sexta-feira, 7 de maio de 2010

sobre "Fluxopoema" de Lecy Pereira Sousa




Sobre o Fluxopoema (2009)
do poeta Lecy Pereira Sousa
(Contagem, MG)

Não há Tempo e Espaço na Poesia, apenas Fluxo

Os conceitos de Tempo e Espaço são para os físicos e os professores de Física. Os pensamentos sobre Tempo e Espaço são para os filósofos, pré-socráticos, platônicos ou cristãos. Pois Tempo e Espaço não tem qualquer validade na Poesia. Liberta de todas estas conceituações, a Fala Poética desafia o Racional com a tentativa de Dizer o Não-Dizível. E dizer tudo-ao-mesmo-tempo-agora.
Para o poeta e pensador Octavio Paz, a Poesia consegue congregar e concentrar num Tempo e Espaço únicos as figuras que germinam e se desprendem das Palavras. São imagens somente existentes – e possíveis – no Poema. Afinal, a Fala Poética vai contra o Racional (no sentido de 'conceitual'), quando aceita contrários, quando evoca contradições, quando ecoa oxímoros. Os poeta do Barroco que o digam, com suas imagens de opostos. Ainda mais que o Barroco desejava não apenas 'expor' os contrários, mas sobretudo, conciliá-los! “Amor é fogo que arde sem se ver” ou “é ferida que dói e não se sente” ou “e na alegria sinta-se tristeza” ou “a firmeza somente na inconstância”...

Em “Fluxopoema”, o poema longo, extenso e radical do poeta e performancer (além de contista , cronista e ensaísta) Lecy Pereira Sousa (o mesmo autor do magistral “Poemaremos sem Fim”, tema de ensaio anterior) encontramos uma Fala Poética que se apodera das palavras dispersando em 'tópicos frasais' com conectivos subjetivamente empregados (isso quando há algum conectivo!) o que permite um maior dinamismo para as palavras – daí o torrencial 'fluxo'.
Mais do que um 'exercício de retórica', o “Fluxopoema” deseja uma abolição da poética do 'compartimento', da estrofe, da métrica, dos cantos, e ao mesmo tempo, aqui e agora, abolir os 'compartimentos' do pensamento, pois tudo se integra numa amplo fluxo do mesmo, tal uma harmonia de disfonias a fruir em fenômenos díspares, a se congregar numa mesmice de pluralidades, não tão 'plurais' assim,

gerações devem tudo ao fluxo sanguíneo

pois

tudo parte de uma trilha sonora única

Sabemos que a 'tradição' do Modernismo é justamente uma 'tradição de rupturas', onde o que há de continuidade é justamente uma des-continuidade, um autor des-dizendo o outro, uma estética des-fazendo a outra, um 'contínuo de des-contínuos' que caracteriza o 'tempo moderno', em criar e destruir, em constante auto-criticar-se. Claro, que os religiosos – aqueles do tempo linear – não suportam tal 'tempo curvado sobre si-mesmo' e pregam fanaticamente o Advento do Messias para libertar-nos de nosso paganismo.

Moderno (modernista?) o Fluxopoema, em seus torvelinos e redemoinhos, figuras e contra-figuras, repetições e enjamblements, desafia uma cognição linear, racional, não aceita 'explicações', não deseja se explicar, aqui o Autor solta tudo de uma vez, uma enxurrada levando os barracos da Mesmice, desabando as favelas da Rotina, numa volúpia do verborrágico contra o Simulacro,

na rotina das cidades tomadas de piche ao chão e de paredes pichadas /
segue o homem prosaico toda vida

Encontramos o Eu lírico disperso entre várias ações que são contraditórias entre si e contraditórias em relação ao próprio ser da ação – querer tudo ao mesmo tempo é não querer realmente nada. Querer ter todas as mulheres é, na verdade, não saber querer uma mulher de verdade. Querer todos os bens é não saber exatamente que bem se deseja. O Ser não quer X não quer Y não quer Z, não deseja, exceto o desejar, um Querer que não é a “Vontade de Poder” (em Nietzsche) mas um Querer que é dado de fora (vide a Propaganda e a Publicidade) onde “julgamos querer o que eles querem que queiramos”. Não compramos apenas um sabonete, compramos sedução. Não compramos um carro, compramos também status social, e belas mulheres. Não compramos um apartamento, compramos um espaço para festas e orgias.

o mundo é uma sequência de ter e não ter / o mundo é uma sequência de ter e não ter / o mundo é uma sequência de ter e não ter /

Um mundo de carência e quase-afetividades, em máscaras sombrias ou coloridas do egoísmo, do egocentrismo, que nos convida ao niilismo e à misantropia (“antes só do que mal acompanhado” ou “Besser allein als in boeser Gemein”) quando não mais acreditamos na ponte sobre o abismo das almas (“O Abismo entre as almas não pode ser transposto”, diz um soneto de Fernando Pessoa) afinal 'relacionar-se' é compartilhar, principalmente, com-paixão, única atitude possível e decente entre seres imperfeitos,

quem disse que sairemos ilesos das relações mútuas?

e quando o acesso ao outro – que vulgarmente denominados 'intimidades' - é um encontro de um Eu único – individual – com um Outro igualmente único – individual – e não apenas outro dado estatístico, ou nome na arquivo de contatos,

o amor é sua boca com língua e céu particular

Como individualizar um Ser – um Ser amado? - num mundo de promessas de encontros e orgasmos? Como sentir a unicidade insubstituível do Outro enquanto Ser Amado? Hoje, troca-se de parceiros na cama, em motéis, em drive-in, como se troca de roupa de baixo, como dizia a minha avó. Não há real 'encontro de almas' quando muito 'encontro de corpos' (às vezes nem, isso! Segundo um famoso psicólogo, sexoterapeuta, acabou-se o 'mito' do orgasmo simultâneo...)
Afinal, vivemos no mundo pleno com seus excessos – todos cuidadosamente descritos desde Álvaros de Campos em seu turbulento “Ode Triunfal” - todas as modalidades das pluralidades das diversidades dos multiculturalismos. Um mundo deixado no 'deserto real' posto que disponível no 'universo virtual', onipresente e onisciente, ao toque de um [enter], na velocidade dos Kb/s, ou Gb/s, ou dados-luz por fibra-óptica (aliás, tudo a depender da 'boa vontade' do seu provedor.....)

todo rock progressivo, todo baião, toda sonata-cantata, toda nota nascida na garganta do tenor, do barítono, do soprano / tudo resvala na letra / a lerdeza ou a velocidade das conexões do mundo em rede/

Os excessos midiáticos prontos a disputar atenção, a exigir devoção, a ameaçar com exclusão social. Nada de novidade, num sistema de exclusão que julgamos 'natural', que achamos 'o melhor dos mundos possíveis', pois já vivemos no 'fim da História' do deslumbrado Fukuyama, arauto do mundo liberal. Mas tudo se repete, após a 'melhor banda de todos os tempos' vem a ... 'melhor banda de todos os tempos' agora!

Certamente por isso o Fluxopoema tematiza o tempo circular em fluxo, em pleno fluir de volta para si mesmo, diverso do tempo linear da Queda-e-Redenção, a espera de um Messias que nos salve de nós mesmos, mas percebemos que

a História se repete

A História é um pesadelo do qual eu tento despertar” disse o Stephen Dedalus, o James Joyce enquanto jovem em “Ulisses”, a lembrar a sucessão de erros e massacres e batalhas vencidas (para uns) e perdidas (para outros), onde o passado assombra a mente dos eus futuros (imagem também recorrente em Marx)

Todo um Mundo de emaranhados e tessituras que assombra o Eu-pensante nas sinestesias dolorosas do existir-tal-uma-coisa-jogada-no-mundo (vide o “Ser-aí”, “Dasein” de Heidegger ou o “être dans le monde” de Sartre), ao atravessar uma 'florestas de símbolos' (“forêts de symboles”) a trombar com 'confusas palavras' (“confuses paroles”) no célebre soneto “Correspondências” de Charles Baudelaire.

Letras compõem tecido único / urdidura recheada de signos / colmeia de saberes difusos /

ou, de repente, tudo não passa de “colagens de um mundo pop” ?

Contudo, todavia, entretanto, em meio a toda a falação neurótica da vida midiática há uma seriedade do Eu lírico que se recompõe – une seus fragmentos – entretece Eu-e-Outro na poesia, cativa nossa cumplicidade,

toda poesia que emerge das folhas secas / toda dor lancinante dizendo: existo

Este é o papel da Poesia: expressão. Expressão do Eu rumo ao Outro. Um documento lírico da solidão e da finitude de um Ser existente. É essa consciência do Eu-Lírico que possibilita a recorrente metalinguagem de Fluxopoema a ponto de explicitar o mesmo como uma modalidade verborrágica de meta-Poema, de poema versejando os limites da Poesia,

todo verso apontando limites / ... essa poesia é um soneto bruto / essa poesia é um verbo atômico / essa poesia é um poema-bomba

e verdadeiramente, Fluxopoema surge como uma detonação no nosso sacrossanto senso-comum de leitores dispersos entre asfaltos e megabytes em andanças a procura de lirismo num mar de poluição visual, olfativa, sensorial, entre outdoors e luzes de néon. Neste mundo cheio de recortes e panfletos jogados sobre os olhares deslumbrados, o que mais pode surgir do que um poema “carente de compreensão”? tal uma poesia num oceano de peças de um imenso quebra-cabeças, o puzzle fundamental do 'consumismo' ou do 'multiculturalismo' ?

Em nosso mundo de 'lance de dados' (tal qual o célebre poema de Mallarmé, “Un coup de dès jamais n'abolira le hasard”) que se desmembra sem 'totalizações' – ainda que sob o 'totalitarismo de Mercado' (“porque o Mercado exige!”) - fragmentado por mil interesses legítimos ou escusos, surdo protestos dos menos favorecidos e dos excluídos, mudo de palavras além dos discursos propagandísticos, se a mensagem e o testemunho do Poeta Lecy Pereira Sousa será chuva oportuna para as flores no asfalto é um dado estatístico que somente o futuro poderá noticiar.

Abr/10

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