segunda-feira, 1 de agosto de 2011

sobre a poética de Roberto Piva (ensaio 2)









Sobre a Poética de Roberto Piva (ensaio 2)

Roberto Piva (São Paulo, 1937-2010)



Autor e Obra – Texto e Contexto

Intertextualidades


Poesia hermética?

A Poesia se afastou do povo, se tornou uma peça hermética disputada por sábios e contra-sábios, eruditos e marginais, profetas-beat e professores de literatura, que somente se entendiam – e muito pessimamente entre si-mesmos. Então acontecem que a Poesia ficou mesmo um produto afastado, cedendo espaço para a televisão, para o cinema, para as revistas em quadrinho. Poucos jovens se interessavam por poesia, coisa de gente aborrecida ou doidivanas. Os poetas não mais se comunicavam com um público 'não-iniciado', os poetas eram incompetentes em saírem de seus mundinhos de 'vanguardistas'.


Uma prova da incompetência dos poetas? O fracasso em si comunicarem com os leitores. Os poetas olham para o próprio umbigo – ou se encastelam em estilísticas retóricas, acadêmicas, metalinguísticas, nas defesas heróicas de suas magníficas 'vanguardas'. Enquanto isso o espaço é ocupado pelos cantores populares, que seguem o refrão 'o artista tem que ir aonde o povo está' – daí se considerarem 'poetas' os músicos, que são bons 'letristas' tais como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Raul Seixas, Renato Russo, Cazuza, Arnaldo Antunes, Adriana Calcanhoto, Lenine, etc, pois conseguem atrair atenção com um lirismo que falta aos poetas 'oficiais', aqueles que se acumulam nos currículos escolares – já aprovados para o 'cânone' do sistema educacional.


Assim, devido a tal fenômeno, as letras de música são elevadas a categoria de 'poema', pois os poemas ficaram por demais herméticos – até os 'marginais' são muitas vezes incomunicáveis – por demais atulhados de metalinguagem, intertextualidade, daí porque os poemas que se dizem poemas não mais comunicam. O povo se afastou da poesia porque a poesia se afastou do povo – a poesia virou item de currículo escolar, assunto de tese de doutoramento, não de vida, da vida vivida, pois não se vivia a poesia. Exceto alguns profetas vanguardistas. Enquanto isso os jovens cantarolam letras de músicas do artista pop do momento. Os jovens souberam encontrar um substituto acessível na plena ausência da poesia. Culpa dos ditos poetas.


A questão da 'segmentação de mercado'


Hoje em dia temos linhas editoriais – onde livros são mercadorias – dedicada a vários setores do público consumidor. Há uma série de pesquisas de Mercado que indicam faixas etárias, gostos estéticos, ideais políticos, grupos sociais os mais diversos. Algumas editoras – ou selos editoriais – somente publicam autores afro-descendentes, outros só se dedicam ao religiosos, aos evangélicos, aos cultos esotéricos, enquanto outros se ocupam de homossexuais, bissexuais, o chamado público LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros), que atualmente se organiza para exigir direitos iguais (por exemplo, a uniões estáveis de casais de mesmo gênero).


Contudo, ao contrário de sua personalidade homoerótica, o poeta Piva não escreve apenas para o público homoafetivo, não apenas para os marginais e para os 'beatniks'. Não é uma voz exclusivista, mas ao contrário, uma voz para todos – quem tem ouvidos, que ouça.


Mas devido aos ataques dos demais poetas e do desprezo do público, Piva viu-se acuado, perdeu o que lhe sobrava de serenidade para concretizar, melhorar a obra poética. O poeta deixou-se amargurar pela incompreensão geral e não atingiu o nível de libertação que almeja – assim não pode chegar aos níveis de refinamento poético de um Walt Whitman ou um Gary Snyder.


Daí muitos críticos apontarem o ressentimento do homossexual contra o mundo heterossexual. Que a escrita apresentaria uma agressividade homossexual – quase diriam 'heterofóbica'. Mas esquecem que o eu-lírico devolve a agressão que sofreu primeiro, a discriminação de seu modo de afetividade e de vida sexual, julgado como 'perversidade', ou 'pecado'. Como pode um homossexual ser feliz num mundo dominado por heterossexuais perseguidores?


A comparação com Whitman se sustenta. Mas há uma diferença essencial: enquanto Whitman mostra a superação do ressentimento com a aceitação do Outro – afinal, o EU de Song of Myself é um Ser formado em comparação com os Outros, e chega ao ponto de incluir os outros, o EU torna-se múltiplo, “se eu me contradigo? Sim, eu me contradigo. Eu contenho multidões.”, o poeta confessa. Assim, o Eu não entra em confronto com o Outro – o Eu absorve a idiossincrasia do Outro e se fortalece – o canto que seria egoístico em outro poeta, com Whitman torna-se um voz coletiva, um poema plural.


Certamente o Eu egocêntrico da maioria de nós se constrói com a humilhação e o desprezo do Outro – o Eu que não sou o Outro – mas no egocentrismo de Whitman (que adora falar de si-mesmo) há o Eu pluralizado, agigantado a ponto de conter o mundo. Tal poética é admirada e retrabalhada nas obras de outros poetas admiráveis tais como Fernando Pessoa, Lorca, Neruda, Ginsberg, o próprio Piva. São poetas que se acostumaram a ler poetas e assumiram a plena intertextualidade, o diálogo entre poéticas.


Tanto que poetas não homoafetivos leem tranquilamente a obra de Whitman que é homoerótico e levemente bissexual, ou seja, uma sexualidade plena, sem limitações hipócritas do 'normalpata', cheio de neuras quanto a própria sexualidade. Mas poetas homoafetivos são mais destacados quando dialogam, assim Whitman tem como interlocutores as vozes poéticas de Lorca, Ginsberg, Piva, Elizabeth Bishop, para citar os renomados.



Ainda o Eu


Se o Eu-lírico é o Poeta quem fala, enquanto pessoa e enquanto Autor (ser-textual) quem confessa uma dor fictícia ou real, ou finge uma dor que realmente sente, é este Autor que desperta o olhar voyeur dos leitores. O sofrer do poeta é mais interessante, o sofrer do poeta sublimiza o texto. Parece ser assim.


O poeta Paulo Leminski escrevia com ironia amarga, “um homem com uma dor é mais elegante... carrega o peso da dor como se portasse medalhas”, daí o fascínio que a dor autoral desperta. Mas teremos então a ênfase na biografia do Autor ou na Obra em si-mesma?


Parece haver um interesse pelos 'bastidores'. Quem escreveu? Como escreveu? Por que escreveu? Escreveu por que foi traído? Por que foi preso? Por que foi assaltado na avenida Paulista? Por que foi condenado pela Polícia Federal? Por que foi violentada pelo padrasto? Parece que a biografia traz o fascínio – não a Obra.


Ainda mais quando entra em campo as 'minorias'. Se o autor é deficiente, ou se é homossexual, ou se é aidético. Se o autor é esotérico, ou cabalístico. Basta não ser católico, heterossexual, branco ocidental para ser classificado como 'estranho', 'exótico'. O gênero sexual é logo catalogado, classificado. Quem compartilha os lençóis do autor, da autora? É solteiro/a, casado/a, amasiado/a? Viúvo/a, divorciado/a, desquitado/a? Há toda uma curiosidade extra-obra que surpreende – como se o autor fosse celebridade, artista de cinema. Basta escrever um livro.


O autor escreve para se entender e se orgulhar. Certo. Orgulhar de que? Da opção sexual? Se escolhe a sexualidade? Orgulho de ser homem? De ser mulher? Alguém escolheu ser homem ou ser mulher? Não se nasce com determinados órgãos genitais que determinam uma forma educacional e um estilo de vida? Como então isso de escolher? Um homem pode não querer ser homem – e uma mulher pode não querer ser mulher. Ambos pagam um preço – serão exóticos à um padrão de normalidade.


Orgulho de ser o que não se escolheu? Orgulho em ser gay por não ser normal? Um contra-orgulho criado na 'resistência' ao outro – o ser-normal? Mas um gay escolhe ser gay? Não tem uma sexualidade tão determinada quanto um heterossexual? Posso me orgulhar de passar no vestibular ou de ganhado dinheiro, ou ter vencido as 500 milhas de Indianapolis, mas como posso me orgulhar de ter uma certa sexualidade? Nem sei porque tenho tal sexualidade – apenas me conformo com os órgãos genitais que compõem o meu corpo, o qual não escolhi.


Também o psicanalista Sigmund Freud estudava detidamente estes problemas de ordem sexual. O quanto tudo o que sentimos e desejamos é 'inconsciente', é sem escolha. É um delírio íntimo, um pecado acariciado, um fetiche, um desejo inconfessável e impraticável que nos move e não aceitamos isso! O Ego e o Superego lutam sempre contra o Id – nosso delírio inconsciente que busca o prazer. Prazer que julgamos escolher.


Nesta luta do Eu consigo mesmo, entre o impulso íntimo e o dever externo, em plena vida social, o indivíduo batalha em duas frentes – desenvolve um eu diante de um Outro (cada não-Eu e grupos de não-Eus). Assim para melhor definir-se cristão, basta atacar os pagãos, os ateus , os islâmicos. Para se melhor afirmar como atleticano, o Eu ataca os cruzeirenses. Para melhor se posicionar enquanto homem, o Eu ataca o ser feminino em si mesmo e no outro, ataca os homoafetivos. Quando mais inseguro de si-mesmo, mais estará disposto a atacar. O heterossexual seguro de sua própria sexualidade convive bem com homossexuais.


Por outro lado, o Eu não apenas despreza e ataca o outro. Senão a vida seria uma selva darwiniana. O Eu despreza e deseja o Outro, o Eu quer que o Outro aceite o ideal do Eu, o Outro que será um olhar de legitimidade – o Outro é que diz quem Eu sou. O eu deseja algo do Outro – o olhar? o corpo? a glória? - assim como o Homem despreza e deseja a Mulher – ela é não-homem, e dá prazer físico, e assim a Mulher despreza e deseja o Homem – ele é não-mulher, e dá prazer.


O Eu não vive sem Outro. O que seria do cristão sem o não-cristão? O que seria do são-paulino sem o corintiano? O que seria do militarista sem o anarquista? São complementares por mais que se odeiem – afinal, o ódio é apenas o amor com sinal invertido. A não-relação é a indiferença.


Influências / intertextualidades na poética de Roberto Piva


Os poetas malditos (poètes maudits) franceses do século 19, a saber, Baudelaire, Rimbaud, Verlaine, Lautreámont, Corbière. Os poetas malditos do século 20, dentre eles, os poetas Garcia Lorca, Jean Genet, Antonin Artaud, e o cineasta Pier Paolo Pasolini.


É a busca de uma irracionalismo ao 'desregrar todos os sentidos' igual um Rimbaud num 'barco bêbado' de versos, numa fluência livre, as verdadeiras 'palavras em liberdade' como proclamava um neurótico da velocidade Marinetti, sem qualquer contenção racional como labutaria um engenheiro-poeta João Cabral de Melo Neto, ou a palavra-lavra na práxis de um Mário Chamie. Há todo um sensacionismo de um Álvaro de Campos (o heterônimo futurista Fernando Pessoa) numa verborragia de sentimentos desconexos e simultâneos por fluência do poeta Rilke em suas longas elegias, ou os poetas expressionistas com suas descrições cinematográficas de paisagens.


Crítica que relaciona Rimbaud e Piva
http://www.revistazunai.com/ensaios/anderson_fonseca_roberto_piva.htm


Também os Beatniks se insinuam nos textos polifônicos de Piva, com destaque para Kerouac, Ginsberg, Burroughs, Gregory Corso, Gary Snyder, todos estes leitores do poeta-guru Walt Whitman. Outro guru da geração beatnik é Henry David Thoreau (1817-1862), pensador anarquista individualista, autor de “Desobediência Civil”, 1849, e “Walden”, 1854.


Outra influência perceptível é a do heterônimo Álvaro de Campos, persona-lírica, exaltada e prolixa, entre futurista e surrealista, do português Fernando Pessoa, outro leitor entusiasta de Whitman, como percebemos em “Saudação a Walt Whitman.”


As influências brasileiras são os textos dos modernistas Mário de Andrade (autor de “Paulicéia Desvairada”, 1922 ), Jorge de Lima, da primeira fase, antes de “Tempo e Eternidade” (1935) e o Murilo Mendes da fase surrealista (obras “Poemas”, 1929; “Visionário”, 1933)


Os poetas 'beatniks' de São Paulo se assumiam 'antropófagos' - tais como os modernistas Oswald e Mário de Andrade – ao digerirem as poéticas dos autores norte-americanos, assim como os Andrades sugavam as poéticas dos simbolistas, dos surrealistas e dos futuristas franceses. Até porque eis uma vantagem de ser 'colonizado': poder digerir os colonizadores! Nós enquanto colonizados temos acesso às culturas europeia e norte-americana, enquanto os europeus e norte-americanos pouco sabem sobre a nossa cultura.


A mistura de realismo e surrealismo numa linguagem metafísica-metafórica exagerada, chocante, eis algumas similaridades que encontramos entre as poéticas de Piva e Ginsberg. Ambos os poetas falam de fatos e pessoas reais – do convívio ou da memória – em episódios verídicos, até históricos, mas com uma linguagem surrealista. Seria como dizer “Fui abduzido por serafins extraterrestres no quarto andar da Fafich”, o que inclui elementos do mundo ficcional, mitológico, religioso, ao lado de um elemento concreto, existe o 'quarto andar da Fafich', tem endereço, é encontrado no mapa.


Podemos comparar os poemas verborrágicos de Roberto Piva com os poemas verborrágicos de Ginsberg – e até com a prosa exagerada de um James Joyce – uma tentativa de 'esgotar o assunto', de dizer tudo, sem deixar lacunas ao leitor – bem ao contrário da concisão de uma Emily Dickinson e um Paul Celan – pois são verborrágicos porque desejam 'abarcar o mundo', não são seletivos, derramam tudo sobre o papel , isto é, sobre o leitor. Não escrevem poemas, fazem conferências, palestras sobre a náusea existencial.


As marcas intertextuais podem ser explicitadas e listadas. Mas dois exemplos são suficientes. Temos o poema “No Parque do Ibirapuera” (em “Paranoia”, 1963) onde Piva dialoga com Mário de Andrade, no mesmo estilo de “Supermarket in California” onde Ginsberg dialoga com Walt Whitman.


“Eu te imagino perguntando a eles:

onde fica o pavilhão da Bahia?

qual é o preço do amendoim?

é você meu girassol?”

(No Parque Ibirapuera)

I heard you asking questions of each: Who killed the
pork chops? What price bananas? Are you my Angel?”


(A Supermarket in California)


A referência ao girassol (“é você meu girassol?”) evoca também outro poema de Ginsberg, “A Sutra do Girassol”, “Sunflower Sutra”, onde o poeta nos lembra que não somos máquinas cobertas de ferrugem, mas que somos girassóis que esqueceram que são girassóis. O próprio girassol que se confunde com as locomotivas do pátio. Uma metáfora para a desumanização do homem.

O “Não sou piedoso / Nunca poderei ser piedoso” de Piva em “A Piedade” (também de “Paranóia”) pode ser encontrado no paralelo “Todos são sérios menos eu” de Ginsberg em “America”(“Everybody's serious but me.”)

os comunistas são piedosos

os comerciantes são piedosos

só eu não sou piedoso”
(A Piedade)


Businessmen are serious. Movie producers are serious. Everybody's serious but me.”
(America)


Há uma ‘teia de intertextualidade’ onde Ginsberg escreve um poema para Whitman (“Supermarket in California”) enquanto Piva escreve um poema influenciado a um outro poeta, Mário de Andrade (“Parque Ibirapuera”). A “Ode a Fernando Pessoa” lembra a “Ode a Walt Whitman” escrita pelo próprio Fernando Pessoa-Álvaro de Campos para o bardo norte-americano.

Em “Meteoro” (também em “Paranóia”) Piva dialoga com um poema famoso do poeta chileno Pablo Neruda, “Posso escrever os versos mais tristes esta noite”, publicados em “Vinte poemas de amor e uma canção desesperada” de 1924.

Eu direi as palavras mais terríveis esta noite

enquanto os ponteiros se dissolvem

contra o meu poder


(Meteoro)


“Posso escrever os versos mais tristes esta noite.

Eu amei-a e por vezes ela também me amou.

Em noites como esta tive-a em meus braços.”


(Poema 20, Posso escrever os versos mais tristes esta noite)


Notamos num poema como “Meteoro” uma voz lírica que se dirige as outras vozes líricas, a outras almas expressionistas, outros seres atribulados, marginais ou não, canônicos ou não, mas todos afetados pelo mesma inquietude diante da existência, sejam filósofos, poetas, pintores, outros artistas belos e malditos,

no alto da Lapa os mosquitos me sufocam

que me importa saber se as mulheres são

férteis se Deus caiu no mar se

Kierkegaard pede socorro numa montanha

da Dinamarca?



eu urrava meio louco meio estarrado meio fendido

narcóticos santos ó gato azul da minha mente

Oh Antonin Artaud

Oh Garcia Lorca

com seus olhos de aborto reduzidos

a retratos


A poesia com surrealismo embriagado e misantropo de um Lautréamont (Les Chants de Maldoror) ou com a morbidez de um Augusto dos Anjos (ver os quatro poemas 'contidos' “Quatro Poemas Pivianos”), onde as imagens tétricas misantropas do poète maudit se mesclam com as imagens de finitude do ser consciente nos versos sepulcrais do vate brasileiro (o 'poeta necropolitano'?),

Eu era um pouco da tua voz violenta, Maldoror,

quando os cílios do anjo verde enrugavam

as chaminés da rua onde eu caminhava

E via tuas meninas destruídas como rãs por

uma centena de pássaros fortemente de passagem

Ninguém chorava no teu reino, Maldoror, onde o

infinito pousava na palma da minha mão vazia

E meninos prodígios eram seviciados pela Alma

ausente do Criador

(em “Poema Submerso”)


Dêem-me um anestésico. A vida dói e arde.

Não sei controlar meus impulsos demoníacos.

Não acredito em forças de outro mundo.

Sou eu, meus versos e o perigo das frações.


Arranco minhas vísceras poéticas do ostracismo.

Trezentos dias e cinqüenta noites marianas.

O caracol de meus cabelos caídos no chão de espelhos.

O sangue e os olhos transformados em areia cinza.

(em “Quatro Poemas Pivianos”, IV)


Podemos comparar “Paranóia” (1963) com “Pauliceia Desvairada” (1922) A obra de Mário de Andrade, Pauliceia Desvairada, cita e recita cenas e topônimos de São Paulo numa viagem urbana meio delirante meio debochada, com exageradas metáforas e referências ao mundo da moda e do industrialismo, quando as imagens retiradas de líricas românticas soam anacrônicas, sem contexto, como lírios pálidos expostos às fuligens.


São Paulo! comoção da minha vida...

Os meus amores são flores feitas de original...

Arlequinal!... Traje de losangos... Cinza e Ouro...

Luz e bruma... Forno e inverno morno...

Elegâncias sutis sem escândalos, sem ciúmes...

Perfumes de Paria... Arys!

Bofetadas líricas no Trianon... Algodoal!

São Paulo! comoção de minha vida...

Galicismo a berrar nos desertos da América!


No texto de Paranoia, os cenários se correspondem – quatro décadas depois – mas transfiguradas por mais exagero, desespero, alucinação, amargura, deboche e obscenidade. Não há espaço para o lírico que não seja agressão (tanto contra a semântica quanto a moral),


Eu vi uma linda cidade cujo nome esqueci

onde anjos surdos percorrem as madrugadas tingindo seus olhos com

lágrimas invulneráveis

onde crianças católicas oferecem limões para pequenos paquidermes

que saem escondidos das tocas

onde adolescentes maravilhosos fecham seus cérebros para os telhados

estéreis e incendeiam internatos

onde manifestos niilistas distribuindo pensamentos furiosos puxam

a descarga sobre o mundo

onde um anjo de fogo ilumina os cemitérios em festa e a noite caminha

no seu hálito

onde o sono de verão me tomou por louco e decapitei o Outono de sua

última janela

onde o nosso desprezo fez nascer uma lua inesperada no horizonte

branco [...]



Além destes, Piva cita o diálogo com Freud, Rimbaud e Nietzsche, pensadores e iconoclastas da cultura ocidental, que juntamente com Walt Whitman e Hermann Hesse lançaram as sementes do seria a ‘contracultura’ anos 1960 e 1970 no Ocidente.


Eu aprendi com Rimbaud
& Nietszche os meus
toques de Inferno
(Anjos de Freud,
sustentai-me!)
& afirmando isto
através dos quartos sem tetos
& amores azuis
eu corro até a colher de espuma fervente
driblando-me no cemitério
faminto da última FOME
com tumbas & amantes cheios de pétalas
porque o céu foi nossa última chance
esta noite
.




Os Beatnik de São Paulo dos anos 60


A última grande geração de poetas surgidos em São Paulo, que acaba de ganhar um livro. "Os Dentes da Memória - Piva, Willer, Franceschi, Bicelli e uma trajetória paulista de poesia", das jornalistas Renata D'Elia e Camila Hungria, conta as peripécias de Roberto Piva, Claudio Willer, Roberto Bicelli e Antonio Fernando de Franceschi, poetas que incorporaram à lírica paulistana os delírios do surrealismo e trouxeram, através de palestras e traduções, a literatura beat norte-americana até nós. (Apresentado por Claufe Rodrigues).
Fonte: Youtube

videos
http://www.youtube.com/watch?v=PjkC5qr5zgU

.
sobre Claudio Willer
http://www.revista.agulha.nom.br/cw.html
http://www.ucm.es/info/especulo/numero13/c_w_poem.html
http://www.revista.agulha.nom.br/ag35willer.htm
.
sobre Antonio Fernando de Franceschi
http://www.revista.agulha.nom.br/ag44franceschi.htm
http://www1.folha.uol.com.br/folha/livrariadafolha/797605-poemas-de-antonio-fernando-de-franceschi-criam-atmosfera-de-tensao-e-melancolia.shtml


(Em breve ensaio dedicado aos Beatniks de São Paulo)



Os poetas que aceitam a influência de Piva


O poeta Afonso Henrique Neto dono de uma poesia vertiginosa, labiríntica. O poeta segue a tradição de citar poetas, dialogar com outros poetas. Por exemplo, ele dialoga com Lorca em “A Lorca”,

estrelas de sangue e de neve

horizontes descarnados

sol sem luz

torta manhã

nos olhos

(seca romã)

de federico parado

de federico dormido

de federico cuspido

de federico e seu nada
granada

lados feridos


Também dialoga (no poema “Pensando Murilo Mendes”) com outro poeta igualmente referencial para Piva, o mineiro Murilo Mendes, o surrealista que se converteu ao cristianismo,


pensamento a soabrir a pálpebra

para fora da luz

antiuniverso da matéria

sem palavras.

orfeu hidrofeu catastrândula.

entre os mortos

e a congestão nasal

passeia um sacerdote antiquíssimo

e a sábio indiferença

do abismo oval.

tudo enlouqueceu

às vésperas do sonho.


Outros poetas são invocados pela voz lírica de Afonso Henrique, dentre eles o memoralista Pedro Nava e o contista argentino Jorge Luis Borges. Há um farto material em homepages e blogs. Eis alguns links,

poemas
http://palavrarte.sites.uol.com.br/Equipe/equipe_ahgneto_poemas.htm

ver crítica
http://www.jornaldepoesia.jor.br/ag48neto.htm

ver video
http://www.youtube.com/watch?v=to5_jnWtIf8



O poeta Rubens Zárate que publica em revistas literárias. Há um interessante e iconoclasta poema de Zárate chamado delicadamente de “Uma Vita Violenta” onde os poetas são agredidos e violentamente chacinados em tom lírico-expressionista. Na primeira estrofe temos o nome de Roberto Piva, vejamos,


o poeta Gregório de Matos foi xingado pelos eguns das cerimônias selvagens que seus
escravos celebravam na beiradas da Bahia
& o poeta Roberto Piva foi linchado por gangues de carecas munidos de paus & coturnos
sob o olhar dos anjos andróginos do Largo do Arouche


Outros muitos poetas, nacionais e mundiais, são citados, a constar, Gregório de Matos, Gary Snyder, Ginsberg, Hölderlin, Gregoy Corso, Coleridge, Dylan Thomas, Verlaine, Mallarmé, Trakl, Andre Breton, Artaud, Dante, todos com vida trágica, enquanto o poeta Sérgio Bernardo acrescentaria ainda Lorca, morto pelos fascistas espanhóis, e Oscar Wilde, encarcerado devido a sua homoafetividade. Aliás, podem ser acrescentados outros tantos nomes. A vida de poeta é figurada -e vivenciada mesmo - como uma 'vita violenta'.

ver blog
http://nigrasedpulchra.blogspot.com/



Estes ‘seguidores’ – dentre outros que apenas se iniciam na arte poética – mostra que a poética de Piva ainda não engavetada – posto que ainda nem lida nem digerida – mas ressurge como uma flor no asfalto, um farol entre os recifes da mesmice da poesia-que-fala-de-poesia da literatura dita pós-moderna.


Jun/11

Por Leonardo de Magalhaens


http://meucanoneocidental.blogspot.com




Referências


ANDRADE, Mário de Andrade. Paulicéia Desvairada. São Paulo, 1922.

PIVA, Roberto. Paranoia. São Paulo, 1963. São Paulo, Instituto Moreira Salles, 2010. 2ª ed.

________ . Antologia Poética. São Paulo, 1985.



Links para sites pesquisados na internet


Um blog dedicado aos poemas de Roberto Piva
http://robertopiva.blogspot.com/

Artigo sobre Piva em blog
http://simaopessoa.blogspot.com/2007/01/poesia-xamnica-do-beatnik-surrealista.html

Entrevista com Piva
http://www.germinaliteratura.com.br/literatura_out05_robertopiva1.htm


Crítica sobre obra de Piva
http://www.revista.agulha.nom.br/agulha6piva.html
http://daliedaqui.blogspot.com/2008/04/roberto-piva-ode-fernando-pessoa.html
http://www.triplov.com/poesia/roberto_piva/estrangeiro/index.htm


Crítica sobre “Paranoia” (1963, reedições em 2000 e 2010)
http://www.triplov.com/surreal/piva_claudio.html

http://ims.uol.com.br/galeria/robertopiva/robertopiva.html


A obra Paranoia
http://pt.scribd.com/doc/33761501/Roberto-Piva-Paranoia

a autobiografia do Piva
http://www.subcultura.org/component/content/category/89.html


Alguns links para artigos críticos

http://www.revista.agulha.nom.br/ag38piva.htm
http://www.revistazunai.com/ensaios/anderson_fonseca_roberto_piva.htm
http://felipefortuna.com/robertopiva.html
http://www.antoniomiranda.com.br/iberoamerica/brasil/roberto_piva.html
http://sibila.com.br/index.php/critica/419-roberto-piva-entre-o-mito-e-o-merito
http://www.colheradacultural.com.br/content/20091108231742.000.4-N.php
http://www.alexandremarino.com/2010/07/um-poema-de-roberto-piva.html
http://cartilhadepoesia.wordpress.com/2010/08/24/roberto-piva/
http://www.triplov.com/novaserie.revista/numero_02/claudio_willer/index.html
http://www.revistazunai.com/ensaios/chiu_yi_chih_roberto_piva.htm


LdeM


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Um comentário:

  1. muito obrigada, Leonardo, adorei o que li.
    Cheguei a você através de Rubens Zárate, que postou no FB o seu link sobre R. Piva.
    Grande abraço

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