Sobre Selva Selvaggia (1976; 2005)
do poeta Ronaldo Werneck
do poeta Ronaldo Werneck
Um Roteiro explícito do Poeta enquanto Leitor
A Crítica
A questão do texto e contexto
Uma coisa é o texto, a coisa, o produto; outra é o contexto, as condições de produção da coisa, a saber, onde foi produzida? Quem produziu? Com qual propósito? Afinal, a Arte não surge do nada.
O contexto seria a moldura do texto, o que está fora, ao redor do texto. Enquadra e dá sentido global – mas não determinante. Pois pessoas de outra época e outro lugar podem ler a obra, ainda que produzindo novas interpretações.
“As Viagens de Gulliver” no século 20 tem uma leitura diversa daquela do século 18, outra época, outros costumes. O autor, imerso em sua própria época, desejava ironizar, satirizar personagens que são hoje desconhecidas. A Obra é a mesma – e não é. Recebe outro olhar – devido ao fato de haver outros leitores. Daí o terceiro item – além do Texto e do Contexto – temos a Recepção, a plateia diante da obra-de-arte.
Os Novos Críticos se preocupavam com o texto, numa leitura imersa em parâmetros textuais, sem dispensarem atenção aos eventos da época e dados biográficos do/a autor/a.
No campo oposto, os Novos Historicistas insistem na fórmula texto E contexto, que toda obra de arte tem um lugar e um tempo, não pode ser vista de modo isolado.
Quanto a importância do Leitor, daqueles que vão receber a obra – e interagir com a mesma – em qualquer época ou lugar, daquele que recebe a mensagem, tal importância é o centro dos estudos da Estética da Recepção, que focaliza a Leitura, como um aspecto construtivo-interpretativo, onde o leitor colabora ativamente para 'revivificar' a obra. Sem o leitor, um livro é apenas um livro empoeirado na estante.
A interação entre os três pilares – Texto, Contexto, Leitura – onde o Autor seria aqui o ser que em dado contexto que materializa o texto, daí dizerem que houve uma 'morte do autor' – surge a Obra re-presentificada a cada olhar. A cada contexto do Leitor a interagir com o texto-contexto do Autor surge uma 'nova' Obra que a 'mesma' Obra. É o milagre da Literatura: afinal, existem tantos “Viagens de Gulliver” quanto leitores de “Viagens de Gulliver”.
A Obra
Contexto
O contexto de “Selva Selvaggia” é aquele dos anos 1970. O livro de Ronaldo Werneck, mineiro de Cataguases, “lembrai-vos dos Ases de Cataguases”, é de 1976, portanto 35 anos no passado. Da mesma época de CDA com trocadilhos irônico-amargos; dos poemas-jogos-de-palavras de Affonso Ávila; dos poemas-manifestos de Affonso Romano de Sant'Anna. E época de muita metalinguagem.
Vejamos outras obras da mesma época. O “Poema Sujo” (1976), de Ferreira Gullar, é muito datado. Temos que pensar a obra numa determinada época. O que acontece com “A Rosa do Povo” (1945) de Carlos Drummond de Andrade, cujos poemas têm por moldura os eventos do Estado Novo inseridos na Segunda Guerra Mundial. De Affonso Ávila temos duas obras importantes dos anos 1970, “Código Nacional de Trânsito” (1972) e “Discurso da Difamação do Poeta” (1978), sendo este mais metalinguístico e irônico, e aquele mais contextual, o 'conserve-se à direita' do regime militar.
conserve-se à direita
converse às direitas
como os cegos à direita
com o verso às direitas
como servo à direita
com os seus às direitas
como os sérios à direita
com o sexo às direitas
confesse-se à direita
com os céus às direitas
Fechando os anos 1970 temos “Que País é Este?” (1980), de Affonso Romano de Sant'Anna, como uma digestão dos acontecimentos trágicos e irônicos da Ditadura Militar e da abertura política para a Nova República. Em suma, são obras que dependem de um conhecimento prévio da época – isto é, do Contexto - para serem melhor 'digeridas'.
Diante disso, pensemos: qual o valor de Selva Selvaggia hoje? É obra que depende de um contexto, ou o transcende?
Eu discordo da crítica do crítico e literato Domingos Pellegrini Jr. - a melhor crítica publicada aqui, pois é o único que realmente leu o livro – quando ele ataca os trocadilhos próprios de vanguardas, ou quando despreza Mallarmé na malha de intertextualidade. Nem acho que deva existir coerência interna, um ordenamento, aliás, a poesia não é lugar de ordenamento, mas de expressão livre. (Deixemos os ordenamentos para os burocratas e governantes, que nem isso eles fazem direito.)
Eu concordo com Pellegrini Jr. quando mostra o quanto o poeta se explica, tenta se justificar (será insegurança?), se mostrar conhecedor dos tramites poéticos. Afinal, em 1976, o autor tinha 33 anos, entendemos. Insegurança (se é que havia) que não existe mais.
Há um excesso de metapoema, com excessiva metalinguagem, o que até nem seria culpa do autor, mas do Zeitgeist, o 'espírito da época', que marca o início no Brasil – com dez anos de atraso? - do pós-modernismo: a ânsia de desconstruir, de mostrar os bastidores, quando o poeta exibe as ferramentas de seu ofício, a polir metáforas e azeitar metonímias, a desenferrujar sinestesias. Prato cheio para os poetas-teóricos concretistas.
É o drama risível da voz textual que desvela as tramas do texto, de um texto que se desnuda diante do leitor, coisa que percebemos – e toleramos - desde Mallarmé, o poeta que fala sobre... a poesia!
No mais, eu concordo mais com a 'estética da recepção', uma escola mais centrada no leitor, segundo percebemos nas obras de H. R. Jauss e de W. Iser, alemães que muito devem aos fenomenologistas alemães e franceses (Husserl, Heidegger, Sartre, Merleau-Ponty, etc) nos estudos da percepção, na interação do subjetivo e do objetivo, o mundo interno interagindo com o mundo externo.
Fechando os anos 1970 temos “Que País é Este?” (1980), de Affonso Romano de Sant'Anna, como uma digestão dos acontecimentos trágicos e irônicos da Ditadura Militar e da abertura política para a Nova República. Em suma, são obras que dependem de um conhecimento prévio da época – isto é, do Contexto - para serem melhor 'digeridas'.
Diante disso, pensemos: qual o valor de Selva Selvaggia hoje? É obra que depende de um contexto, ou o transcende?
Eu discordo da crítica do crítico e literato Domingos Pellegrini Jr. - a melhor crítica publicada aqui, pois é o único que realmente leu o livro – quando ele ataca os trocadilhos próprios de vanguardas, ou quando despreza Mallarmé na malha de intertextualidade. Nem acho que deva existir coerência interna, um ordenamento, aliás, a poesia não é lugar de ordenamento, mas de expressão livre. (Deixemos os ordenamentos para os burocratas e governantes, que nem isso eles fazem direito.)
Eu concordo com Pellegrini Jr. quando mostra o quanto o poeta se explica, tenta se justificar (será insegurança?), se mostrar conhecedor dos tramites poéticos. Afinal, em 1976, o autor tinha 33 anos, entendemos. Insegurança (se é que havia) que não existe mais.
Há um excesso de metapoema, com excessiva metalinguagem, o que até nem seria culpa do autor, mas do Zeitgeist, o 'espírito da época', que marca o início no Brasil – com dez anos de atraso? - do pós-modernismo: a ânsia de desconstruir, de mostrar os bastidores, quando o poeta exibe as ferramentas de seu ofício, a polir metáforas e azeitar metonímias, a desenferrujar sinestesias. Prato cheio para os poetas-teóricos concretistas.
É o drama risível da voz textual que desvela as tramas do texto, de um texto que se desnuda diante do leitor, coisa que percebemos – e toleramos - desde Mallarmé, o poeta que fala sobre... a poesia!
No mais, eu concordo mais com a 'estética da recepção', uma escola mais centrada no leitor, segundo percebemos nas obras de H. R. Jauss e de W. Iser, alemães que muito devem aos fenomenologistas alemães e franceses (Husserl, Heidegger, Sartre, Merleau-Ponty, etc) nos estudos da percepção, na interação do subjetivo e do objetivo, o mundo interno interagindo com o mundo externo.
Bem, a Estética da Recepção. Os leitores são gregos e são troianos. É impossível agradar a todos. Não se pode servir a dois senhores. O que agrada a X pode não agradar a Y... O que o crítico Pellegrini Jr. lê não é o que o poeta Moacy Cirne lê. O primeiro desconfia do 'formalismo', do concretismo, enquanto o segundo elogia a expressão visual. Mas concretismo não é exatamente um quadro feito com letras, ou cartaz soviético. É outra coisa. Que só os irmãos Campos sabem.
Ou o vício do poeta enquanto leitor. O mesmo vício de Antônio Miranda, que é o mesmo de Roberto Piva, que é o mesmo de Affonso Ávila. Parecem incapazes de escrever uma linha – um verso – sem citar e/ou fazer referência a outro poema de outro poeta (de preferência, famoso). Ótimo, tal intertextualidade mostra leitura, farta leitura. Certo. Mas o que tem o próprio poeta a dizer?
A questão da intertextualidade
Há a citação sutil, digerida, e há a citação marcada, até com 'aspas'. Há o excesso de citação – daí ser difícil ler alguns poemas do mesmo modo que certas 'pérolas' de Marianne Moore e Allen Ginsberg. Autores que demonstram uma leitura farta e onívora – e tudo é despejado na escrita.
Tal leitura e canibalismo – viva a Antropofagia! - em pastiche, em ironia, em homenagem é compreensível e tem ótimos exemplos de sucesso literário. Contudo nada tem de originalidade. Desde que o mundo é mundo os eruditos de citam, se roubam, se deturpam mutuamente, fraternalmente, cinicamente. Não se cria algo novo, exceto uma colcha de retalhos, um poema-frankenstein.
O poeta parece sofrer de uma 'angústia da influência (diagnosticada pelo scholar H. Bloom), aquela síndrome do autor enquanto leitor, que tudo lê e depois tenta digerir as leituras ao produzir mais textos. Já comentamos as obras de Roberto Piva, de Antônio Miranda, de Lecy pereira Souza, dentre outros, todos obcecados, interpenetrados, pela intertextualidade.
E o poeta sabe disso tudo. Ele próprio esclarece que se trata de 'diálogo'. Deve ter lido Bakhtin, com o famigerado 'dialogismo'. Para nós, em bom português, é 'tudo se copia'. E passa longe de ser um fenômeno do nosso Antropofagismo latino tropicalista. Os poemas de Ginsberg são cheios de referências e digressões nada originais que até , em certas edições, são acompanhados de notas explicativas.
Aqui na obra de Ronaldo Werneck as notas explicativas 'de pé de página', 'de rodapé', acabaram por se tornar uma verdadeira obsessão. Ele parece complicar justamente para explicar ao leitor o que se passa, de onde veio o poema, o que ele queria dizer, em suma, ele tenta explicar tudo, a origem das citações, as influências, as dedicatórias, parece o teórico close-reading explicando a gênese textual.
Será a tarefa do poeta explicar os próprios poemas? e o que pretende dizer com cada um deles? Como pode ele controlar a 'recepção' dos leitores com prévias informações? Ou deseja deixar tudo 'claro' para o conforto do leitor?
O caso é que as notas não permitem ao leitor divagar, tentar desvendar o mistério, procurar as fontes, as influências, as obsessões, em suma, o universo de leituras do Autor. De antemão tudo já é explicado, demasiadamente explicado. Com certeza, é culpa dessa obra de agora a revisitar o passado. O excesso de notas não existia na 1ª edição, como se constata.
Quando o romance “Encontro Marcado”, do mineiro Fernando Sabino, foi reeditado nos anos 1980, passou a incluir em anexo – nas páginas finais – dezenas de notas sobre as citações e referências. Um mapa das minas! Outros exemplos de excessos de referências não faltam. Ainda mais em edições críticas. A edição crítica de “Great Gatsby”, de Fitzgerald, com todas as referências é engrossada com um quinto do livro original. Sem falar nas dezenas de livros sobre as referências e estilísticas no labirinto textual do romance “Ulisses” de James Joyce. Ou seja, a literatura que recicla peças literárias.
Convenhamos, a obra poética de RW é volumosa, interessante, divertida, erudita, genial, explicita um bom leitor, mas não é original. Até a disposição dos versos na página em branco – que outros críticos elogiam – nada tem de surpreendente. Até o título 'bem sacado' – o próprio autor revela – é tirado dos versos iniciais da “Divina Comédia”, do italiano Dante, que por sua vez se inspira em obra anterior, escrita no exílio, e nas epístolas de Paulo,
Ah quanto a dir qual era è cosa dura,
esta selva selvaggia e aspra e forte,
che nel pensier rinnova la paura!
O poema na página. Disseminar palavras pela folha? Nenhuma originalidade. A disposição de versos – fragmentados, soltos, dispersos, etc – vem desde Mallarmé, passando por Apollinaire e Maiákovski, e levado ao ápice e auto-fagocitose em peças concretistas. Nos anos 1960 e 1970 temos esse fenômeno nas obras de Ferlinghetti, de Ferreira Gullar, de Affonso Romano de Sant'Anna. No máximo a plena ocupação do 'branco da página' – em linhas dispersas, descendentes ou ascendentes – alivia um pouco o peso do conteúdo.
Ao menos, ler um poema derramado na página não se assemelha a ler uma coluna de jornal impresso. Apenas isso. Quando se lê o poema em voz alta não se lembra de qual 'espacialização' ele ocupava na página.
No mais, os poemas pouco dizem. Mas brincam com as palavras, exibem 'cerebrações' (raros são emocionais, espontâneos), contorções sintáticas e semânticas, mais ao espírito lúdico do que mensageiro. Alguns exemplos de jogos de palavras, ao estilo Affonso Ávila, com deslocamento e/ou corte de palavras, costuras, vocábulos assemelhados por grafia e/ou sonoridade,
“ urro de lucro / jogo do logro … gosto do malogro” (p. 96)
e “soluço / luxo / lixo” ou “pronto / pranto” (p. 328)
ou ainda “macio / cio” ou “norte/ noite/ morte” ou “brilho / trilho”, ainda “narciso / sorriso” (p. 341)
ou 'desconstruindo' as palavras para construir outras, “decifra-me / dessofra-me / dissolva-me” (p. 400)
Aqui a poesia enquanto jogo de palavras, não de ideias? (voltemos à Mallarmé...) Hoje em dia os poetas 'jogam' com as palavras e dizem nada.
Ainda que tenhamos aqui um conteúdo, um 'algo a mais' que o 'jogo de palavras'. Nesta obra – e na poética - de R. Werneck podemos perceber as relações entre Poesia e Cinema. Assim como em outros poetas entrelaçam-se Poesia e Teatro, ou Poesia e Música.
Da linguagem cinematográfica podemos 'adaptar' alguns termos para a própria crítica – cortes, descrições, percursos figurativos, closes e panoramas, mudanças bruscas de perspectivas, conexões explícitas ou nem tanto , alterações da ordem cronológica, com flashbacks, previsões, reversões, etc.
Intertextualidades:
ensaio sobre a poética de Antônio Miranda
http://www.antoniomiranda.com.br/ensaios/sobre_memorias_infames.html
ensaios sobre a poética de Roberto Piva
http://leoleituraescrita.blogspot.com/2011/07/sobre-poetica-de-roberto-piva-ensaio-1.html
http://leoleituraescrita.blogspot.com/2011/08/sobre-poetica-de-roberto-piva-ensaio-2.html
Os poemas
Podemos destacar em Selva Selvaggia 17 poemas. Peças poéticas com notas 9 e 10, segundo os critérios de clareza; compasso forma-conteúdo; superação do contexto, ser assim atemporal e não um produto datado; influência sobre o leitor, a capacidade de afetar/ comover; em suma, a materialização em poema do fenômeno poético.
Na leitura pouco valorizei os poemas metalinguísticos – com raras exceções – por motivos que já apontei em ensaios interiores (e que se resume a indagação: 'será que os poetas não têm outro assunto além da própria poesia?'), mais preocupado com os critérios citados.
Como o livro se estrutura como um plano em sequências, numa fita de cinema, destaquemos alguns poemas em cada sequência.
Na Sequência 1, temos o poema “panem et circenses” (p. 247, p. 28 no livro original de 1976),
palavra pão coti / diano em ano / panaceia cota
…
bordado em pó e pano / ceia e um só coti / diano em ano ver
só um só me de / forma e fundo / pão e circo
belas imagens de descrição em “canto da concepção” (p. 251), onde a paisagem existe apenas na interiorização do Eu-lírico, o exterior só existente na sensibilidade interior, como percebemos nas obras de Virginia Woolf e Clarice Lispector,
“das dunas das brumas”, “súbita noite de estrela e sono”, “a noite se dissolve” (e não dissolve os homens, como diria CDA)
Em “Viagem” (pp. 252-53) encontramos um interessante metapoema, que explora a sonoridade a la simbolismo (“Antes de tudo, a música”, Verlaine),
vai meu poema / ébrio de lama / e flama l'azur
…
vai meu poema / cresça sobre o esperma
de meu pasmo atônito / branco do lábio encanto
brando em lado espanto
Em “Limericks” – mais explorações com a palavra com propósitos lúdicos, “som / sol”, “boca/ louca”, “dentro / centro”, “voz/verso”, que podemos comparar com “canto da concepção” e “Viagem” sobre os limites do canto do poeta,
ah mas essa glória brilhuzindo / esse gran falar solto na garganta
quando não é hora certa / viu, poeta? /
esse canto entope engasga e não adianta
Vamos para a Sequência 2, onde destacamos “Teares” (p. 256), com suas assonâncias, aliterações, ao lado de metonímias,
como desfilar / desvios dessofrer
esse tênue tecido / em constante fabrico?
…
o sol torto / o sim corpo / fio-fascínio
sonda / terna tepidez trazida
na crista / da mais alta onda
Na Sequência 3 muita repetição dos mesmos truques e malabarismos que 'deram certo' nos primeiros poemas, mas 'perdem efeito' em outros. Destaque para “círculo” (p. 288),
lentas mordidas / eu relógio tique- / tapeando o tempo
…
lentas mordidas / e o amor truque-/ truncando o tédio
Na Sequência 4, temos os jogos de palavras 'mais sintéticos' em “a estrada” (p. 292-293), como o belo final,
a estrada o morto a faca o sertão
são palavras planas
habitadas por sol / e solidão
Já na Sequência 5, temos os mesmos métodos, jogos de palavras, palavras dispersas na página, mas sem alcançar os mesmos efeitos de poemas das sequências anteriores. Na Sequência 6 temos o poema “amada: flashback” (p. 320), onde um retrato desperta lembranças tal se fosse uma madeleine num chá de tília, naquele imaginário proustiano, obcecado em resgatar o tempo que se perdeu,
há que pesar o tempo / encontro grave e vago
…
trazê-lo à luz da alegria / clarão entrevisto / nas frestas da noite
entre ti e tido e tudo
Meio ao jogos de lirismo lúdico, encontramos o sério “aço e estilhaço” (pp. 321-322), com aspereza e sentimento de perda,
“são ásperas as veredas / do amor / pouco a pouco
despedaçadas”
“são ásperas / e o pouco corpo / vencido”
“são ásperas / e o amor / pouco a pouco / despedaçado”
podemos comparar “aço e estilhaço” com “canção do medo” (p. 325), onde o amor = fracasso vem causar medo naquele que quer amar,
como escapar desse amor / como sustar e assustar
o corpo que me aprisiona
de quantos desencontros / forjado foi quest'amore?'
a temática amorosa (ou dos “desencontros do amor”, especifica o autor) é ainda contemplada em “carta” (p. 337), bem no espírito de um Vinicius de Moraes (“que seja infinito enquanto dure”)
como se diz / è finito
sem mais delongas / ou me debilito
sai desse amor / como da batalha
Temos um poema irônico poligrota, “classroom” (p. 323), isto é, sala de aula em inglês,
trocávamos as línguas / lúdico logro
como se trocam as / língua s lúbrico jogo
Na Sequência 7, temos mais poemas de cunho pessoal, o individualismo e o saudosismo do poeta, mas como dizia CDA, “nem me reveles teus sentimentos, o que pensas e sentes, isso ainda não é poesia”, em “Procura da Poesia”. Nesta sequência faltou o cuidado com a linguagem, a arquitetura lírica – assim são poemas que importam apenas a intimidade do poeta, são desabafos (nem todos os poemas são publicáveis, o próprio Drummond sabia disso). Na Sequência 8, há a tentativa de aproximar poema e cinema, mas só fica mesmo na rima.
Já a Sequência 9 é mais interessante. Encontramos Sílvio Silva, “cidadão e poeta”, um ser “discursivo e panfletário”, uma espécie de alter-ego do poeta. É de certa forma um poema datado, tem o contexto dos anos de 1960, 1970, mas é um texto íntegro, intocável. Não concordo com a crítica de Domingos Pellegrini Jr. , aliás aqui crítica mais ideológica do que estética.
Em “sílvio silva selva”(p. 366-369) temos algo de Vinicius de Moraes (do célebre “Operário em construção”) e de Moacyr Félix (o poeta-engajado),
eu sílvio silva / ofereço meu verbo / de sonho e sacrifício
…
eu sílvio silva / poeta de copacabana / preparo minhas
palavras / como se prepara / uma bandeira
eu sílvio silva / poeta de copacabana
afio meu verbo / como se afia / e se lança
contra o desafio
Nesta linha de poesia engajada, politizada, temos a incisiva “hungry & co.” (pp. 374-376) que pode ser comparada com os poemas de Félix, de Gullar, de Ávila, além do célebre “United Fruit Co.” de Pablo Neruda, a desmascarar o imperialismo ianque a explorar as riquezas sul-americanas. O jogo de 'homem'/'nome'/'fome', além de sua semântica de contrastes, vem a lembrar o “Especulações em torno da palavra homem” de CDA,
de que vale o homem
contra o nome e a fome
de que vale o homem / contra a fome
a fome e seu nome / Money ?
A condição humana no sistema capitalista é evidenciada aqui como num labirinto de miragens, de buscas fetichistas, de alienação que impede a consciência de classe e mantém o sistema remendado ainda de pé, pois o servo não derruba o domínio dos senhores.
O próprio aspecto comercial na relação Autor – Leitor é explicitado pelo Poeta quando – em sua campanha de marketing para o lançamento de Selva Selvaggia – lembra as condições de produção, pois o poema é um produto de noites mal-dormidas, dramas pessoais, crises metafísicas e financeiras, produto este que é comprado pelos leitores, que pagam tão-somente o papel, a tinta, a encadernação e, of course, o marketing.
Na Sequência 10, o poeta deixa o individual e o coletivo e volta ao terreno semiótico, como demonstra “cygni: cosmovisão” (p. 385), com seu atropelo de signos-símbolos a la Mallarmé - “dados lançados / o jogo cósmico” - via Ezra Pound, via irmãos-concretistas Campos,
garimpando galáxias / por esta imensidade
manhãs sóis vidro vida / isomórfica planície cristal
rosácea metamorfose cor / cel forjado na estrela
da antemanhã
aliás leitura de concretismo que se revela no poema baseado na propaganda da Coca-Cola, já leitmotiv para o célebre “Beba Coca Cola” (1957) de Décio Pignatari.
Dois outros poemas se destacam no fim de Selva Selvaggia. Temos “noturno do leme” (pp. 395-398) a comparar-se com “canto da concepção” (p. 251), onde o eu-lírico filtra subjetivamente o mundo exterior, com sua sensibilidade impregnando o retrato, a descrição, em suma, o painel lírico, entre a satisfação e o desejo de consumo,
entre carros namorados
luminosos lambuzando a aurora
entre hot dog e a coca-cola
a bandeira nos controla
…
tudo é afável
e terrível / até a perspectiva
da aurora / até o hot dog
e a coca-cola
E finalizando – apenas para voltar ao início – com “around the sixties” (pp. 401-403) que reacende a discussão Texto e Contexto. É um poema para ser lido aos som dos Beatles ou aos solos eletro-guitarrísticos de Hendrix, numa viagem no tempo até as décadas de 1960 e 1970.
Tal uma poética beatnik, com referências de época, ao mesmo datado e atemporal como os poemas beatniks da mesma época, estando no tempo e afora do tempo tal qual as canções dos Beatles ou os solos de Hendrix.
Uma teia de citações e referências que vão destes clássicos estrangeiros aos sucessos do Clube da Esquina, de Milton Nascimentos, dos Tropicalistas, de Caetano Veloso, em suma, é preciso saber em qual época foi escrito o poema para podermos nos deliciar plenamente com o texto.
“I want to live to dream”, quero viver para sonhar, diz o poeta, ao som de Beatles, antes que o próprio John Lennon, já descrente, viesse a público para declarar que o “sonho acabou”, The dream is over.
Um contexto de repressão política, censura cultural, guerra fria, faz sentido uma série de trocadilhos e intertextos que para nós da Redemocratização soa deslocado ou afetado. Daí precisarmos voltar ao momento da Escrita.
aroma amor romã
ticos de cuba sex libre
A época de liberdade sexual, da revolução (dita) socialista em Cuba, com a ação das guerrilhas dos Castros e Che Guevara, a busca de exteriorização do inconformismo, da rebeldia, que apenas gerou novos itens de consumo – jeans, camisetas com a foto do Che, produtos para jovens 'descolados', etc. Pois o capitalismo é tão esperto que compra até os inimigos, os símbolos da rebeldia são livremente comercializados!
Os poemas se inserem num momento de incoerências, de contradições, com 'os corações e mentes' pressionados entre a liberdade e a censura, entre a libertinagem e a repressão, ousando lutar contra os dogmas capitalistas, na busca de novos estilos de vida, mas incapazes de superar as contradições, demasiadamente burgueses para desapropriarem a família e crentes demais para se livrarem das virtudes cristãs. Logo outra geração adveio para lutar pela inserção no mercado e pelo acúmulo de lucros.
E o poeta? Deve, após tantas lutas, conviver com um mundo, com uma geração, que pouco sabe das vicissitudes e psicodelias de uma época ímpar na história da civilização ocidental que questionou a própria cultura ao preferir uma selvagem contracultura. Enquanto metade do mundo ainda sequer chegou verdadeiramente à proclamada civilização.
Jul/ago/11
Leonardo de Magalhaens
http://meucanoneocidental.blogspot.com/
http://leoliteraturaescrita.blogspot.com/
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Blog do autor Ronaldo Werneck
http://www.ronaldowerneck.blogspot.com/
Homepage
http://www.ronaldowerneck.com.br/index.html
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Meu caro Leonardo: só agora me detive com mais atenção no seu texto, denso e intrigante, abrindo o leque de leituras possíveis (polissêmicas?) para o meu Revisita Selvaggia.
ResponderExcluirVocê realmente leu meu livro com toda a atenção, e com grande argúcia extraiu dele brilhanbates conclusões. Indicou caminhos. O poema é do leitor como o céu é do condor. Viva a estética da recepção". Obrigado por sua leitura. Abraços RW