moon never beams, without bringing me dreams
Of the beautiful Annabel Lee;
And the stars never rise, but I feel the bright eyes
Of the beautiful Annabel Lee;
And so, all the night-tide, I lie down by the side
Of my darling--my darling--my life and my bride,
In the sepulchre there by the sea,
In her tomb by the sounding sea.
para trilha-sonora
Theatre of Tragedy

sexta-feira, 8 de maio de 2009

2 sonetos de Stéphane Mallarmé





Stéphane Mallarmé


Angoisse/ Angústia

(Je ne viens pas ce soir vaincre ton corps, ô bête)


Não vim esta noite domar teu corpo, ó fera
Que abriga os pecados de um povo, nem cavar
Em teus cabelos impuros a triste tormenta
Sob o incurável tédio que vaza em meu beijar:

Peço o teu leito o pesado sono sem sonhos
Planando sob ignotos véus dos remorsos,
E que possas gozar em enganos medonhos,
Tu que além do nada sabes mais que os mortos:

Pois o Vício, roendo minha nativa nobreza,
Tal como a ti marcou-me de esterilidade,
Mas enquanto teu seio de pedra é habitado

Por um coração que dente algum fere com presa,
Fujo, pálido, caído, dentro em meu sudário,
Tendo medo de morrer pois durmo solitário.

Mai/09


Trad. Livre by Leonardo de Magalhaens



Angoisse

Je ne viens pas ce soir vaincre ton corps, ô bête
En qui vont les péchés d’un peuple, ni creuser
Dans tes cheveux impurs une triste tempête
Sous l’incurable ennui que verse mon baiser:

Je demande à ton lit le lourd sommeil sans songes
Planant sous les rideaux inconnus du remords,
Et que tu peux goûter après tes noirs mensonges,
Toi qui sur le néant en sais plus que les morts:

Car le Vice, rongeant ma native noblesse,
M’a comme toi marqué de sa stérilité,
Mais tandis que ton sein de pierre est habité

Par un coeur que la dent d’aucun crime ne blesse,
Je fuis, pâle, défait, hanté par mon linceul,
Ayant peur de mourir lorsque je couche seul.




Stéphane Mallarmé


(Le vierge, le vivace et le bel aujourd'hui )


O virgem, o vívido e o belo hoje em dia
Vai-nos dar um golpe de asa aloucada
Esse lago esquecido sob a geada
O translúcido gelo dos voos que seguia!

Um Cisne de outrora dele se lembraria
Magnífico mas sem esperar de nada
Por não ter cantado a região de morada
Quando o estéril inverno a luzir entedia.

Todo o seu colo agita a branca agonia
Nesse espaço curto ao pássaro que via
O nega, horror ao solo; as plumas aladas.

Fantasma, que ali deixa sua claridade,
Já imóvel, fria quimera desprezada,
Que veste o Cisne hoje inútil exilado.


Mai/09


Trad. Livre by Leonardo de Magalhaens



Le vierge, le vivace et le bel aujoud'hui
Va-t-il nous déchirer avec un coup d'aile ivre
Ce lac dur oublié que hante sous le givre
Le transparent glacier des vols qui n'ont pas fui!

Un cygne d'autrefois se souvient que c'est lui
Magnifique mais qui sans espoir se délivre
Pour n'avoir pas chanté la region ou vivre
Quand du stérile hiver a resplendi l'ennui.

Tout son col secouera cette blanche agonie
Par l'espace infligée a l'oiseau qui le nie,
Mais non l'horreur du sol où le plumage est pris.

Fantôme qu'à ce lieu son pur éclat assigne,
Il s'immobilise au songe froid de mépris
Que vêt parmi l'exil inutile le Cygne.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

2 sonetos de William Shakespeare...


William Shakespeare


Sonnet XLVI

Meus olho e coração em luta mortal,
Para dividir o ganho de tua visão:
Meus olhos, a meu coração cega teu visual,
Meu coração, a meus olhos a sensação.
Meu coração roga nele tu repouses. -
Uma prisão aos olhos de cristal cega -
Mas o defensor este apelo nega,
E diz nele tua bela figura repouse.
Para decidir é pois convocado
um júri de pensar, atados ao coração;
E o veridito é determinado
Metade ao olhar e parte ao coração:

Assim: meu olho veja teu exterior,
E meu coração teu amor interior.

Mai/09

Trad. Livre by Leonardo de Magalhaens



Sonnet XLVI


Mine eye and heart are at a mortal war,
How to divide the conquest of thy sight;
Mine eye my heart thy picture's sight would bar,
My heart mine eye the freedom of that right.
My heart doth plead that thou in him dost lie,—
A closet never pierc'd with crystal eyes—
But the defendant doth that plea deny,
And says in him thy fair appearance lies.
To side this title is impannelled
A quest of thoughts, all tenants to the heart;
And by their verdict is determined
The clear eye's moiety, and the dear heart's part:

As thus; mine eye's due is thy outward part,
And my heart's right, thy inward love of heart.




SHAKESPEARE


SONETO 116


Não me deixem à união de duas mentes
Aceitar impedimentos. Amor não é
que se altera quando encontra alteração,
ou se inclina para se remover:
Oh, não! É uma marca permanente
que encara a tempestade sem tremer;
É a estrela guia ao barco à deriva,
de valor não sabido, mas a considerar.
Amor não é refém do Tempo, jovial
Em declinante doença a chegar;
Amor não se altera em horas e semanas,
mas suporta tudo até a beira da morte.

Se isto não é erro e se é provado
Nunca escrevi, nem ninguém tem amado.


Trad. Livre by Leonardo de Magalhaens




SONNET CXVI


Let me not to the marriage of true minds
Admit impediments. Love is not love
Which alters when it alteration finds,
Or bends with the remover to remove:
O no! it is an ever-fixed mark
That looks on tempests and is never shaken;
It is the star to every wandering bark,
Whose worth's unknown, although his height be taken.
Love's not Time's fool, though rosy lips and cheeks
Within his bending sickle's compass come:
Love alters not with his brief hours and weeks,
But bears it out even to the edge of doom.

If this be error and upon me proved,
I never writ, nor no man ever loved.


William Shakespeare (1564 - 1616)