sábado, 27 de agosto de 2011

sobre EGO EXCENTRICO - de Makely Ka









sobre a obra EGO EXCÊNTRICO
(Selo Editorial, 2003)
do poeta e músico Makely Ka


O ego-centrismo do poeta é mera ilusão


Parte 1



O poeta enquanto uma figura anti-convencional já é convencional. Espera-se que o poeta seja um cidadão estranho, excêntrico, que ande trajado de forma esquisita, que diga coisas fora de órbita, que deixe marcas de dedos e versos em fina cristaleira de certa festa de família, onde todos se esforçam para serem bem exóticos, e saírem nas capas de zines neo-anarquistas com direito a foto 3X 4 no fichários das mocinhas rebeldes de piercing e MP3 a tiracolo.


Ou seja, a poesia enquanto transgressão já é do establishment. Quando o poeta acha que está sendo surreal, aparece um tipo com tatoo na ponta do nariz e um pedaço de madeira do tamanho de uma rolha na orelha. O poeta fica ali sendo o mais careta, o mais retardado de toda a festa, aquele que deu uma escapada até a biblioteca da família para ver se encontrava uma antologia poética do Leminski.


Sabendo-se mais um na multidão, o poeta precisa inventar o super-eu (quando não o próprio Übermensch), o ego-cêntrico ponto de referência de sua pálida existência meio as multidões de (des)iguais que povoam as ruas de fuligens. Precisa achar que somente ele viu algo que ninguém viu outrora, algo inalcançável ao mais comum dos mortais, o cidadão-comum, o habitante vegetativo de nossas cidades hodiernas. Sim, aquele ser que come, bebe, defeca, reproduz-se, constrói casas (ou 'castelos' com verba pública), e depois morre, e espera ter direito a um túmulo com epitáfio compensador.


O poeta tem náuseas de imaginar-se comparado com o cidadão-comum, por isso inventa sua 'torre de marfim', por isso se isola, por isso é excêntrico, por isso se afoga no cotidiano, de repente nem sabe como sacar dinheiro no caixa eletrônico e precisa da ajuda de uma funcionária (isso vive acontecendo...), e assim precisa recorrer a uma cidadã-comum, que trabalha a espera das 17 horas para embarcar no ônibus para a periferia.


Assim, o ego do poeta, por genérico, do artista, é uma fabricação do ser que se imagina superior, que se imagina com a verdade, é uma mera ilusão, uma ficção que serve de 'defesa psíquica', um doentio processo de complexo de superioridade a nascer de um complexo de inferioridade, tipo um 'mecanismo de compensação' (sejamos bem psicologicamente dizendo exatos e científicos, quando não acadêmicos), tipo quando não se consegue conquistar aquela mocinha, e vai escrever um soneto perfeito, ou quanto não consegue convencer meia dúzia de revoltados a fazerem a esperada Revolução, e vai para casa escrever um Manifesto lírico e cheio de auto-indulgências.


Esse prólogo todo é para tentar (finalmente?) digerir a leitura da obra EGO EXCÊNTRICO que muito me proporcionou indigestão e insônia, desde quando a abri em 2004, por dádiva do autor, o poeta e músico (mais reconhecido como músico do que como poeta, segundo alguns) Makely Ka, artista erudito e marginal, deslocado e integrado, algo apocalíptico e didático. Quem vê acha que é um mendigo, mas o poeta e músico é professor de Filosofia. Impressão que sempre me desconcertou.


Esbanjando auto-conhecimento, algo irônico, algo cínico, o autor mostra um desnudamento desde a capa, com seu belo e onipresente umbigo, oniscentrado e decorado de pêlos, num volume que em passo de caranguejo vai andando para trás, tipo aqueles mangás japoneses, ou livros em hebraico. O livro é para se ler assim, backwards geral, no compasso da desconstrução, a meros dez minutos do fim deste ensaio. Com o umbigo na capa logo sabemos do que se trata, qual a intenção (ou tensão) que fica disso, “que significa isso, que signo que fica disso?”, onde o poeta fala de si mesmo em 3ª pessoa, ora singular, ora plural, ora publicando classificados à procura de (des)semelhantes.


Deixei para escrever e publicar esta crítica-ensaio agora, não porque o livro seja menos importante, mas devido ao fato de ser o mais exigente, em termos de texto e contexto. O poeta não está brincando e muito menos o crítico. O autor exige um leitor com estômago (e umbigo saliente) para uma troca de mensagens um tanto quanto indigestas, e quem não quiser, “pode sair pela porta que está aberta”, pois “aqui ninguém é obrigado a ficar”.



Parte 2


Desde o início o autor está sobrando, de tanto falar nele mesmo, ele só fala do EGO, da imago/imagem nos espelhos dos olhares, o Eu que sempre existe para os outros, até quando estamos entre quatro paredes, diante do espelho, transando consigo mesmo no escuro. O próprio pensamento em um Eu a conversar com Outro, uma linha escrita já espera um leitor. O autor, depois da escrita, é total descartável. O autor sobra, realmente.



o autor não possui caráter nem escrúpulos
o autor plagiou seus próprios poemas
o autor é uma farsa do poeta
o autor não compareceu ao lançamento
de seu próprio livro


o que já soa como uma paródia de “o poeta é um fingidor”, verso clássico de Fernando Pessoa, quando o autor ego-excêntrico declama que “agora vou mentir / tudo o que sinto / fingir vai ser a verdade / do que minto”, mesmo que alguns se incomodem, se sintam ofendidos, enganados, comprando gato por lebre, no livre mercado dos bens de consumo lírico, na feira da indústria cultural. O poeta vem desafiar, sendo o “grande iluminado”, com o seu velho probleminha do ego inflado, pois “é que nunca fui mesmo muito modesto / sou é um tanto quanto desbocado / porque sou poeta / falo o que tem de ser falado” .


Tendo a verdade no bolso e debaixo do colchão, poeta sai declamando seu universo, com o poder que nem o Rei Sol, Louis XIV teve (aquele que dizia “O Estado sou eu, L'État c'est moi”), com a beleza egocêntrica que nem narciso, afogando em si mesmo, “agora que sol / eu mesmo / nos olhos o brilho de narciso / sou único”, como a apoteose da auto-ilusão do poeta de julgar além-do-ser-social, além do construto espaço-temporal, além da socialização-primária-secundária, educacional-didática-prisional, que todo ser social, todo cidadão, registrado ou não, laureado ou não, está submetido.


Sua profissão? Ser poeta? O que faz o poeta? Cultiva erva... daninha, “poemas brotam / como erva daninha", nos jardins do pensamento, do sentimento, da revolta, enquanto torce o nariz para a crítica, “para amargar um poema bastam alguns críticos dementes”, como se toda crítica fosse perseguição, coisa repressora, censura ditatorial. Esquece que o crítico é o leitor-mor,o leitor par excellence, que debruça-se sobre texto e contexto e tenta visualizar (senão vivenciar) o estilo e os delírios do autor.


Pois o autor precisa de um leitor? Não? Despejando-se pelos classificados, como mostram os recortes de jornais de 2003, onde o poeta em busca de alguém mais, tece uma ironia com o próprio fazer poético. Ou se tornando 'desqualificado', ousando algo de Concretismo, de Cubismo, sendo 'incompreensível para as massas', tal como a acusação que selou o destino de Maiakóvski, ou o desvario de um Apollinaire, o futurismo apressadinho de um Marinetti, com a exploração de sonoridades, dos fonemas, dos russo-poloneses e afins, “uns dias leminski, outros maiakovski”, sempre com brechas para o poeta-provocador (nunca abraçando o leitor como faz um Whitman), “escarro meus versos sobre vocês / homens de alumínio / meu intuito é oxidar / suas conjunções perfeitas”.


Está claro que o autor não quer simpatia (se sentiria ofendido tal um Nietzsche!), não quer empatia (seu super-Ego não suportaria!), o autor quer se desnudar, porém insistindo em cuspir nos olhos do leitor voyeur, em poemas-dramas, em clima noir, de filme B, em quase-haicais na penumbra, invocando espíritos de Mishima, Georg Trakl, Emily Cioran, Álvaro de Campos, Isidore Ducasse (aka. Conde de Lautréamont), F. Kafka, Borges, Augusto dos Anjos, só para tecer versos 'de amargar', em poemas irônicos e eróticos, em insinuações de entrelinhas, sugestões, sinestesias,


Assunto seu silêncio vasto
no ato mínimo dos lábios
presto muita atenção
ao movimento vago de suas mãos


Sem perder o sarcasmo com seus “haicais e hentais”, deixando claro que “os poetas são inacessíveis / sensíveis / sensatos”, incapazes de traduzirem e serem traduzidos (sabendo-se que 'tradutori, traditori'), meros Traditores, traidores-autores, falsificando a vida com o instrumento maquiavélico da literatura (“a literatura estragou tuas melhores horas de amor”, escreveu Drummond), por isso o autor logo esclarece,


literatura o caralho / eu faço poesia / porra!
mas teme estar errado, mas o que importa,
ai me disseram / mas isso assim não é poesia
eu disse / foda-se



Parte 3


Sabendo que antes,nos tempos de outrora, música e poesia eram uma coisa só, não apenas irmãs xipófagas, e que uma posterior distinção música e poesia é pura ficção didática (como bem perceberam os simbolistas,com o mote “a música antes de tudo”, De la musique avant tout chose), o poeta e sobremaneira músico Makely Ka alia novamente olhos e ouvidos, nas “canções de ouvir com os olhos”, uma trilha sonora de poemas sonoros, muitos já musicados (com instrumentos, quero dizer) por Kristoff Silva, Envil fx, Pablo Castro, Renato Vilaça, nas vozes de Maísa Moura e Alda Rezende, novos nomes referenciais da refinada MPB aqui da terra do Clube da Esquina.


Contudo, volta-se o excesso de metalinguagem, onde o poeta sempre se legitima (ou procura se legitimar) em provocações, o que soa constantemente pedante, uma vez que o poema se legitima por si mesmo, dispensa panfletagens e grafitagens.

minha rima é ritmada
meu discurso é frontal
a poesia é uma porrada
e a anarquia total

e ainda o ego excêntrico 'mandando bala' nos desavisados, 'mandando bronca' nos incautos leitores (os mesmos que devem roubar o livro caso o encontrem numa megastore - será que as Americanas venderiam o livro?), num desnudamento de Eus que perde toda aquela singela espontaneidade do Whitman, ou a fotocópia desfocada dos poetas beatniks, meros imitadores do profeta de Paumanok.


meu umbigo egoísta
gosta de tudo que pisca
...
quanto mais eu me imito
mais a mim eu me assemelho


além de uma aceitação da pluralidade cultural, da diversidade de povos, que pouco transcende os mil rótulos classificatórios da 'racionalidade instrumental' na 'indústria cultural' (Adorno),

há muitos eus dentro de mim
uns judeus outros palestinos
caldeus e nordestinos
...
dentro do ovário eu fui vários
óvulos em códigos binários
gerando livros ordinários
na órbita dos meus eus imaginários


acima não mencionamos os poetas beatniks gratuitamente, estes poetas desvairados on the road, que mui influenciaram o autor, quando nos deparamos com uma confábula surreal, inspirada em The Fable of Final Hour ( “A Fábula da Hora final”) do poeta norte-americano Dan Propper, aqui denominada UMA CONFÁBULA, que confessa claramente a paródia/plágio,


a dois minutos dos últimos acontecimentos, o escritor norte-americano dan propper
declarou à folha de são paulo ter sido copiado e deturpado por poetas mineiros
irresponsáveis. A despeito do protexto (sic!) de seus editores, fez questão de deixar
claro que era totalmente favorável a esse tipo de iniciativa;


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o poema de Dan Propper em tradução, vejam aqui
http://devolucoes.com.br/wp-content/uploads/2010/11/a-fabula-da-hora-final.pdf
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Iniciativa na qual me incluo quando escrevi paródias de textos Fernando Pessoa (Ode Triunfal e Saudação a Walt Whitman), Vinicius de Moraes (O Dia da Criação) e Allen Ginsberg (Howl /O Uivo), onde a paródia serve como expressão e tributo as leituras de acabam por inchar nossos cérebros juvenis, exigindo imediata extra-vasão, pois enquanto “as cisternas contem, as fontes transbordam” (Blake), e tradução-paródia é sempre mais que uma apropriação do estilo, é a re-criação (que ajuda a divulgar o autor original, claro) Quantos não passaram a conhecer Whitman (eu mesmo confesso) na leitura dos poetas beatniks? E agora quantos não vão conhecer o Propper através dessa releitura do Makely?


Assim, somente para tentar concluir (pois a obra é vasta) destaco outra gaveta no corpo da magnum opus, onde em “poemas em voz alta” domina aquele esperado poeta verborrágico e transgressor, cuspindo na 'platéia' (que diz “não vou discutir com você, cara”)


se escrevo é porque preciso
ninguém tem nada com isso
quase tudo é de improviso
isso é o mais importante


esclarecendo que não faz versos gratuitos, “Não faço versos por acaso”, “A poesia cobra seu preço / não vem de graça / exige esforço”, valorizando para melhor 'vender o peixe', mas ao mesmo tempo em indagações, o que significa que leva a platéia em consideração!, “A poesia serve pra quê? Alguém aqui pode me dizer?”, somente para responder,


Não disseram que a poesia alimenta a alma do homem?
A propósito a quanto tempo você não come?


E muita gente por aí sem comer (nos três sentidos!) que desconhece o que seja poesia, e muita perplexa vai ficar quando com essa obra se deparar! Não é um texto difícil, às vezes até musical, mas muito árido, golpeando no baixo ventre, em direta de direita no plexo solar, marretando quem lê, com a delicadeza de uma luva de ferro, desentranhando desassossegos em desabafos ritmados e rimados, em muita crítica, porém sem soluções. Em Ego Excêntrico, o autor Makely Ka quer mesmo é desabafar.


Ainda bem que a obra é maior que o autor, sim, depois de pintar, escrever, compor, esculpir, o pintor, escritor, músico, escultor, é descartável. Podem ir para as Bahamas e deixar por conta da indústria cultural. A obra sobreviverá se assim merecer (ou se assim for lucrativo para alguns) e gerações futuras serão obrigadas a tomar conhecimento (nem que seja para o currículo escolar ou prova de vestibular). Mas quando, infelizmente, não há muito que se dizer sobre a obra, quando a obra não diz de si mesma, quando não há mais a obra, então se fala muito do artista.


Mais sobre a obra do Makely Ka



Jan/fev/09

revsd: ago/11




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