segunda-feira, 3 de maio de 2010

sobre "Baladas" de Hilda Hilst



Sobre “Baladas” (1950, 1951, 1955)
(Globo,2003)
os três primeiros livros de poesias
de Hilda Hilst (SP, 1930-2004)

[Para os 80 anos do nascimento da poeta Hilda Hilst]

O Lirismo enquanto Encontro do Eu com o Outro

A questão da Imagem do Poeta parece preocupar os Leitores mais do que os próprios Poemas. A cultura do ler a Biografia e não a Obra tem causado um desserviço a causa da Literatura. 'Ler' o Autor enquanto se deve ler a Obra é 'julgar o livro pela capa', é acreditar numa 'figura' (muitas vezes 'midiática') que se cria em torno do Artista.

O Poeta enquanto Artista sofre com estes vultos que o encobrem, com sua face numa penumbra de enigmas e aventuras. Quem é o Poeta? Uma Pessoa ou um Autor? Por que preocupar-se com a Pessoa enquanto não dedicamos tempo ao prazer (ou desprazer) de ler o fruto de sua Autoria: a Obra?

É fato que cada Poeta recebe, por sua vez, um ou outro 'aposto', a julgar Pessoa e Artista num série de evocações. Se Bilac é o pedante, Augusto dos Anjos é o funéreo, C Drummond de Andrade o gauche; Leminski o irônico, o iconoclasta; J C Melo Neto o áspero, o ríspido; em suma, rótulos (muitas vezes preconceituosos e depreciativos) que 'classificam' a Fala poética e esvaziam sua autenticidade ou originalidade.

Pois bem, em torno da poeta paulista Hilda Hilst criou-se uma imagem de debochada, desbocada, pornógrafa, que ela – em certo sentido – até reforçou – mas esquecem todo um lado a la Cecília Meireles, Henriqueta Lisboa de sua poética. Pensam muitos leitores que a Obra de Hilda Hilst sobrevive no lado B da marginália intelectual por seus meandros sensuais declarados, sua perservidade libidinosa nada sutil, sua ausência de 'recalques'.

Não negamos que há toda uma série de obras que tratam justamente dessa 'libido desenfreada', mas nosso desejo aqui é apresentar o lado lírico da Obra da Autora. “Baladas” é um conjunto de três livros escritos na juventude, digamos, uma primeira fase da autora, aos vinte anos de idade, nos anos 50. São “Presságio – poemas primeiros” (1950), “Balada de Alzira” (1951) e “Balada do festival” (1955), e relançado em 2003 pela Editora Globo.

Se consideramos “Baladas” como uma 'primeira fase', então podemos dizer que há uma segunda fase – muito mais midiática – da autora pornográfica, uma Nelson Rodrigues de saias, algo de existencialista da Moulin Rouge, que envolta na fumaça do cigarro , vem apontar as hipocrisias no nosso belo circo social.

A Poesia Lírica

Concentrados agora em “Baladas”, notamos que o tom lírico é logo percebido deste o título escolhido. A 'balada' é um tipo de poema cantado, ou uma poesia que permite ser cantada, assim ao estilo das Lieder germânicas, ou as cantigas trovadorescas, ou alguns poemas de Vinicius de Moraes (que ele mesmo musicava...)

Ainda que as Lieder tivessem muito de popular, e assim coletivo, Volksgut, os primeiros poetas românticos alemães, nos século 18, criaram uma 'esfera do sujeito' com suas vozes líricas, individualizando as epopeias do coletivo na figura do Eu ensimesmado. Mas tudo a conservar o imagético e o musical. Assim afigura-se as poéticas de Novalis, Heine, Höderlin, Schiller, Goethe, Klopstock, dentre outros.

A poesia lírica como expressão do Subjetivo – como bem delineou Hegel há duzentos anos – como contraponto ao épico objetivo, descritivo, narrativo, coletivo. O lírico enquanto 'expressão da subjetividade', do 'conteúdo subjetivo', fruto de um 'voltar-se para dentro', pois o lirismo nasce de “uma expressão do modo de conceber e de sentir” onde “o poeta não se anula ante o objeto, mas confunde-se com este”.

O estilo Lírico seria um construto de ritmo e imagem em contraste com os modelos clássicos, mais formais, lógicos, pois o lirismo seria muitomais subjetivo – a ponto de Hegel desprezar um certo 'subjetivismo exacerbado' que fragmentava a criação romântica (sem o construto formal dos clássicos). O predomínio do individualista Eu ameaçava desfazer (ser mais que um contraponto a ) o apelo nacionalista (lembrar que justamente a nação alemã se formava no século 19) do coletivo Nós.

O termo 'balada' relembra também o lirismo provençal, trocadoresco, ou sua sucessão e herança. Sendo que na língua portuguesa é referência a “Lírica” de Luís de Camões, mestre dos sonetos sonoros e memoráveis, com a forte influência de clássicos italianos (vejam Petrarca), além de herdeiro da poesia provençal, e da musicalidade trovadoresca.

Aquela triste e leda madrugada,
cheia toda de mágoa e de piedade,
enquanto houver no mundo saudade
quero que seja sempre celebrada.

Ou

Tanto de meu Estado me acho Incerto
que em vivo ardor tremendo estou de frio;
sem causa, juntamente choro e rio,
o mundo todo abarco e nada aperto.

É tudo quanto sinto, um desconcerto;
da alma um fogo me sai, da vista um rio;
agora espero, agora desconfio,
agora desvario, agora acerto.

A primeira voz lírica a ser considerada é a de Safo de Lesbos, séculos VII e VI a C. , que entoava hinos às musas e as mulheres de seu afeto e paixão.

Ditosa que ao teu lado só por ti suspiro!
Quem goza o prazer de te escutar,
quem vê, às vezes, teu doce sorriso.
Nem os deuses felizes o podem igualar.

Sinto um fogo sutil correr de veia em veia
por minha carne, ó suave bem querida,
e no transporte doce que a minha alma enleia
eu sinto asperamente a voz emudecida.

(trad. Joaquim Fontes)

A poesia feminina enquanto intimista, imagética, sinestésica, metafísica, concisa (ou prolixa, depende) é um conceito (ou conjunto de pré-conceitos) formados ao longo de uma tradição ocidental de Lirismo (o que é considerado lírico) como um 'assunto de mulher' (ou 'assunto que as mulheres devem abordar'), enquanto deusas do lar, anjos da família, servas do homem.

Os trovadores que assumiam um “Eu lírico” feminino, nas chamadas “cantigas de amigo”, usavam todo um imaginário sobre o que seria uma 'voz de mulher apaixonada'. E criaram uma verdadeira ficção literária, ainda que belíssima. Afinal, a 'voz da alma apaixonada' era uma abstração do que o ser masculino Bardo imaginava ser uma 'mulher apaixonada'! Quando as mulheres poderiam novamente dizer o que sentiam?

Daí ao voltarmos à leitura de “Baladas” não hesitamos em comparar com as poéticas de Elizabeth Bishop, Marianne Moore, Sylvia Plath, Anne Sexton, Cecília Meireles, Henriqueta Lisboa, Ana César, Gabriela Mistral, Gabriela Llansol, onde o que se costuma chamar 'escrita feminina' nada mais é do que uma vontade de 'com-partilhar' uma emoção do Eu lírico ao Outro (seja 'real' ou 'imaginado') onde a 'confissão' se realiza em mútua 'co-confissão'.

Em toda a Literatura há paralelos (senão para que uma “Literatura Comparada”?) que evidenciam interseções' na pluralidade de Vozes. Se Anne Sexton tem poemas para o pai (vide “45 Mercy Street”) Hilda Hilst dedica “Balada de Alzira” “a meu pai”. Figura paterna que também se apresenta em Marianne Moore, ao lembrar as palavras do pai sobre as visitas, “pessoas superiores nunca fazem visitas demoradas” (My father used to say, /"Superior people never make long visits )

O pai é o primeiro homem da infância feminina, e é um referencial para o descobrimento dos outros homens – os futuros parceiros, amantes, maridos.

Para a Mulher que aguarda – segundo os bons costumes – a vinda daquele (ou daqueles) que poderá ser a 'cara metade' (o homem complementa a mulher, etc) nos tempos futuros – a idealização dos encontros amorosos (ou meramente sexuais...)

Para mim
virão os homens desconhecidos
(p.67)

Lirismo: monólogo do Eu ou diálogo do Eu e Tu ?

A Teoria alega uma Lírica do Eu Lírico que fala de si mesmo, ou seleciona a linguagem, as imagens, de um poema. Mas o Lírico não se resume ao 'subjetivismo exacerbado' como seria a suspeita de Hegel. Sabemos que a voz lírica evoca o Outro (o Leitor, ou o Eu considerado Tu no monólogo, nada além de um diálogo consigo mesmo, as 'representações' do Eu)

Me mataria em março
se não fosse a saudade de ti
e a incerteza de descanso.
Se só eu sobrevivesse quase nula,
inerte como o silêncio:
o verdadeiro silêncio de catedral vazia,
sem santo, sem altar. Só eu mesma.
(p.21)

e

Amargura no dia
amargura nas horas
amargura no céu
depois da chuva,
amargura nas tuas mãos
amargura em todos os teus gestos.

(p. 27)

Não exatamente a 'confissão' mas a fala do Eu lírico que cria identificação com o Outro (no caso, nós, os leitores) por meio da riqueza das imagens – que buscam corresponder (responder junto) as sensações, emoções, num arco-íris de sinestesias.

Brotaram flores
nos meus pés.
E o quotidiano
na minha vida
complicou-se.

Aqui o Eu , mas este não se completa sem o Outro (se não 'real', ao menos 'imaginado'). Algo que ocorre ao Eu precisa ser 'com-partilhado' com o Outro – todo discurso é um co-discurso (ou co-enunciado), até um poema lírico, que julgamos ser 'monológico'. Se assim fosse não se importaria com o 'silêncio' alheio,

Meus pés iriam
com flores andar
sobre o teu silêncio.
(p. 23)

e

Estás ausente. / Vivo e perene
nestes abismos / do pensamento
.
(p. 75)

A necessidade de um interlocutor leva o Eu a se comparar, a criar um discurso de Alteridade – o Outro que não é o Eu, mas poderia ser, ou seria um Eu alternativo, ou um Eu que serve como um espelho em potencial. De qualquer forma, o Eu não está em si, não é meramente um 'subjetivismo exacerbado', mas subsiste na relação Eu-Outro,

Maria vai acabar como eu:
covarde nas decisões,
amante das couss indefinidas
e querendo compreender suicidas.
Maria vai acabar assim sem rumo,
andando por aí, / fazendo versos
e tendo acessos / nostálgicos.
(p. 29)

Esse jogo do Eu-Tu enquanto enunciado vem destruir aquela concepção da fala lírica enquanto expressão subjetivista de um Eu em monólogo – que vive a desabafar e confessar. Se realmente não há um coletivo 'nós' – um coletivo típico de 'herói nacional' da épica – também não há apenas um Eu, mas certamente um híbrido discursivo Eu-Tu,

E imaginamos
cousas absurdas
de realização.
Cousas que não existem
e cujo valor
é o de consistirem
parte da ilusão.
(p. 35)

O Ser Eu-Outro é uma criação do Eu? O Outro que surge para a Voz lírica é uma mera 'idealização'? São questões sempre em aberto. Análises de discurso exaustivas que muitas vezes não saem do lugar... Mas este Tu prova a necessidade do Eu em se confessar a um Outro digno de confiança, um Outro que mantem o Eu 'em equilíbrio', segundo lembramos de um poema de Ana Cristina César (1952-1983), poeta carioca de fim precoce,

Quando entre nós só havia uma carta certa a correspondência completa o trem os trilhos a janela aberta uma certa paisagem sem pedras ou sobressaltos meu salto alto em equilíbrio o copo d’água a espera do café

O Encontro, a fusão do Eu-Tu é tão grande que no momento da Separação, da Ruptura, há um abalo metafísico do Eu que, num lampejo de angústia, pensa assim: “Se o Tu não gosta de mim, então Eu também não gosto” e se precipita no Vazio.

Lirismo para ser cantado

O Lirismo enquanto forma de seduzir e cativar o Outro re-cria o canto das Sereias que afligem um Ulisses. É característica da Poesia Lírica o artifício da musicalidade, mesmo um adorno em poesia não-musicada – se considerarmos que primordialmente a Poesia Lírica era cantada ao som da lira, pelos aedos gregos e, tempos depois, na Idade Média, pelos trovadores . O ritmo, as assonâncias e aliterações, as rimas e a estrutura de métricas vem criar uma rede de signicantes 'cantantes' que tornam a poesia certamente intraduzível – afinal de contas, outro idioma terá outros significantes (outras palavras) que soam diversamente. Daí a dificuldade de traduzir poesia lírica – é necessária a transcriação (vejam os irmãos Campos...)

A necessidade de música é fremente na poesia lírica, sem dúvida. Há um poema de Elizabeth Bishop que se cria a partir dessa confissão, Eu preciso de música,

Há toda uma magia feita de melodia:
Um encanto de repouso, fôlego tranquilo,
E coração frio, entre cores desbotantes
Profundas à calma subaquática do mar,
E sempre a flutuar num poço verde-lunar,
Preso nos braço do ritmo e do sono.

Mas a canção nas Baladas de Hilda Hilst, não exatamente 'musicalidade', é uma percepção da 'música nas coisas', que é audível ao Ser sensível, que encontra música principalmente no Outro, que canta para o Outro,

Canção do mundo
perdida na tua boca.
Canção das mãos
que ficaram na minha cabeça.
Eram tuas e pareciam asas.
(p. 33)

Este cantar pode mesmo ser uma canção, com melodia e partitura. Temos um grande poeta autor de 'baladas': Vinicius de Moraes a explicitar o quão lírico é 'fazer música com as palavras', onde seus poemas exibem fulgurante sonoridade a ponto do próprio autor não hesitar em musicá-los, no clima bon-vivant da Bossa Nova, junto com os músicos Antonio Carlos 'Tom' Jobim e Toquinho.

Canta! canta, porque cantar é a missão do poeta
E dança, porque dançar é o destino da pureza
Faz para os cemitérios e para os lares o teu grande gesto obsceno
Carne morta ou carne viva — toma! Agora falo eu que sou um!
(Balada Feroz)

Esta missão de cantar que perfaz o Poeta (e Cecília Meireles não tem um poema assim? “Eu canto porque o instante existe / e a minha vida está completa./Não sou alegre nem sou triste: / sou poeta.” (Motivo) ) e esta noção é uma percepção do Eu-no-Mundo – estar aqui para tecer versos e enredar poemas. Imagem lírica. Mas será o Poeta necessário? Será que o Mundo espera o advento do Poeta? Ou lamentam a existência dos poetas como as mães lamentam os filhos indesejados?

As mães não querem mais filhos poetas.
A esterilidade dos poemas.
A vida velha que vivemos.
Os homens que nos esperam sem versos.
O amor que não chega.
As horas que não dormimos.
A ilusão que não temos.
As mães não querem mais filhos poetas.
Deram o grito
desesperado
das mães do mundo.
(p. 55)

Se as mães desprezam os filhos 'poetas', a Poeta parece temer os filhos – os poemas – que sua Escrita pode gerar, “Inutilidade das palavras. // Tenho preguiça, / tanta preguiça / pelos filhos que vão nascer.” (p. 49) Porém, adiante, a missão árdua do Poeta ao dar 're-significação' ao Mundo - missão quase impossível em nossa era que 'suspeita da própria Linguagem' – é percebida claramente pela Autora quando elogia a Arte da Escrita enquanto Re-criação dos seres,

As coisas não existem.
O que existe é a ideia
melancólia e suave
que fazemos das coisas.
...
os livros são criaturas.
Cada página um ato de vida,
cada leitura um pouco de alegria
e esta alegria
é igual ao consolo dos homens
quando permanecemos inquietos
em resposta às suas inquietudes.
(pp. 91/92)

Mas poderá a Palavra criar pontes sobre os abismos entre as pessoas? Poderá a Poesia converter-se em eficiente 'pombo-correio' ? Afinal, as Palavras ferem, e somente o silêncio deve ser desfrutado. Quando os amantes falam acabam por esquecer as carícias. Ou falam porque não sabem mais se acariciar... Se as almas não se comunicam, que os corpos se entendam.

Amadíssimo, não fales.
A palavra dos homens desencanta.
Antes os teus olhos de prata
na noite espessa do teu rosto.
Antes o teu gesto de amor
(p. 118)

A missão do Poeta torna-se ainda mais áspera quando a Expressão procura apreender (no sentido de 'prender' mesmo ) o Inexprimível, o impronunciável 'Amor'. O que é isso que une duas pessoas diversas a ponto de tais seres separados (eu e outro) se imaginarem unidos em apenas um (nós)? Afinal, falar do amor não é uma inutilidade que apenas banaliza tão sentimento tão raro? Assim como a 'paixão', o 'desejo', o 'tesão', a 'curiosidade' sensivelmente inferiores ao Amor são cotidianamente confundidos e classificados como amor...

Nós, poetas e amantes
o que sabemos do amor?
Temos o espanto na retina
diante da morte e da beleza.
Somos humanos e frágeis
mas antes de tudo, sós.
(p.127)

Se as palavras mentem, as almas não se encontram, os abismos não são transpostos, somente resta o solipsismo, a solidão, a misantropia? Certamente que, se assim fosse, sequer haveria uma Voz lírica a se despejar em versos a procura de um ouvido outro, o olhar alheio, numa esperança de comunicação. Não haveria Arte, não haveria Literatura, não haveria diálogo. Mesmo o suposto 'monólogo' do Eu lírico é uma voz em busca de diálogo com o Tu, o Outro da fala. Assim, na criação de cada poema, renova as tentativas de erguer uma ponte sobre o abismo.

mar/abr/10

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