sexta-feira, 7 de agosto de 2009

penumbra de bar (conto)



Penumbra de bar


savassi, bh, 29 junho


uma penumbra de bar é o lugar ideal para afogar as mágoas.
Qualquer garçom, qualquer boêmio sabe disso. Óbvio ululante.
Uma meia luz onde se perder, onde viajar em delírios, a
colecionar impressões, de fregueses em conversas a meia voz
e sussurros e promessas veladas sob carícias explícitas, entre
brilhos nos olhos e nos dentes, entre olhadelas e sorrisos,
exibindo no escuro os desejos que o dia escondeu. Óbvio ululante.
Nada mais.

o óbvio não seria a minha presença aqui, já que deveria estar
na faculdade ou a traduzir poesia francesa ou um extenso
romance alemão, mas não. Estou aqui entre bêbados (e eu não
bebo) e a ouvir uma cançoneta do Chico, com esta voz poética
arrastada, sem muita ênfase, mas transbordando de imagens,
devaneios outros. O Chico que é patrimônio nacional. Mesmo
para quem não é da 'malandragem', que não é boêmio (ou já foi,
décadas atrás). Na minha qualidade (ou não) de acadêmico, vivo
entre livros e monografias, decorando conjugações verbais e
pronúncias dialetais, enfrentando de atenção em punho ao
ataque da linguística, da prosódia e afins.

mas o que tudo isso tem em relação com...? Nada. Estou em
devaneios. Para ocupar o tempo, para justificar o momento, para
instaurar o absurdo (um cara escrevendo enquanto outros se beijam,
ou arrotam, ou se despedaçam em gargalhadas) enquanto lá fora
a noite cai, os carros passam, os bandidos assaltam, os policiais
prendem, os meninos de rua morrem de frio ou atropelados, as
amantes atendem os celulares, os motéis exibem novos lençóis,
os gigolôs acompanham as damas da noite, os cidadãos relaxam
sob o chuveiro, se preparam para o jantar, assistem os noticiários
televisivos, esperam as novelas, que as mulheres já comentam,
permitem-se um pequeno cochilo, ou ligam para a filha que está
no intervalo da faculdade, ou atendem a chamada do primo
encrenqueiro, ou do patrão fora da hora, ou do vizinho a reclamar
do escândalo do alarme do carro lá no estacionamento, em suma,
outra noite, que eu não vivo, mas registro. Não escrevo por lazer,
não escrevo para publicação, não escrevo para antologias, nem
para concursos, eu escrevo por necessidade fisiológica.

aqui na mesa de bar, cercado de faces, olhares, sorrisos, melodias,
sambas, tinir de pratos, meia-luz de abajur, meia-cor de quadros,
meia-disposição de ânimo, um roncar de estômago (ainda não jantei,
nem tomei 'chá-da-tarde'), um desconforto na ponta do nariz (deve
ser a gripe no segundo round), o desejo louco de estar em outro
lugar, apenas para desejar estar em outro, para desejar estar em
outro, e assim sem descanso, outro lugar qualquer outro, nunca
contente, jamais satisfeito, sempre pesaroso de vazios, constante
olhar-além, patinando em gelo fino, escorregando no piche,
boiando no mar de faces, sem qualquer rumo além das calçadas
vazias, os bares esfumaçados, os delírios acariciados, as perversões
ocultadas, as paixões aninhadas nos versos sem rima, na prosa
derramada da fala nunca lírica, da permanente impossibilidade do
romântico em nossas vidas, de gestos-palavras-sorriso-caretas
em série, de artigos e corpos à venda, de orgasmos à crédito, de
paraísos artificiais, de ascensões decadentes, de jovens
envelhecidos, e de vovôs calçando adidas, enquanto tantos
atendem ao chamado faústico do flautista midiático atraindo
consumidores, num batalhão de donas-de-casa, funcionários,
estudantes, porteiros, policiais, prostitutas, pivetes, mendigos,
motoristas, empreendedores, camelôs, em suma, uma torrente de
seres em busca de mercadorias, nutrientes, moradias, automóveis,
mobílias, ferramentas, livros, agasalhos, eletrodomésticos, calçados,
constantemente miseráveis e insatisfeitos, pois o consumo não
pode parar, a produção não pode parar, a conta não pode cair no
vermelho, o carro não pode ficar sem gás, o juro não pode abaixar,
a cerveja deve espumar...

-o que o senhor deseja?

é o garçom em prontidão. O poeta recém-chegado eleva a voz:

-o que eu desejo? pode trazer... você tem aí uma virgem, assim de
no máximo uns dezessete? e, de preferência, nua...!



Por Leonardo de Magalhaens


29/30jul/09

Um comentário:

  1. Uma prosa poética que nos permite viajar, experenciar, absorver cada palavra, como um filme que passa em nossas mentes. Eu me vi ali sentado,do um outro lado da mesa, também sem beber, compartilhando da solidão voluntária do poeta. Parabéns, Leo! Como sempre, surpreendente. Um abração, Gil Bertho Lopes

    ResponderExcluir