domingo, 30 de agosto de 2009

sobre 'as pedras não morrem' - novela de Miriam Mambrini



sobre a novela “as pedras não morrem
(Bom Texto, 2004)
de Miriam Mambrini

A Permanência na Memória


Considerando-se os limites da definição 'novela' como um
romance contido, reduzido, menos extenso que as epopéias
clássicas e os calhamaços do Romantismo, quando o gênero
'novel' pode ser (para os anglo-saxões) o que é 'roman' (para
os demais, de franceses a russos), é de se esperar que quando
o autor diz 'novela' quer modestamente se eximir do 'fardo'
de escrever um 'romance'.

Talvez culpa das novelas televisivas, primeiramente globais,
e depois da concorrência, o leitor imagine que novela é um
emaranhado de personagens e situações, que uma dentro da
outra, uma ao lado da outra, até de forma confusa, faz protelar
o final do enredo, para garantir a audiência e os patrocinadores
do horário nobre. Mas 'novela', em termos literários, é um
'quase romance', um experimento de narração entre o conto
extenso e o romance propriamente dito. Não só em extensão
mas também em complexidade.

O que de forma alguma desmerece a 'novela', pois o fato de
ser conciso marca mais profundamente o leitor do que as
grandes narrativas (quem se lembra de todos os personagens
de “Guerra e Paz”? Ou de todos os lugares e situações de
Moby Dick”?) A novela facilita um entendimento e identificação
sem ser superficial, o que agrada principalmente ao público
jovem (daí a 'literatura infanto-juvenil' ser basicamente
constituída de 'novelas') Um primeiro contato com a Literatura
deve se dar por intermediação do texto mais linear, sem obrigar
o jovem a ler de imediato um “Os Maias”, ou um “Grande Sertão:
Veredas
”.

Todo este prólogo é para apresentar uma leitura da novela “as
pedras não morrem
” da autora Miriam Mambrini, que escreve
com leveza e objetividade, quase para um público jovem, mas
para além destas limitações e rotulações. Visando basicamente
'contar uma história', como muitos, hoje em dia, evitam. Se
perdem em metalinguagens, hesitações e elucubrações, mas
enredo, estória, que é bom, nada! Fiel a uma escrita narrativa
básica, mas lúdica, sedutora, curiosa, a Autora busca conquistar
por uma técnica de 'enredos dentro de enredos'.

O que seria este 'enredo dentro de enredo'? Basicamente, o
fenômeno já descrito pelo italiano Umberto Eco, com múltiplas
exemplificações, quando uma voz narrativa narra sobre si-mesma
e sobre outros, e por sua vez apresenta outra voz narrativa e
assim por diante, igualzinho aquelas 'matrioskas (mãezinhas)
russas', uma boneca sempre contendo uma menor, e outra menor...
Os níveis narrativos se encaixam, distanciados em tempo e espaço,
mas unidos por uma analogia, metáfora, identificação. É quando
uma personagem se identifica com outra, passa a observar a
vivência de outra – e o leitor ao mesmo tempo observa as
vivências de ambas.

Outras obras que usam o recurso da 'obra dentro da obra', em
paralelismo e encaixamento, onde alguém encontra (ou escreve)
um manuscrito/obra que narra uma estória, e este alguém narra
a própria vida enquanto lê a outra obra, e, por sua vez, tudo é
abarcado pela visão do Leitor, são, por exemplo, “A ilustre Casa
de Ramires
”, de Eça de Queiros; “História do Cerco de Lisboa”,
de José Saramago; “O Pêndulo de Foucault”, Umberto Eco; e
também “O dia do Curinga”, J. Gaarder), obras plurinarrativas,
metalinguísticas que recompensam o Leitor dedicado.

Em “as pedras não morrem” temos três níveis narrativos – três
enredos acontecendo – em encaixamento. Temos o jovem Gabriel,
estudante provinciano enfrentando a cidade grande, que, quando
decide comprar um computador, é incentivado a escolher um
modelo já ultrapassado (ainda mais com essa tecnologia
apressadinha, onde mal se acostuma com um modelo de
equipamento já temos outro no mercado...), o velho modelo XT, e
depois de ligar a máquina, descobre um arquivo com o sedutor
nome de “Máscara”.

Já o arquivo “Máscara” parece ser uma espécie de diário de uma
jovem, a Irene, que narra sua vida, principalmente após encontrar,
no quarto de despejo, um baú, com objetos a despertarem todo
um passado, a imagem da avó paterna, falecida em acidente, em
jovem idade. A avó também chamada Irene (“Essa Irene deve ser
minha avó de quem herdei o nome
.”) E sabemos que a jovem Irene
sofre também com a perda recente do pai – ou seja, a morte torna-se
uma espécie de 'personagem' dessa narrativa de ausentes tão
presentes!

Ao tentar 'resgatar' a avó Irene do esquecimento (que é uma
segunda morte) a jovem Irene reconstrói, nas escrita, a vida curta
da falecida, que apagou-se jovem após um acidente até banal em
Dresden, cidade alemã, em 1931. Uma viagem turística que torna-se
tragédia: a gratuidade da fatalidade. A morte do pai, a morte da
mãe do pai: a tão presente ausência dos entes falecidos. Mas Irene
sabe que os mortos somente se mantêm vivos em nossa memória.
(“eles não vivem senão em nós”, escreveu Carlos Drummond de
Andrade, em “Convívio”)


É esta permanência da Memória que interliga as personagens, nos
três níveis espaço-temporais. É um Gabriel que se identifica com
Irene, a jovem, que se identifica com a Irene, a avó, que morreu
jovem. Uma avó que nem chegou a ser a imagem tradicional da
avó: a boa velhinha que nos recebe de braços abertos. Essa perda –
de alguém que nem conhecemos – causa uma angústia imensa na
jovem Irene, que passa a conversar com este 'fantasma' do passado,
corporificado numa máscara mortuária feita de gesso. Irene, de
repente, percebe-se presa a este passado – precisa desesperadamente
reconstruir a vida breve da avó. Indiferente ao conselho materno de
não se prenda ao passado”)

Em nível metalinguístico, temos as várias referências ao ato de
escrever diário, ao lado de citações de Fernando Pessoa (ou mais
precisamente, Ricardo Reis, e seus poemas mórbidos meditativos),
o conhecido 'poeta-fingidor', que usa máscaras (ou heterónimos)
para expressar seus múltiplos Eus (“multipliquei-me para me sentir”
e “pensar em escrever-te é fragmentar-me”), onde a Poesia se
confunde com a Dramaturgia, as várias almas do Poeta soltas e
berrando e filosofando pelo palco da existência! Estas des-persona-
lizações atinge a jovem Irene: ela passa a se identificar tanto com
a avó Irene, que tenta escrever em 1a pessoa, na perspectiva da
falecida. Assim ousa 're-criar' a morta, ressucitando-a (de forma
a libertá-la!) na Escrita.

Esta 're-criação' é o que muito confunde ( e deixa ainda mais
curioso!) o jovem Gabriel, que descobre-se seduzido pela narradora,
ainda que ele comece a pensar que o 'diário' é, na verdade, um
'romance' – o que estamos lendo! - uma mera ficção, “Ela
inventara a história da moça que encontra por acaso a máscara
mortuária da avó
”. Mas Gabriel, ainda que duvidando, não deleta
o arquivo, ao contrário, pensa ainda mais na narradora, “Com raiva
de si mesmo, percebeu que, ficção ou realidade, Irene ainda ocupava
todo o seu pensamento
”) Até que, no final, Gabriel decide conhecer
a Irene 'real', a se confrontar com a realidade e se afastar da Irene
fictícia, 'virtual'.

Diante do 'real' – Gabriel encontra a mãe de Irene - ele descobre
que Irene existe mesmo!, e se casou também (!) com um geólogo,
e viajou também (!) para Dresden – isto é, ela ainda tenta repetir a
vida da avó, de forma a 'redimir' a morte precoce. Morte esta que é
rememorada em versos de poemas de Ricardo Reis, “Tão cedo passa
tudo quanto passa! ... Circunda-te de rosas, ama, bebe E cala. O
mais é nada.” A morte precoce da avó – que morreu jovem, nunca
conheceu a velhice. “Breve o dia, breve o ano, breve tudo.” e “Nada
fica de nada. Nada somos
.” Exceto a memória para os outros. Vide
o caso de Homero, o grego. Mesmo não-existente, existe para
os Leitores.


O confronto entre o vivido e o lembrado, a juventude e a finitude,
é simbolizado pela rosa que logo definha, “Coroai-me de rosas”,
diz o Poeta, a pregar em seguida o Carpe Diem, aproveitar o dia de
hoje, “Mas tal como é, gozemos o momento, Solenes na alegria
levemente, E aguardando a morte Como quem a conhece
.”, pois a
Poesia (e a Filosofia) nada mais é do que o preparar-se para a
Finitude. (De repente, nada há além disso. Só os 'deuses' hão de
saber!)

A obra 'as pedras não morrem' de Miriam Mambrini brilha pela
ausência de pretensão, pela escrita elegante e simples, seduzindo
o Leitor com um enredo ora lírico ora labiríntico, destinado a uma
ampla gama de leitores, de idades várias, classes sociais e épocas,
pois está além de rótulos e delimitações de 'estilo', desejando pura
e simplesmente contar uma história que desperte emoção a educar
nossos pensamentos alienados e anestesiados pela mesmice.



Ago/09



por leonardo de magalhaens

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