sábado, 29 de maio de 2010

o navio místico de Antonin Artaud...






Um soneto simbolista de Artaud, com influências

de Baudelaire, Rimbaud e Mallarmé.


Poema para se sentir, imaginar, não para se interpretar...

Antonin Artaud

O navio místico


E será perdido o navio arcaico
Nos mares que banham meus sonhos
E seus imensos mastros serão confusos
Nas brumas d'um céu de bíblia e cânticos.


Um ar sopra, mas não de antigo bucólico,
Misteriosamente meio árvores nuas;
E o navio santo não será vendido
Tal artigo raro aos países exóticos.


Não conhecia o fogo das caves da terra.
Não sabia que Deus, e infindo, sozinho
Separa as ondas gloriosas do Infinito.


O alto de seu gurupés mergulha no Mistério.
Nos topos de seus mastros treme toda noite
A prata mística e pura da Estrela Polar.



Trad. Leonardo de Magalhaens

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Antonin Artaud

Le Navire mystique


Il se sera perdu le navire archaïque
Aux mers où baigneront mes rêves éperdus ;
Et ses immenses mâts se seront confondus
Dans les brouillards d’un ciel de bible et de cantiques.
Un air jouera, mais non d’antique bucolique,
Mystérieusement parmi les arbres nus ;
Et le navire saint n’aura jamais vendu
La très rare denrée aux pays exotiques.
Il ne sait pas les feux des havres de la terre.
Il ne connaît que Dieu, et sans fin, solitaire
Il sépare les flots glorieux de l’infini.
Le bout de son beaupré plonge dans le mystère.
Aux pointes de ses mâts tremble toutes les nuits
L’argent mystique et pur de l’étoile polaire.
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segunda-feira, 24 de maio de 2010

Rimbaud - Minha boêmia / Ma Bohème



Arthur Rimbaud



Ma Bohème (fantasie)

Minha Boêmia (fantasia)


Eu seguia, os punhos nos bolsos rasgados;
Meu paletó assim tornava-se ideal;
Eu seguia sob o céu, Musa! E a ti fiel!
Oh! lá! lá! Que lindos amores tenha sonhado!


Minha única calça tem um furo largo.
- Pequeno-Polegar sonhador, em meu passeio
De rimas. Meu albergue era sob a Ursa maior.
- Minhas estrelas no céu num doce harpejo


E as escuto, sento à margem dos caminhos,
Boas noites de setembro a sentir as gotas
De orvalho à face, tal um vinho forte;


Onde rimando meio às sombras fantásticas
Tal uma lira, eu tirava os elásticos
De meus sapatos feridos, um pé junto ao peito!


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Trad. Leonardo de Magalhaens


Original em http://www.mag4.net/Rimbaud/poesies/Boheme.html
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Para ouvir uma canção romena(!) inspirada no poema

sábado, 22 de maio de 2010

Nós somos os impulsivos - soneto de R M Rilke






Rainer Maria Rilke
(1875-1926)

Sonetos a Orfeu
(I. 22)

Somos os impulsivos.
Mas os passos do tempo,
veja-os nada importantes
no sempre permanente.

Todo esse apressar-se
em breve há-de passar;
então o insistente
há-de nos consagrar.

Jovens, tenham bravura
não na velocidade,
não em testes de voar.

Eis tudo a repousar:
sombra e clarão,
flores e livro.

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Trad. Leonardo de Magalhaens

http://leoleituraescrita.blogspot.com/
http://meucanoneocidental.blogspot.com/

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Die Sonette na Orpheus
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I. XXII

Wir sind die Treibenden.
Aber den Schritt der Zeit,
nehmt ihn als Kleinigkeit
im immer Bleibenden.


Alles das Eilende
wird schon vorüber sein ;
denn das Verweilende
erst weiht uns ein.


Knaben, o werft den Mut
nicht in die Schnelligkeit,
nicht in den Flugversuch.


Alles ist ausgeruht :
Dunkel und Helligkeit,
Blume und Buch.
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Os sonetos online em:
http://www.symbolon.de/downtxt/rilkesonette.htm
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quarta-feira, 19 de maio de 2010

Omnia fluunt de Abgar Renault



ABGAR RENAULT
(1901-1995)

Omnia fluunt (*)

De tempo somos feitos, e acabamos
quando escassa clepsidra seca em nós.
Inescrutavelmente gotejamos
a nossa essência breve, neste a sós

fugirmos entre fugitivos ramos
de horas e dias. Fluidos e sem voz,
escorremos de nós e nos escoamos
sem esperança até a esperada foz.

Ah! interromper-se o fluxo que nos leva,
a água que flui fazer-se imóvel fonte,
parado sonho a vida solta no ar...

Não vermos fosso, muro, fria treva,
e adiarmo-nos além deste horizonte,
sem outrora, num hoje circular.

(Omnia fluunt = tudo flui)

sábado, 15 de maio de 2010

Cantos de Maldoror - de Lautréamont






salut! algumas de minhas traduções de trechos de Maldoror.....

Les Chants de Maldoror
(1868/69; 1874)
Le Comte de Lautréamont
(Isidore Ducasse)

trad. livre: LdeM



Os Cantos de Maldoror (trechos)

Chant Premier / Primeiro Canto


Leitor, é talvez o ódio que tu queiras que eu invoque desde o começo desta obra? Quem te disse que não vais aspirar mais, banhado em inomináveis volúpias, tanto que tu gostas, com tuas narinas orgulhosas, largas e magras, em teu inchado ventre, igual a um tubarão, num ar puro e sombrio, como se tu compreendesses a importância desse ato e a importância não menor de teu apetite legítimo, lentamente e majestosamente, as rubras emanações? Eu te asseguro, elas alegrarão os dois furos informes de teu focinho hediondo, ó monstro, se toda vez tu te aplicas antes a respirar três mil vezes a seguir a consciência maldita do Eterno! Tuas narinas que serão desmesuradamente dilatadas de contentamento inefável, de êxtase imóvel, nem exigirão qualquer coisa de melhor ao espaço assim embalsamado como os perfumes e incensos, pois elas serão saciadas de um prazer completo como os anjos que habitam a magnificiência e a paz dos céus agradáveis.

Lecteur, c'est peut-être la haine que tu veux que j'invoque dans le commencement de cet ouvrage! Qui te ditque tu n'en renifleras pas, baigné dans d'innombrables voluptés, tant que tu voudras, avec tes narines orgueilleuses, larges et maigres, en te renversant deventre, pareil à un requin, dans l'air beau et noir, comme si tu comprenais l'importance de cet acte et l'importance non moindre de ton appétit légitime, lentement et majestueusement, les rouges émanations? Je t'assure, elles réjouiront les deux trous informes de ton museau hideux, ô monstre, si toutefois tu t'appliques auparavant à respirer trois mille fois de suite la conscience maudite del'Éternel! Tes narines, qui seront démesurément dilatées de contentement ineffable, d'extase immobile, ne demanderont pas quelque chose de meilleur à l'espace, devenu embaumé comme de parfums et d'encens; car, elles seront rassasiées d'un bonheur complet, comme les anges qui habitent dans la magnificence et la paix des agréables cieux.

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Há quem escreva à procura de aplausos humanos ao menos de nobres qualidades do coração que a imaginação inventa ou que poderiam ter. Quanto a mim, eu dedico meu gênio a figurar as delícias da crueldade, delícias não passageiras, artificiais, mas que começaram com o homem, e findarão com ele. O gênio não faz mais do que se aliar com a crueldade nas resoluções secretas da Providência? Ou, por que se cruel, não se ter o gênio? Será vista a prova em minhas palavras; e nem é preciso que nos encontremos, se assim preferes... Perdão, parece-me que meus cabelos que estão arrepiados na minha cabeça; mas, não é nada, pois com minha mão eu estou prontamente do jeito que estava antes. Este que canta não pretende que suas pequenas árias sejam ignoradas; ao contrário, ele se orgulha de que os pensamentos arrogantes e mordazes de seu herói sejam os de todos os homens.

Il y en a qui écrivent pour rechercher les applaudissements humains, au moyen de nobles qualités du coeur que l'imagination invente ou qu'ils peuvent avoir. Moi, je fais servir mon génie à peindre les délices de la cruauté! Délices non passagères, artificielles; mais, qui ont commencé avec l'homme, finiront avec lui. Le génie nepeut-il pas s'allier avec la cruauté dans les résolutions secrètes de la Providence? ou, parce qu'on est cruel, nepeut-on pas avoir du génie? On en verra la preuve dans mes paroles; il ne tient qu'à vous de m'écouter, si vous le voulez bien... Pardon, il me semblait que mes cheveux s'étaient dressés sur ma tête; mais, ce n'est rien, car, avec ma main, je suis parvenu facilement à les remettre dans leur première position. Celui qui chante ne prétend pas queses cavatines soient une chose inconnue; au contraire, il se loue de ce que les pensées hautaines et méchantes de son héros soient dans tous les hommes.

Uma soundtrack para ler os poemas
http://www.youtube.com/watch?v=NEfTz112pok
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quarta-feira, 12 de maio de 2010

Correspondências - Charles Baudelaire



Charles Baudelaire



Correspondências



A Natureza é um templo onde vivos pilares

Deixam às vezes sair confusas palavras;

O Homem atravessa florestas de símbolos

Que o observam com olhares familiares.



Como longos ecos de longe se confundem

Dentro de tenebrosa e profunda unidade

Tão vasta como a noite e a claridade,

Os perfumes, as cores, os sons se correspondem.



Perfumes de frescor tal a carne de infantes,

Suaves iguais oboés e verdes iguais os prados,

- E outros, corrompidos, ricos e triunfantes,



Possuindo a expansão de coisas infindas,

Tal qual âmbar, almíscar, benjoim, incenso,

Que cantam o êxtase do espírito e dos sentidos.

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Trad. Livre : Leonardo de Magalhaens

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Charles Baudelaire


Correspondences



Nature is a temple where from living pillars

Sometimes gives forth confused words;

Man passes there through the forests of symbols

Which watch him with familiar glances.



Like long echoes that afar confound,

In a deep and tenebrous unity,

As vast as the night and clarity,

Perfumes, sounds and colours correspond.



Perfumes as cool as children's flesh,

Sweet as oboes, green as meadows,

-And others, corrupted, rich, triumphant,



Hving the expansion of infinite things,

Like amber, musk, bezoin and incense,

Chanting the rapture of spirit and senses.

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Trad. by Leonardo de Magalhaens

http://leoleituraescrita.blogspot.com

http://meucanoneocidental.blogspot.com


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CHARLES BAUDELAIRE

Correspondances



La Nature est un temple de vivants piliers
Laissent parfois sortir de confuses paroles;
L'homme y passe à travers des forêts de symboles
Qui l'observent avec des regards familiers.



Comme de longs échos qui de loin se confondent
Dans une ténébreuse et profonde unité,
Vaste comme la nuit et comme la clarté,
Les parfums, les couleurs et les sons se répondent.



II est des parfums frais comme des chairs d'enfants,
Doux comme les hautbois, verts comme les prairies,
— Et d'autres, corrompus, riches et triomphants,



Ayant l'expansion des choses infinies,
Comme l'ambre, le musc, le benjoin et l'encens,
Qui chantent les transports de l'esprit et des sens.

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para ouvir:

http://www.youtube.com/watch?v=YoOAAGcOd1M




Charles Baudelaire

http://fleursdumal.org/poem/103

sexta-feira, 7 de maio de 2010

sobre "Fluxopoema" de Lecy Pereira Sousa




Sobre o Fluxopoema (2009)
do poeta Lecy Pereira Sousa
(Contagem, MG)

Não há Tempo e Espaço na Poesia, apenas Fluxo

Os conceitos de Tempo e Espaço são para os físicos e os professores de Física. Os pensamentos sobre Tempo e Espaço são para os filósofos, pré-socráticos, platônicos ou cristãos. Pois Tempo e Espaço não tem qualquer validade na Poesia. Liberta de todas estas conceituações, a Fala Poética desafia o Racional com a tentativa de Dizer o Não-Dizível. E dizer tudo-ao-mesmo-tempo-agora.
Para o poeta e pensador Octavio Paz, a Poesia consegue congregar e concentrar num Tempo e Espaço únicos as figuras que germinam e se desprendem das Palavras. São imagens somente existentes – e possíveis – no Poema. Afinal, a Fala Poética vai contra o Racional (no sentido de 'conceitual'), quando aceita contrários, quando evoca contradições, quando ecoa oxímoros. Os poeta do Barroco que o digam, com suas imagens de opostos. Ainda mais que o Barroco desejava não apenas 'expor' os contrários, mas sobretudo, conciliá-los! “Amor é fogo que arde sem se ver” ou “é ferida que dói e não se sente” ou “e na alegria sinta-se tristeza” ou “a firmeza somente na inconstância”...

Em “Fluxopoema”, o poema longo, extenso e radical do poeta e performancer (além de contista , cronista e ensaísta) Lecy Pereira Sousa (o mesmo autor do magistral “Poemaremos sem Fim”, tema de ensaio anterior) encontramos uma Fala Poética que se apodera das palavras dispersando em 'tópicos frasais' com conectivos subjetivamente empregados (isso quando há algum conectivo!) o que permite um maior dinamismo para as palavras – daí o torrencial 'fluxo'.
Mais do que um 'exercício de retórica', o “Fluxopoema” deseja uma abolição da poética do 'compartimento', da estrofe, da métrica, dos cantos, e ao mesmo tempo, aqui e agora, abolir os 'compartimentos' do pensamento, pois tudo se integra numa amplo fluxo do mesmo, tal uma harmonia de disfonias a fruir em fenômenos díspares, a se congregar numa mesmice de pluralidades, não tão 'plurais' assim,

gerações devem tudo ao fluxo sanguíneo

pois

tudo parte de uma trilha sonora única

Sabemos que a 'tradição' do Modernismo é justamente uma 'tradição de rupturas', onde o que há de continuidade é justamente uma des-continuidade, um autor des-dizendo o outro, uma estética des-fazendo a outra, um 'contínuo de des-contínuos' que caracteriza o 'tempo moderno', em criar e destruir, em constante auto-criticar-se. Claro, que os religiosos – aqueles do tempo linear – não suportam tal 'tempo curvado sobre si-mesmo' e pregam fanaticamente o Advento do Messias para libertar-nos de nosso paganismo.

Moderno (modernista?) o Fluxopoema, em seus torvelinos e redemoinhos, figuras e contra-figuras, repetições e enjamblements, desafia uma cognição linear, racional, não aceita 'explicações', não deseja se explicar, aqui o Autor solta tudo de uma vez, uma enxurrada levando os barracos da Mesmice, desabando as favelas da Rotina, numa volúpia do verborrágico contra o Simulacro,

na rotina das cidades tomadas de piche ao chão e de paredes pichadas /
segue o homem prosaico toda vida

Encontramos o Eu lírico disperso entre várias ações que são contraditórias entre si e contraditórias em relação ao próprio ser da ação – querer tudo ao mesmo tempo é não querer realmente nada. Querer ter todas as mulheres é, na verdade, não saber querer uma mulher de verdade. Querer todos os bens é não saber exatamente que bem se deseja. O Ser não quer X não quer Y não quer Z, não deseja, exceto o desejar, um Querer que não é a “Vontade de Poder” (em Nietzsche) mas um Querer que é dado de fora (vide a Propaganda e a Publicidade) onde “julgamos querer o que eles querem que queiramos”. Não compramos apenas um sabonete, compramos sedução. Não compramos um carro, compramos também status social, e belas mulheres. Não compramos um apartamento, compramos um espaço para festas e orgias.

o mundo é uma sequência de ter e não ter / o mundo é uma sequência de ter e não ter / o mundo é uma sequência de ter e não ter /

Um mundo de carência e quase-afetividades, em máscaras sombrias ou coloridas do egoísmo, do egocentrismo, que nos convida ao niilismo e à misantropia (“antes só do que mal acompanhado” ou “Besser allein als in boeser Gemein”) quando não mais acreditamos na ponte sobre o abismo das almas (“O Abismo entre as almas não pode ser transposto”, diz um soneto de Fernando Pessoa) afinal 'relacionar-se' é compartilhar, principalmente, com-paixão, única atitude possível e decente entre seres imperfeitos,

quem disse que sairemos ilesos das relações mútuas?

e quando o acesso ao outro – que vulgarmente denominados 'intimidades' - é um encontro de um Eu único – individual – com um Outro igualmente único – individual – e não apenas outro dado estatístico, ou nome na arquivo de contatos,

o amor é sua boca com língua e céu particular

Como individualizar um Ser – um Ser amado? - num mundo de promessas de encontros e orgasmos? Como sentir a unicidade insubstituível do Outro enquanto Ser Amado? Hoje, troca-se de parceiros na cama, em motéis, em drive-in, como se troca de roupa de baixo, como dizia a minha avó. Não há real 'encontro de almas' quando muito 'encontro de corpos' (às vezes nem, isso! Segundo um famoso psicólogo, sexoterapeuta, acabou-se o 'mito' do orgasmo simultâneo...)
Afinal, vivemos no mundo pleno com seus excessos – todos cuidadosamente descritos desde Álvaros de Campos em seu turbulento “Ode Triunfal” - todas as modalidades das pluralidades das diversidades dos multiculturalismos. Um mundo deixado no 'deserto real' posto que disponível no 'universo virtual', onipresente e onisciente, ao toque de um [enter], na velocidade dos Kb/s, ou Gb/s, ou dados-luz por fibra-óptica (aliás, tudo a depender da 'boa vontade' do seu provedor.....)

todo rock progressivo, todo baião, toda sonata-cantata, toda nota nascida na garganta do tenor, do barítono, do soprano / tudo resvala na letra / a lerdeza ou a velocidade das conexões do mundo em rede/

Os excessos midiáticos prontos a disputar atenção, a exigir devoção, a ameaçar com exclusão social. Nada de novidade, num sistema de exclusão que julgamos 'natural', que achamos 'o melhor dos mundos possíveis', pois já vivemos no 'fim da História' do deslumbrado Fukuyama, arauto do mundo liberal. Mas tudo se repete, após a 'melhor banda de todos os tempos' vem a ... 'melhor banda de todos os tempos' agora!

Certamente por isso o Fluxopoema tematiza o tempo circular em fluxo, em pleno fluir de volta para si mesmo, diverso do tempo linear da Queda-e-Redenção, a espera de um Messias que nos salve de nós mesmos, mas percebemos que

a História se repete

A História é um pesadelo do qual eu tento despertar” disse o Stephen Dedalus, o James Joyce enquanto jovem em “Ulisses”, a lembrar a sucessão de erros e massacres e batalhas vencidas (para uns) e perdidas (para outros), onde o passado assombra a mente dos eus futuros (imagem também recorrente em Marx)

Todo um Mundo de emaranhados e tessituras que assombra o Eu-pensante nas sinestesias dolorosas do existir-tal-uma-coisa-jogada-no-mundo (vide o “Ser-aí”, “Dasein” de Heidegger ou o “être dans le monde” de Sartre), ao atravessar uma 'florestas de símbolos' (“forêts de symboles”) a trombar com 'confusas palavras' (“confuses paroles”) no célebre soneto “Correspondências” de Charles Baudelaire.

Letras compõem tecido único / urdidura recheada de signos / colmeia de saberes difusos /

ou, de repente, tudo não passa de “colagens de um mundo pop” ?

Contudo, todavia, entretanto, em meio a toda a falação neurótica da vida midiática há uma seriedade do Eu lírico que se recompõe – une seus fragmentos – entretece Eu-e-Outro na poesia, cativa nossa cumplicidade,

toda poesia que emerge das folhas secas / toda dor lancinante dizendo: existo

Este é o papel da Poesia: expressão. Expressão do Eu rumo ao Outro. Um documento lírico da solidão e da finitude de um Ser existente. É essa consciência do Eu-Lírico que possibilita a recorrente metalinguagem de Fluxopoema a ponto de explicitar o mesmo como uma modalidade verborrágica de meta-Poema, de poema versejando os limites da Poesia,

todo verso apontando limites / ... essa poesia é um soneto bruto / essa poesia é um verbo atômico / essa poesia é um poema-bomba

e verdadeiramente, Fluxopoema surge como uma detonação no nosso sacrossanto senso-comum de leitores dispersos entre asfaltos e megabytes em andanças a procura de lirismo num mar de poluição visual, olfativa, sensorial, entre outdoors e luzes de néon. Neste mundo cheio de recortes e panfletos jogados sobre os olhares deslumbrados, o que mais pode surgir do que um poema “carente de compreensão”? tal uma poesia num oceano de peças de um imenso quebra-cabeças, o puzzle fundamental do 'consumismo' ou do 'multiculturalismo' ?

Em nosso mundo de 'lance de dados' (tal qual o célebre poema de Mallarmé, “Un coup de dès jamais n'abolira le hasard”) que se desmembra sem 'totalizações' – ainda que sob o 'totalitarismo de Mercado' (“porque o Mercado exige!”) - fragmentado por mil interesses legítimos ou escusos, surdo protestos dos menos favorecidos e dos excluídos, mudo de palavras além dos discursos propagandísticos, se a mensagem e o testemunho do Poeta Lecy Pereira Sousa será chuva oportuna para as flores no asfalto é um dado estatístico que somente o futuro poderá noticiar.

Abr/10

segunda-feira, 3 de maio de 2010

sobre "Baladas" de Hilda Hilst



Sobre “Baladas” (1950, 1951, 1955)
(Globo,2003)
os três primeiros livros de poesias
de Hilda Hilst (SP, 1930-2004)

[Para os 80 anos do nascimento da poeta Hilda Hilst]

O Lirismo enquanto Encontro do Eu com o Outro

A questão da Imagem do Poeta parece preocupar os Leitores mais do que os próprios Poemas. A cultura do ler a Biografia e não a Obra tem causado um desserviço a causa da Literatura. 'Ler' o Autor enquanto se deve ler a Obra é 'julgar o livro pela capa', é acreditar numa 'figura' (muitas vezes 'midiática') que se cria em torno do Artista.

O Poeta enquanto Artista sofre com estes vultos que o encobrem, com sua face numa penumbra de enigmas e aventuras. Quem é o Poeta? Uma Pessoa ou um Autor? Por que preocupar-se com a Pessoa enquanto não dedicamos tempo ao prazer (ou desprazer) de ler o fruto de sua Autoria: a Obra?

É fato que cada Poeta recebe, por sua vez, um ou outro 'aposto', a julgar Pessoa e Artista num série de evocações. Se Bilac é o pedante, Augusto dos Anjos é o funéreo, C Drummond de Andrade o gauche; Leminski o irônico, o iconoclasta; J C Melo Neto o áspero, o ríspido; em suma, rótulos (muitas vezes preconceituosos e depreciativos) que 'classificam' a Fala poética e esvaziam sua autenticidade ou originalidade.

Pois bem, em torno da poeta paulista Hilda Hilst criou-se uma imagem de debochada, desbocada, pornógrafa, que ela – em certo sentido – até reforçou – mas esquecem todo um lado a la Cecília Meireles, Henriqueta Lisboa de sua poética. Pensam muitos leitores que a Obra de Hilda Hilst sobrevive no lado B da marginália intelectual por seus meandros sensuais declarados, sua perservidade libidinosa nada sutil, sua ausência de 'recalques'.

Não negamos que há toda uma série de obras que tratam justamente dessa 'libido desenfreada', mas nosso desejo aqui é apresentar o lado lírico da Obra da Autora. “Baladas” é um conjunto de três livros escritos na juventude, digamos, uma primeira fase da autora, aos vinte anos de idade, nos anos 50. São “Presságio – poemas primeiros” (1950), “Balada de Alzira” (1951) e “Balada do festival” (1955), e relançado em 2003 pela Editora Globo.

Se consideramos “Baladas” como uma 'primeira fase', então podemos dizer que há uma segunda fase – muito mais midiática – da autora pornográfica, uma Nelson Rodrigues de saias, algo de existencialista da Moulin Rouge, que envolta na fumaça do cigarro , vem apontar as hipocrisias no nosso belo circo social.

A Poesia Lírica

Concentrados agora em “Baladas”, notamos que o tom lírico é logo percebido deste o título escolhido. A 'balada' é um tipo de poema cantado, ou uma poesia que permite ser cantada, assim ao estilo das Lieder germânicas, ou as cantigas trovadorescas, ou alguns poemas de Vinicius de Moraes (que ele mesmo musicava...)

Ainda que as Lieder tivessem muito de popular, e assim coletivo, Volksgut, os primeiros poetas românticos alemães, nos século 18, criaram uma 'esfera do sujeito' com suas vozes líricas, individualizando as epopeias do coletivo na figura do Eu ensimesmado. Mas tudo a conservar o imagético e o musical. Assim afigura-se as poéticas de Novalis, Heine, Höderlin, Schiller, Goethe, Klopstock, dentre outros.

A poesia lírica como expressão do Subjetivo – como bem delineou Hegel há duzentos anos – como contraponto ao épico objetivo, descritivo, narrativo, coletivo. O lírico enquanto 'expressão da subjetividade', do 'conteúdo subjetivo', fruto de um 'voltar-se para dentro', pois o lirismo nasce de “uma expressão do modo de conceber e de sentir” onde “o poeta não se anula ante o objeto, mas confunde-se com este”.

O estilo Lírico seria um construto de ritmo e imagem em contraste com os modelos clássicos, mais formais, lógicos, pois o lirismo seria muitomais subjetivo – a ponto de Hegel desprezar um certo 'subjetivismo exacerbado' que fragmentava a criação romântica (sem o construto formal dos clássicos). O predomínio do individualista Eu ameaçava desfazer (ser mais que um contraponto a ) o apelo nacionalista (lembrar que justamente a nação alemã se formava no século 19) do coletivo Nós.

O termo 'balada' relembra também o lirismo provençal, trocadoresco, ou sua sucessão e herança. Sendo que na língua portuguesa é referência a “Lírica” de Luís de Camões, mestre dos sonetos sonoros e memoráveis, com a forte influência de clássicos italianos (vejam Petrarca), além de herdeiro da poesia provençal, e da musicalidade trovadoresca.

Aquela triste e leda madrugada,
cheia toda de mágoa e de piedade,
enquanto houver no mundo saudade
quero que seja sempre celebrada.

Ou

Tanto de meu Estado me acho Incerto
que em vivo ardor tremendo estou de frio;
sem causa, juntamente choro e rio,
o mundo todo abarco e nada aperto.

É tudo quanto sinto, um desconcerto;
da alma um fogo me sai, da vista um rio;
agora espero, agora desconfio,
agora desvario, agora acerto.

A primeira voz lírica a ser considerada é a de Safo de Lesbos, séculos VII e VI a C. , que entoava hinos às musas e as mulheres de seu afeto e paixão.

Ditosa que ao teu lado só por ti suspiro!
Quem goza o prazer de te escutar,
quem vê, às vezes, teu doce sorriso.
Nem os deuses felizes o podem igualar.

Sinto um fogo sutil correr de veia em veia
por minha carne, ó suave bem querida,
e no transporte doce que a minha alma enleia
eu sinto asperamente a voz emudecida.

(trad. Joaquim Fontes)

A poesia feminina enquanto intimista, imagética, sinestésica, metafísica, concisa (ou prolixa, depende) é um conceito (ou conjunto de pré-conceitos) formados ao longo de uma tradição ocidental de Lirismo (o que é considerado lírico) como um 'assunto de mulher' (ou 'assunto que as mulheres devem abordar'), enquanto deusas do lar, anjos da família, servas do homem.

Os trovadores que assumiam um “Eu lírico” feminino, nas chamadas “cantigas de amigo”, usavam todo um imaginário sobre o que seria uma 'voz de mulher apaixonada'. E criaram uma verdadeira ficção literária, ainda que belíssima. Afinal, a 'voz da alma apaixonada' era uma abstração do que o ser masculino Bardo imaginava ser uma 'mulher apaixonada'! Quando as mulheres poderiam novamente dizer o que sentiam?

Daí ao voltarmos à leitura de “Baladas” não hesitamos em comparar com as poéticas de Elizabeth Bishop, Marianne Moore, Sylvia Plath, Anne Sexton, Cecília Meireles, Henriqueta Lisboa, Ana César, Gabriela Mistral, Gabriela Llansol, onde o que se costuma chamar 'escrita feminina' nada mais é do que uma vontade de 'com-partilhar' uma emoção do Eu lírico ao Outro (seja 'real' ou 'imaginado') onde a 'confissão' se realiza em mútua 'co-confissão'.

Em toda a Literatura há paralelos (senão para que uma “Literatura Comparada”?) que evidenciam interseções' na pluralidade de Vozes. Se Anne Sexton tem poemas para o pai (vide “45 Mercy Street”) Hilda Hilst dedica “Balada de Alzira” “a meu pai”. Figura paterna que também se apresenta em Marianne Moore, ao lembrar as palavras do pai sobre as visitas, “pessoas superiores nunca fazem visitas demoradas” (My father used to say, /"Superior people never make long visits )

O pai é o primeiro homem da infância feminina, e é um referencial para o descobrimento dos outros homens – os futuros parceiros, amantes, maridos.

Para a Mulher que aguarda – segundo os bons costumes – a vinda daquele (ou daqueles) que poderá ser a 'cara metade' (o homem complementa a mulher, etc) nos tempos futuros – a idealização dos encontros amorosos (ou meramente sexuais...)

Para mim
virão os homens desconhecidos
(p.67)

Lirismo: monólogo do Eu ou diálogo do Eu e Tu ?

A Teoria alega uma Lírica do Eu Lírico que fala de si mesmo, ou seleciona a linguagem, as imagens, de um poema. Mas o Lírico não se resume ao 'subjetivismo exacerbado' como seria a suspeita de Hegel. Sabemos que a voz lírica evoca o Outro (o Leitor, ou o Eu considerado Tu no monólogo, nada além de um diálogo consigo mesmo, as 'representações' do Eu)

Me mataria em março
se não fosse a saudade de ti
e a incerteza de descanso.
Se só eu sobrevivesse quase nula,
inerte como o silêncio:
o verdadeiro silêncio de catedral vazia,
sem santo, sem altar. Só eu mesma.
(p.21)

e

Amargura no dia
amargura nas horas
amargura no céu
depois da chuva,
amargura nas tuas mãos
amargura em todos os teus gestos.

(p. 27)

Não exatamente a 'confissão' mas a fala do Eu lírico que cria identificação com o Outro (no caso, nós, os leitores) por meio da riqueza das imagens – que buscam corresponder (responder junto) as sensações, emoções, num arco-íris de sinestesias.

Brotaram flores
nos meus pés.
E o quotidiano
na minha vida
complicou-se.

Aqui o Eu , mas este não se completa sem o Outro (se não 'real', ao menos 'imaginado'). Algo que ocorre ao Eu precisa ser 'com-partilhado' com o Outro – todo discurso é um co-discurso (ou co-enunciado), até um poema lírico, que julgamos ser 'monológico'. Se assim fosse não se importaria com o 'silêncio' alheio,

Meus pés iriam
com flores andar
sobre o teu silêncio.
(p. 23)

e

Estás ausente. / Vivo e perene
nestes abismos / do pensamento
.
(p. 75)

A necessidade de um interlocutor leva o Eu a se comparar, a criar um discurso de Alteridade – o Outro que não é o Eu, mas poderia ser, ou seria um Eu alternativo, ou um Eu que serve como um espelho em potencial. De qualquer forma, o Eu não está em si, não é meramente um 'subjetivismo exacerbado', mas subsiste na relação Eu-Outro,

Maria vai acabar como eu:
covarde nas decisões,
amante das couss indefinidas
e querendo compreender suicidas.
Maria vai acabar assim sem rumo,
andando por aí, / fazendo versos
e tendo acessos / nostálgicos.
(p. 29)

Esse jogo do Eu-Tu enquanto enunciado vem destruir aquela concepção da fala lírica enquanto expressão subjetivista de um Eu em monólogo – que vive a desabafar e confessar. Se realmente não há um coletivo 'nós' – um coletivo típico de 'herói nacional' da épica – também não há apenas um Eu, mas certamente um híbrido discursivo Eu-Tu,

E imaginamos
cousas absurdas
de realização.
Cousas que não existem
e cujo valor
é o de consistirem
parte da ilusão.
(p. 35)

O Ser Eu-Outro é uma criação do Eu? O Outro que surge para a Voz lírica é uma mera 'idealização'? São questões sempre em aberto. Análises de discurso exaustivas que muitas vezes não saem do lugar... Mas este Tu prova a necessidade do Eu em se confessar a um Outro digno de confiança, um Outro que mantem o Eu 'em equilíbrio', segundo lembramos de um poema de Ana Cristina César (1952-1983), poeta carioca de fim precoce,

Quando entre nós só havia uma carta certa a correspondência completa o trem os trilhos a janela aberta uma certa paisagem sem pedras ou sobressaltos meu salto alto em equilíbrio o copo d’água a espera do café

O Encontro, a fusão do Eu-Tu é tão grande que no momento da Separação, da Ruptura, há um abalo metafísico do Eu que, num lampejo de angústia, pensa assim: “Se o Tu não gosta de mim, então Eu também não gosto” e se precipita no Vazio.

Lirismo para ser cantado

O Lirismo enquanto forma de seduzir e cativar o Outro re-cria o canto das Sereias que afligem um Ulisses. É característica da Poesia Lírica o artifício da musicalidade, mesmo um adorno em poesia não-musicada – se considerarmos que primordialmente a Poesia Lírica era cantada ao som da lira, pelos aedos gregos e, tempos depois, na Idade Média, pelos trovadores . O ritmo, as assonâncias e aliterações, as rimas e a estrutura de métricas vem criar uma rede de signicantes 'cantantes' que tornam a poesia certamente intraduzível – afinal de contas, outro idioma terá outros significantes (outras palavras) que soam diversamente. Daí a dificuldade de traduzir poesia lírica – é necessária a transcriação (vejam os irmãos Campos...)

A necessidade de música é fremente na poesia lírica, sem dúvida. Há um poema de Elizabeth Bishop que se cria a partir dessa confissão, Eu preciso de música,

Há toda uma magia feita de melodia:
Um encanto de repouso, fôlego tranquilo,
E coração frio, entre cores desbotantes
Profundas à calma subaquática do mar,
E sempre a flutuar num poço verde-lunar,
Preso nos braço do ritmo e do sono.

Mas a canção nas Baladas de Hilda Hilst, não exatamente 'musicalidade', é uma percepção da 'música nas coisas', que é audível ao Ser sensível, que encontra música principalmente no Outro, que canta para o Outro,

Canção do mundo
perdida na tua boca.
Canção das mãos
que ficaram na minha cabeça.
Eram tuas e pareciam asas.
(p. 33)

Este cantar pode mesmo ser uma canção, com melodia e partitura. Temos um grande poeta autor de 'baladas': Vinicius de Moraes a explicitar o quão lírico é 'fazer música com as palavras', onde seus poemas exibem fulgurante sonoridade a ponto do próprio autor não hesitar em musicá-los, no clima bon-vivant da Bossa Nova, junto com os músicos Antonio Carlos 'Tom' Jobim e Toquinho.

Canta! canta, porque cantar é a missão do poeta
E dança, porque dançar é o destino da pureza
Faz para os cemitérios e para os lares o teu grande gesto obsceno
Carne morta ou carne viva — toma! Agora falo eu que sou um!
(Balada Feroz)

Esta missão de cantar que perfaz o Poeta (e Cecília Meireles não tem um poema assim? “Eu canto porque o instante existe / e a minha vida está completa./Não sou alegre nem sou triste: / sou poeta.” (Motivo) ) e esta noção é uma percepção do Eu-no-Mundo – estar aqui para tecer versos e enredar poemas. Imagem lírica. Mas será o Poeta necessário? Será que o Mundo espera o advento do Poeta? Ou lamentam a existência dos poetas como as mães lamentam os filhos indesejados?

As mães não querem mais filhos poetas.
A esterilidade dos poemas.
A vida velha que vivemos.
Os homens que nos esperam sem versos.
O amor que não chega.
As horas que não dormimos.
A ilusão que não temos.
As mães não querem mais filhos poetas.
Deram o grito
desesperado
das mães do mundo.
(p. 55)

Se as mães desprezam os filhos 'poetas', a Poeta parece temer os filhos – os poemas – que sua Escrita pode gerar, “Inutilidade das palavras. // Tenho preguiça, / tanta preguiça / pelos filhos que vão nascer.” (p. 49) Porém, adiante, a missão árdua do Poeta ao dar 're-significação' ao Mundo - missão quase impossível em nossa era que 'suspeita da própria Linguagem' – é percebida claramente pela Autora quando elogia a Arte da Escrita enquanto Re-criação dos seres,

As coisas não existem.
O que existe é a ideia
melancólia e suave
que fazemos das coisas.
...
os livros são criaturas.
Cada página um ato de vida,
cada leitura um pouco de alegria
e esta alegria
é igual ao consolo dos homens
quando permanecemos inquietos
em resposta às suas inquietudes.
(pp. 91/92)

Mas poderá a Palavra criar pontes sobre os abismos entre as pessoas? Poderá a Poesia converter-se em eficiente 'pombo-correio' ? Afinal, as Palavras ferem, e somente o silêncio deve ser desfrutado. Quando os amantes falam acabam por esquecer as carícias. Ou falam porque não sabem mais se acariciar... Se as almas não se comunicam, que os corpos se entendam.

Amadíssimo, não fales.
A palavra dos homens desencanta.
Antes os teus olhos de prata
na noite espessa do teu rosto.
Antes o teu gesto de amor
(p. 118)

A missão do Poeta torna-se ainda mais áspera quando a Expressão procura apreender (no sentido de 'prender' mesmo ) o Inexprimível, o impronunciável 'Amor'. O que é isso que une duas pessoas diversas a ponto de tais seres separados (eu e outro) se imaginarem unidos em apenas um (nós)? Afinal, falar do amor não é uma inutilidade que apenas banaliza tão sentimento tão raro? Assim como a 'paixão', o 'desejo', o 'tesão', a 'curiosidade' sensivelmente inferiores ao Amor são cotidianamente confundidos e classificados como amor...

Nós, poetas e amantes
o que sabemos do amor?
Temos o espanto na retina
diante da morte e da beleza.
Somos humanos e frágeis
mas antes de tudo, sós.
(p.127)

Se as palavras mentem, as almas não se encontram, os abismos não são transpostos, somente resta o solipsismo, a solidão, a misantropia? Certamente que, se assim fosse, sequer haveria uma Voz lírica a se despejar em versos a procura de um ouvido outro, o olhar alheio, numa esperança de comunicação. Não haveria Arte, não haveria Literatura, não haveria diálogo. Mesmo o suposto 'monólogo' do Eu lírico é uma voz em busca de diálogo com o Tu, o Outro da fala. Assim, na criação de cada poema, renova as tentativas de erguer uma ponte sobre o abismo.

mar/abr/10