domingo, 28 de junho de 2009

Lecy - The Pain of the Love



Lecy Pereira Sousa


The pain of the love

ON THE SENSIBILITY THAT THE EYES DON'T USUALLY SEE...


In the foreground, one morning of April with small winds. Some birds so hard to identify as they appear, at the distance, in a surreal history in frames black and white.

Next, an unusual and vociferous pain as it had been provoked by an army of the most bloodthirsty bacteria.

The blond girl, installed in her country house, drove in the ivory teeth in the perfect apple and took away the white leather panties glued in her legs and buttocks. Delightful! And with a very remote control operated a CD player of house music.

Then, the whirlwind. During the beat of the music, ten hearts stopped pulsing in the city – Lu gave one slap in the face of Rafa, she finished the engagement and resolved to go away for Blumenau – a ray fulminate Mrs. Esperança in her farm – a parson expelled ten devils, at once, in his ministry – the priest divided the body and took the blood of Christ in the front of everybody and nobody did anything – Mrs. Sueli finished the fifth chapter of a book that, she said, it was being whispered in her ears, every morning, by the spirit of Camões – in the terreiro " Flecha Azul ", mother-of-saint Zilá embodied a nagô and called for Oxalá – Cristina, 14 years, suffered a spontaneous abortion in the bathroom of her house – the nun Joana became a saint and was attacked by a mysterious blindness – Paulinho swore for God he saw two ETs and a spaceship in the behinds of the back yard of his house.

All and one more infinity of things happened unless somebody never knew of that pain, after all pains are invisible. In that morning of a sophisticated April, a replica of the statue of Milo's Venus was feeling her pain in the garden of Japanese grass and fountains arranged according to Feng Shui.

In her marble silence, Venus enjoyed her pain under a bland sun. Perhaps she has felt the pain of the world or the indecipherable pain of love.


Translation by Leonardo de Magalhaens



Lecy Pereira Sousa - A DOR DO AMOR
SOBRE A SENSIBILIDADE QUE OS OLHOS COSTUMAM NÃO PERCEBER...
Em primeiro plano, uma manhã de abril com os seus pequenos ventos. Algumas aves difíceis de identificar como aquelas que aparecem, ao longe, numa história surreal em quadrinhos preto e branco.
Em seguida, uma dor insólita e vociferante como se fora provocada por um exército das mais sanguinárias bactérias.
A moça loira, instalada em sua casa de campo, cravou os dentes de marfim na maçã perfeita e tirou a calca de couro branco colada em suas pernas e nádegas. Uma delícia! E com um controle remotíssimo acionou um CD de house music.
Então, o torvelinho. Durante a batida da música, dez corações pararam de bater na cidade – a Lu deu um tapa na cara do Rafa, terminou o noivado e decidiu ir embora para Blumenau – um raio fulminou a dona Esperança em sua fazenda – um pastor expulsou dez satanases, de uma vez, em seu ministério – o pároco partiu o corpo e tomou o sangue de Cristo na frente de todos e ninguém fez nada – dona Sueli terminou o quinto capítulo de um livro que, segundo ela, estava sendo sussurrado em seu ouvido, todas as manhãs, pelo espírito de Camões – no terreiro “Flecha Azul”, mãe Zilá recebeu um nagô e chamou por Oxalá – Cristina, 14 anos, sofreu um aborto espontâneo no banheiro da sua casa – a freira Joana virou santa e foi acometida por uma misteriosa cegueira – Paulinho jurou por Deus que viu dois ETs e uma nave espacial nos fundos do quintal da sua casa.
Tudo isso e mais uma infinidade de coisas aconteceram sem que alguém jamais soubesse daquela dor, afinal dores são invisíveis. Naquela manhã de um sofisticado mês de abril, uma réplica da estátua da Vênus de Milo, sentia a sua dor no jardim de grama japonesa e fontes arranjadas segundo Feng Shui.
Em seu marmóreo silêncio, Vênus curtiu sua dor sob um sol ameno. Talvez tenha sentido a dor do mundo ou a indecifrável dor de amor.


In http://www.letras.ufmg.br/atelaeotexto/leituraparatodos_bh_textos8.html

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Lecy & Dilemma of the only-breath electropoem






Dilemma of the only-breath electropoem

... until my rude mentary memory overflows into particular electric particles stuffed by latent meanings I go on reporting the love of last night where all naked we mix ourselves without shame on the face fucking in tantric train each one after other in bedroom in living-room in dinner-room wc until outdoors I must report / Well and badly I ignore when I eat an apple with you inside sometimes I attract attention do some sense almost always everything nor I don't call you at phone I express myself on this light so impulsive impossible explosive ranging romantic when the moonlight comes and goes and the sun rises and sets someone will be reading me on the square looking at certain height of a building while I'm reporting six tens numbers of the lottery minimum temperature nineteen maximum twenty nine / Falls Stock Exchange Indices woman murders man for love man threw himself from the sky-scraper recent photos from the Hubble Telescope show the birth and the death of a star / Sex Shop Five Star anesthetic ointment vibrators portable cells phones completely for your pleasure / Clairvoyant says smiling the end of the world is near in TV Channels international chain / Dead another victim of the lack of love / Robot ready to vote for new president while the cow walks forward decided for the marsh / All passes inside me no lyrical until a lightning strikes the news through the vanilla skies until my little lights stop deceiving somebody else's eyes and start to clarify the galaxies I will go on showing me on an electronic screen of a reinforced concrete building no subtly...

translation by Leonardo de Magalhaens

Lecy Pereira Sousa

Dilema do eletropoema de um fôlego só

...até que minha memória rude mentar desemboque em partículas particulares elétricas recheadas de significados latentes prossigo noticiando o amor de ontem de noite onde todos nós nus misturamos sem vergonha na cara transando de trenzinho tântrico cada um por sua vez no seu quarto na sua sala cozinha copa wc até ao ar livre devo noticiar/ Bem e mal desconheço quando como uma maçã com você dentro às vezes chamo atenção faço algum sentido quase sempre tudo nem te ligo me expresso nessa luz impulsiva impossível explosiva raivosa romântica quando o luar chegar e partir e o sol levantar sair alguém estará me lendo na praça olhando para certa altura de um prédio enquanto noticio seis dezenas da loteria temperatura mínima dezenove máxima vinte e nove/Caiu o índice da bolsa de valores mulher mata homem por amor homem se joga no arranha-céu fotos recentes do telescópio Hubble mostram o nascimento e a morte de uma estrela/Sex Shop Five Star pomada anestésica celulares vibradores tudo para seu prazer/Vidente diz sorridente estar próximo o fim do mundo em cadeia internacional/Morre outra vítima da falta de amor/Robôs se preparam para votar em novo presidente enquanto a vaca caminha decidida para o brejo/Tudo se passa em mim sem lirismo algum até que um raio parta as notícias pelo céu de baunilha até que minhas luzinhas parem de enganar os olhos alheios e passem a esclarecer galáxias continuarei passando numa tela eletrônica de um prédio de concreto armado sem sutilezas...

E acompanhem também alguns dos tantos blogs do Autor: http://www.gostodeler.com.br/materia/5256/dilema_do_eletropoema_de_um_folego_so.html
http://www.uniblog.com.br/suitedasletras/
http://www.lecypereira.blogspot.com/

terça-feira, 16 de junho de 2009

BLOOMSDAY! Hades (trecho) em ULYSSES





Ulysses

James Joyce


Epsódio 6 [Hades]
(trecho)(pp.110-113)

/o enterro de Paddy Dignam/
local: Glasnevin Cemetery / Dublin

(...)
Ele (Leopold Bloom) tem visto boa parte descer no seu tempo,
deitando ao redor, campo após campo. Campos santos. Mais
espaço teria se enterrassem os mortos de pé. Sentados ou
ajoelhados não dá. De pé? A cabeça poderia algum dia
despontar acima do chão num deslizamento de terra e com
a mão apontando. Todo igual colméia o terreno seria: células
oblongas. E tudo zelado, relva e bordas. Ao seu jardim o Major
Gamble chama de Monte Jerome. Assim é. Deviam ser flores do
sono. Cemitérios chineses com papoulas gigantes crescendo
a produzir o melhor ópio, Mastiansky me disse. Os jardins
botânicos estão lá. É o sangue regando a terra a conceber
nova vida. A mesma ideia daqueles judeus que alguns dizem
terem matado uma criança cristã. Cada homem tem um preço.
O bem preservado cadáver de um senhor gordo, epicurista,
inestimável para o pomar. Uma troca. Pela carcaça de
William Wilkinson, auditor e contador, mais tarde falecido,
três libras e trinta e seis. Com agradecimentos.

Diria que o solo seria bem mais enriquecido com esterco de
cadáver, ossos, carne, unhas, ossuários. Medonho. Ficando
verde e rosa, decompondo-se. Podre logo na terra úmida. Os
velhos magros resistem mais. Então um tipo de sebo um tipo
de ricota. Então enegrecendo, vazando. Então secando.
Mariposas-da-morte. Claro, as células ou o que seja ainda
vivem. Mudam apenas. Praticamente se vive assim. Nada
para se alimentar.

Mas eles devem gerar uma pá de larvas. O solo deve estar
simplesmente agitando-se com elas. É de dar vertigem!
Aquelas belas jovens à beira-mar. Ele olha acima animado
o bastante. Um quê de poder ao ver todos os outros descerem
primeiro. Saber como ele olha a vida. Soltando suas piadas
também: aquece o peito. Aquela do tal boletim. Spurgeon foi
ao céu 4 horas dessa madrugada. 11 horas da noite (hora de
fechar) Não chegou ainda. Peter. Os mortos mesmos os
homens ao menos gostariam de ouvir uma piada ou as mulheres
saberem o que está na moda. Uma pera suculenta ou ponche
de senhoras, quente, forte e doce. Mantenha longe da umidade.
Rir às vezes, é o melhor a fazer. Os coveiros de Hamlet.
Mostram o profundo conhecimento do coração humano.
Não ousam fazer piada sobre os mortos por dois anos ao
menos. De mortuis nil nisi prius. Dos mortos nada além do
prévio.(1) Sair do luto primeiro. Difícil imaginar o próprio
funeral. Parece piada. Ler o anúncio de sua própria morte é,
eles dizem, sinal de vida longa. Uma segunda chance.
Novo contrato de vida.

-Quantos você tem para amanhã?, o zelador perguntou.
-Dois, disse Corny Kelleher. Dez-e-meia e onze horas.

O zelador guardou os papéis no bolso. O carrinho parou de
rodar. Os parentes em luto se separam em cada lado da cova,
cuidadosos entre as sepulturas. Os coveiros traziam o caixão
para a beirada de tijolos, amarrando as cordas nas alças.

Enterrando-o. Viemos enterrar César. (2) Dele os ides de Março
ou Junho. (3) Ele não sabe quem está aqui nem se importa.

Agora quem é aquele ali, o magricela deselegante com
impermeável? Agrora, quem é ele? Eu gostaria de saber. Agora,
eu dari um tostão para saber quem é ele. Sempre aparece alguém
com quem você nunca sonhou. Um cara poderia viver solitário
a vida toda. Sim, poderia. Mas precisaria de alguém para
enterrá-lo ainda que ele tivesse cavado a própria cova. Assim
fazemos. Enterrar, ato humano. Não, as formigas também.
Primeira coisa ocorre a todos. Enterrar os mortos. Assim de
fato Robinson Crusoé. Então o Sexta-Feira enterrou ele.
Toda Sexta-Feira enterra uma Quinta-Feira, se olharmos bem.

Ó, pobre Robinson Crusoé,
Como poderia você fazer?

Pobre Dignam! Por fim, ele descansa na terra em sua caixa.
Se pensar bem, é até desperdício de madeira. Apodrecem
todos. Poderiam inventar um belo carro fúnebre com um tipo
de painel deslizante para depositá-los abaixo. Mas poderia se
recusar a serem enterrados sem o companheiro de sempre.
Tão individualistas. Deixem-na terra nativa. Punhado de barro
da terra santa. Apenas mãe e criança natimorta são enterrados
no mesmo caixão. Vejo o que significa. Vejo. Proteger o quanto
possível mesmo na terra. A casa do irlandês é no caixão. (4)
Embalsamado em catacumbas, múmias, a mesma ideia.

O Sr. Bloom ficou para trás, oc hapéu em mãos, contando as
cabeças desnudas. Doze. Sou o treze. Não. O cara do imper-
meável é o treze. O número da morte. Onde o sujeito se meteu?
Juro que ele não está na capela. Ridícula essa superstição
com o treze.

É de fina lã o terno de Ned Lambert. Tonalidade roxa. Vestia
um assim quando vivemos na rua Lombard oeste. Ele já foi
um cara bem vestido. Mudava de terno três vezes ao dia.
Devia recuperar aquele terno verde que ficou com o Mesias. (5)
Olá. Está tingido. A mulher dele, ah, esqueço que ele não é
casado ou a senhoria dele devia ter reconhecido o tecido para
ele.

O caixão mergulhou fora das vistas, abaixado fácil pelos homens
apoiados nos cavaletes da cova. Eles se esforçam: e tudo está
coberto. Vinte.

Pausa.

Se nós fossemos todos de súbito outro alguém.

Longe um asno zurando. Chuva. Não um asno. Nunca vi um morto,
eles dizem. Vergonha da morte. Eles escondem. Também o pobre
papai se foi.

Gentil e doce ar sopra ao redor das cabeças desnudas num sussurro.
Sussurro. O garoto junto ao túmulo segura a coroa de flores com
ambas as mãos, observando calmamente o escuro espaço aberto.
O Sr. Bloom move-se para detrás do corpulento e gentil zelador.
Sobrecasaco bem cortado. Preocupa a eles talvez ver qual será o
próximo. Bem, será um longo descanso. Não sentir mais. É o
momento que você sente. Deve ser danado de desagradável. Não
se acredita logo. Deve ser engano: outro alguém. Tente a casa
do outro lado. Espere, eu queria. Eu não tenho ainda. Então
sombria câmara da morte. Luz eles querem. Sussurram ao seu
redor. Gostaria de ver um padre? Então vai passear. Delírio que
se oculta por toda a vida. A morte na luta. O sono dele não é
natural. Pressione as pálpebras. Observar o nariz elevado, o
maxilar afundado, as solas do pé amarelados. Pode tirar a almofada
e deitar fora, que ele está condenado. O demônio, naquela pintura
da morte do pecador, aparece para ele como uma mulher. Ao
morrer a abraça junto a camisa. O último Ato de Lucia. “Deverei
nunca mais rever-te
?” Bam! Expira. Se foi, finalmente. As pessoas
falam sobre você um pouco: depois esquecem vocẽ. Lembram de
você nas orações delas. Mesmo Parnell (6) O dia da hera na lapela
já se foi.(7) Então ele seguem adiante: jogam dentro de uma cova
um após o outro.

Estamos rezando agora pelo repouso da alma dele. Esperando que
você esteja bem, e não no inferno. Bela mudança de ares. Saiu da
frigideira da vida e caiu no fogo do purgatório. Ele nem pensa na
cova esperando por ele? Dizem que é de arrepiar em pleno sol.
Alguém andando por aí. Junto de você. O meu está lá além de Finglas,
no lote que comprei. Mamãe, pobre mamãe, e o pequeno Rudy.(8)

Os coveiros usam suas pás e arremessam pesados torrões de barro
para cima do caixão. O Sr. Bloom desviou a face. E se ele estava
vivo todo este tempo? Quê! Pelos céus, seria pavoroso! Não, não:
ele está morto, claro. Claro que ele está morto. Na segunda-feira
ele morreu. Devia ter uma lei para alfinetar o coração para ter
certeza ou um dispositivo elétrico ou um telefone no caixão e
algum tipo de tela com entrada de ar. Bandeira de aflição. Três
dias. Mais tempo a conservá-los no verão. Tão logo são fechados
logo se convence de que não existem.

A terra cai mais suave. Começa a ser esquecido. O que os olhos
veem, o coração não sente. Longe da visão, longe do coração.

(...)

tradução by Leonardo de Magalhaens


Notas do tradutor(LdeM)

O texto de J Joyce é recheado de citações e referências, o que
dificulta a tradução. Mas aos leitores são necessárias as notas
essenciais.

(1)o dito em latim é De mortuis nil nisi bonum, i.e., dos mortos
nada além do bom, quer dizer, dos mortos só se fala bem, só se
elogia, etc. Mr. Bloom muda para 'nisi prius', i.e., nada além do
que já se disse antes (=unless sooner, before), segundo o termo
jurídico para ação civil.

(2)citação de “Júlio César', de W. Shakespeare. “Viemos enterrar
César, não fazer elogios
.”

(3)'ides' são dias especiais romanos. Sendo 15 de março, maio,
julho e outubro, e 13 nos outros meses. Dignam morreu em
'ides' de Junho, i.e., June, 13, 1904.

(4)paródia do dito popular: “cada irlandês tem seu castelo

(5)Mesias é o alfaiate do qual Mr. Bloom é cliente.

(6)Parnell foi um grande líder nacionalista irlandês. Que se
envolveu em adultério e perdeu o apoio dos católicos
tradicionalistas. Está sepultado no Glasnevin Cemetery
de Dublin.

(7)o dia da hera na lapela (Ivy Day; Lá an Eidhneáin) é um
dia (6 de outubro) em memória do líder Parnell.

(8)Rudy, o filho de Leopold Bloom, que apenas viveu 11 dias.


LdeM

sábado, 13 de junho de 2009

BLOOMSDAY! Trecho de ULYSSES (James Joyce)





JAMES JOYCE

ULYSSES

II.4 - [Calypso]

O Sr. Leopold Bloom comia com prazer as vísceras de
animais e aves. Ele gostava de espessa sopa de miúdos,
castanhosas (1) moelas, um estufado coração assado,
fatias de fígado fritas com migalhas de pão, fritas as ovas
de galinhas. Mais do que tudo ele gostava de rins de
carneiro grelhados que davam a seu paladar um fino aroma
de leve perfumada urina.

Rins estavam na mente dele quando ele se movia leve-
mente na cozinha, ao preparar o desjejum dela numa
arqueada bandeja. Na cozinha um ar e uma luz gélidos
mas além das portas uma gentil manhã de verão plena-
mente. O que fez que ele se sentisse um pouco faminto (2).

Os carvões estavam em brasa.

Outra fatia de pão e manteiga: três, quatro: certo. Ela
não gostava de prato cheio. Certo. Ele voltava-se para a
bandeja, levantou a chaleira da chapa e ajeitou tudo sobre
o fogão. Ficou lá, lerda e agachada, o bico saliente. Xícara
de chá logo. Bom. Boca seca. O gato deslizava ao redor
da perna da mesa com a cauda em riste.

-Mingau!

-Ó, aí está, o Sr. Bloom disse, voltando-se do fogão.

O gato num miado de resposta e deslizou novamente ao
redor da perna da mesa, miando. Do jeito que ela faz sobre
a minha escrivaninha. Prr. Coça minha cabeça. Prr.

O Sr. Bloom olhava curioso, gentil, o ágil vulto negro. Fácil de
ver: o macio pêlo lustoso, o alvo botão sob a base da cauda,
os faiscantes olhos verdes. Ele inclinou-se para ela, com as
mãos nos joelhos.

- Leite para as gatinhas, ele disse.

- Mingau! O gato lamentou.

Rotulados de estúpidos. Eles entendem o que dizemos
melhor do que entendemos eles. Ela entende tudo o que quer.
Vingativa também. Querer saber a que eu me assemelho para
ela. Cume de uma torre? não, ela pode saltar sobre mim.

-Morre de medo de galinhas, ele zombou. Com medo de
galilinhas. (3) Nunca vi uma gatinha mais estúpida.

Cruel. A natureza dela. Ratos curiosos nunca guincham.
Parece gostar disso.

- M-mingau-au! O gato altissonante.

Ela piscou os ávidos olhos envergonhados, miando lamurienta
longamente, exibindo dentes brancoleitosos. Ele olhava os
negros sobrolhos estreitando-se com orgulho até os olhos serem
pedras verdes. Então ele foi ao guarda-louça, pegou o jarro que
o leiteiro Hanlon deixou cheio para ele, serviu tépidoborbulhante
leite numa tijela e pousou-a lentamente no piso.

-Gurrhr! Ela lamuriou, apressando-se a lamber.

Ele olhava os pêlos brilhando rijos na fraca luz quando ela
reclinou-se três vezes e lambeu levemente. Saber se é verdade
que se cortar eles depois não caçam mais. Por que? Eles brilham
no escuro, talvez, as pontas. Ou um tipo de sensores no escuro,
talvez.

Ouvia-a lambendo. Presunto e ovos, não. Nada de ovos bons
com esta seca. Requerem pura água fresca. Quinta-feira: não é
um bom dia para um rim de carneiro lá no Buckley's. fritos com
manteiga, um arrepio de pimenta. Melhor um rim de porco lá no
Dlugacz's. Enquanto a chaleira vai fervendo. Ela lambe devagar,
então lambendo até deixar a tigela limpa. Por que línguas tão
ásperas? Para lamber melhor, com todos os poros. Nada que
não possa comer? Ele olhou ao redor. Não.

(...)

(1)nutty- tb. 'louco, insano'
(2)peckish - tb. Irritado, aborrecido
(3)chook - o mesmo que 'chicken', mas duplicado: 'chookchooks'


tradução: Leonardo de Magalhaens


16jun08

domingo, 7 de junho de 2009

sobre ESTILHAÇOS NO LAGO DE PÚRPURA (2/2)




sobre ESTILHAÇOS NO LAGO DE PÚRPURA (2006)
do Poeta WILMAR SILVA/JOAQUIM PALMEIRA



O Eu-bestial diante do olhar do Outro


2/2



Nas suas metamorfoses algo barrocas (ainda que o Eu-lírico se
declare “medieval”/”medievo” (9), “faço medieval este poema que
diz vitupérios
” (5)), o lirismo adquire transtornos imagéticos bestiais,
sendo ave, sendo réptil, sendo fera, formas andromorfas- zoomorfas,
abrigo de invertebrados (numa imagem à la Lautréamont, “tarântula
aninhada nas axilas
” (11), besta selvagem sem rumos.

Mutante e delirante, o Eu se polimorfiza em “cavalo com escamas
nas crinas
” (1), “pássaro/ de asas nos braços” (2), “um lobo eu faminto
(3), “eu gambá” (4), “lontra que sou eu” (4), “pássaro azulão que perdi
o bico
” (10), “tarântula aninhada nas axilas” (11), “mula que debate
bestas nos olhos
” (11), “cavalos selvagens” e “cavalo indomável” (16),
colibri que diz líricas” (23), “cavala com toda a brida” (29), em
conjunções 'cubistas' de pesadelos os mais bizarros, de um ser
humano às voltas com seu interior animalesco, indomesticado,
indomável, sendo e comunicando-se com todas as bestas-feras do
campo tal um louco Nabucodonosor.

Nessa perda de referencial, diante do outro, matriz de toda a
mestiçagem poética, resta apenas os fragmentos poéticos, os próprios
versos. Estes versos – o corpo do poema – são a ligação possível
entre o Eu e o Outro (“você”), assim em explícitos trechos metalinguísticos,
sou este almíscar que fenece nos poemas” (4), “faço medieval esse
poema
” (5), “enredo uma palavra ou arrefeço meu poema” (8), “eu e
minha fazenda de poemas a seus pés
” (19), “um colibri que diz líricas
apenas para você
” (23), “um ser // que engendra poemas” (26),
cavalgar a noite é como cavalgar poemas // que escrevo com sangue
neste lago de veneno/
” (28)

Ponte de ligação sobre o abismo que separa os seres, principal-
mente os entes amados, os outros-Eus desejados, o Poema surge
como referencial em si, única fala única solução. Não é um poema
sobre algo, mas é um poema que é algo – confunde Emissor e
Receptor, perde Referenciais, perverte o Código.

Fragilizado pela própria Mensagem, o Eu se perde em carinhos
e ameaças, a esbravejar com um Outro dentro-fora, espelhado, “você
ave de asas indóceis, indócil e fugaz
” (15), “você tão febril: eu mais
febril ainda
” (17), “você que anda com um pássaro preso” (22), “você
que é letal como uma ponta de punhal
” (22), “você que vem com uma
manada de gumes / lâminas"
(24), “quem é você que diz lançar meu
corpo sem alma
” (30), pois o Outro pode não passar de um espelho
turvo, em águas revoltas, em lago manchado de sangue. “A boca
fala aquilo do que o coração está cheio
”, diz um trecho bíblico, e
aqui o Eu está farto de si-mesmo na mesma proporção em que
ama/odeia o Outro.

Quer-se dizer que para o Eu o Outro não é indiferente. O Outro
pode ser o Inferno (como dizia uma peça de Sartre), mas também
pode ser um Paraíso, Abrigo, derradeiro Refúgio. “você com suas íris,
retinas, você com olhos // que me olhem e descubram íris, retinas
” (20),
quando ainda resta o olhar do Outro e uma possível compreensão,
sou este mulo que apenas você há de desvendar” (11)

Ciente de sua imagem – aquela que é sempre no olhar do Outro –
o Eu-lírico em suas andanças de metamorfoses nada mais faz do
que “cavalgar o poema”, nada mais do que estilhaçar-se em versos,
em imagens embaralhadas de si mesmo, possuidor e posse, vítima
e carrasco, face e bofetada, pele e punhal, Narciso e lago espelhado.


Jul/07

por
Leonardo de Magalhaens


http://leoliteratura.zip.net/

sobre ESTILHAÇOS NO LAGO DE PÚRPURA (1/2)






sobre ESTILHAÇOS NO LAGO DE PÚRPURA (2006)
do Poeta WILMAR SILVA/JOAQUIM PALMEIRA


O Eu-bestial diante do olhar do Outro

1/2


Dizem os embriologistas que o embrião humano, em seu
desenvolvimento, passa por várias fases em que se assemelha
aos animais mais primitivos na Escala Evolutiva, como peixes,
anfíbios, reptéis.

Dizem os psicólogos que a noção do Eu, quando da infância,
engloba todo o mundo, tudo é uma projeção-do-Eu, e que o
Eu-social é formado pela interação com os Outros-Eus, a partir
da aceitação destes Outros-Eus. O narcisismo propicia, assim,
a formação da Identidade. Somos algo a partir do olhar do Outro.

Dizem os Poetas que a linguagem é tão-somente uma forma
de deixar vazar, transbordar mesmo, o Eu amordaçado pelas
máscaras da Identidade.

Ciências, pseudo-Ciências e lirismos à parte, todas as
afirmações fazem algum sentido. Quando o desenvolvimento
do ser humano ainda conserva algo de animalesco, de selvagem.
Ou quando o Eu nada mais é do que reflexo do Outro, quando
vivemos querendo agradar gregos e troianos. Ou quando a fala
poética nada mais é do que desabafo torrencial de amores e
desafetos, de dores e prazeres.

O Poeta torna-se o animal que esbraveja suas intimidades para
uma platéia, uma quantidade incalculada de Outros. Assim se vê
o Eu-lírico do Autor Wilmar Silva, em metamorfoses de um Eu
estilhaçado em várias imagens sedutoramente bestiais e jogadas
contra o olhar do Ouro, espelho e “leitor hipócrita”, narciso-duplo
e “meu irmão”.

Um fluir de imagens do corpo em si-mesmo, um corpo plenamente
sondado e desvelado, integro e sacralizado, selvagem exaltado. “É
em nossa natureza selvagem que melhor nos restabelecemos de
nosso movimento anti-natural, de nossa espiritualidade..
.”, escreveu
F. Nietzsche em “Crepúsculo dos Ídolos”. Corpo não menor que a
alma, não uma prisão da alma, mas corpo-alma.

Em ensaio anterior, abordamos o egocentrismo – o Eu-
onipresente – em “Estilhaços”, contudo tal perspectiva sofre um
abalo quando percebemos que nos 390 versos, 33 versos fazem
referências ao Outro, desde o 1o. Verso: “eu quebrado por você
sou estilhaços no lago de púrpura


O Outro surge como um Receptor do discurso, seja o Ser-Amado,
seja o Leitor-Cúmplice, um Outro que é a origem e o destino de
todo o discurso poético,

você é este fogo que me entranha” (12)

ou

mas agora no rubor de quem escreve um tormento
sou eu o mesmo que vem de longe em busca de você/
você tão febril: eu mais febril ainda/ eu sozinho
” (17)

Um Outro responsável pelo desassossego do Eu, que inclinado
sobre o lago encontra a imagem do Si-mesmo, o Narciso poético
de Identidade estilhaçada. Sua identidade bestial a “cavalgar poemas
(28), em múltiplas formas que personificam seus estados emocionais.


Continua...


por
Leonardo de Magalhaens


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terça-feira, 2 de junho de 2009

sobre CACHAPREGO de Wilmar Silva (2/2)

sobre a obra Cachaprego
(Anome Livros, 2004)
do poeta e ator Wilmar Silva


Ousadia da Reforma Agrolírica


2/2


Mas aí o Leitor aponta primeiro a 'estranheza' linguística – do
mesmo jeitinho que fizeram com o Rosa – e deixa de lado o
Chamamento: ousas conhecer a ti mesmo? (coisa que um
certo Sócrates de um certo Platão já tinha dito há mais de
dois mil anos!) A linguagem 'estranha' é apenas um teste: o
primeiro do labirinto (e confesso que eu mesmo – o
Crítico-Mor – estremeci.) A linguagem é afiado espinho de
cactus, é lấmina de abrir peixe, é ferida gotejando sem
socorros. Então, o Leitor dá um salto e berra: que
diabos é isto?

Cansao/ esperoia / aceino / deulgum / meues / liqueido / ardsente /

nsanhaçom caocantante / papaeis / escarevo / dsaesearto / cantochaoa

aégua / maeu / pestge / óipio / diamtante / dianamite / atrauvesso /

carnefecinan / jutasombiram / mesmios / quebraanzoal / ntoviago /

bicosquebrados / gambvás / deumalontra / árovredod / estilhasasdos



eis alguns exemplos de 'estranhezas' que pontuam o texto hermético
(eu adoro esta palavra!) e à espera da pronta intervenção de um
especialista em léxicos – aquele que vai explicar, catalogar e dar
significações engessadas ao verbetes, igualzinho fizeram com o
léxico do Rosa. (Então, precisaremos de um outro 'Wilmar Silva'
e assim por diante...)

Mas creio que tais 'verbetes' nascem de um espontaneísmo da
Escrita, tal uma escrita espontânea dos Surrealistas, muito usada
pelos escritores-datilógrafos (vide um Jack Kerouac ou uma
Clarice Lispector), onde a escrita hipnótica é intensificada pelo
dinamismo dos dedos – sendo a caligrafia mais lenta... No mais,
experimentem 'traduzir' tais 'neologismos' (ou 'neo-grafias') e elas
perderam a 'magia' (do mesmo modo que traduzir “Ulysses” e
Finnegans Wake”, ou passar “Grande Sertão” para o alemão.
(Quem já leu a correspondência de Rosa com o tradutor alemão
Curt Meyer-Clason? É sensacional) Experimentem:

cansaço / espera / aceno / meus eus / líquido / arde sente (ardente)/

ou

canto - chão / notivago / gambás / árvore-arvoredo / estilhaçados /

o que conseguimos? Somente voltar a 'forma de dicionário'
(aquela forma engessada da palavra, da qual o Poeta a libertará)
e deixar 'tudo como está', sem nenhuma tentativa de 'exumar'
a proto-linguagem, aquela antes da 'burocratização' do mundo.
(O Burocrata é aquele que 'desencanta' o mundo, segundo uma
leitura de Weber)

A presença do corpo e da sexualidade é outra afronta. Desde
seus primeiros versos, o Poeta Wilmar Silva mostra que é um
corpo falante, não um 'figura de linguagem'. Seu corpo não é
uma metáfora, é entranhas, cuspe, suor, cheiro, gestos. Não é
um 'corpo literal' mas um 'corpo de delito', a denunciar quando
a Palavra despreza o Corpo (graças ao nosso Platonismo cristão,
que continua atacando o Corpo. O que muito incomodava
Whitman, que escreveu: “Sagrado é o corpo do homem / e
também sagrado é o corpo da mulher, /sagrado — não importa
de quem seja
.” )

E o Poeta esta ciente da sua 'missão' de resgatar o simbolismo
e a validade do Corpo, neste tempo de hipocrisia, outdoor de
lingerie e revistas pornográficas na sala-de-estar. A língua ferina
do Poeta ousa dizer o que anda escondido nas mentes sujas
que andam com poses de santorrões, em linguagem de Tartufo
pra inglês ver.

meu destino é ser um animal felino e provocar a fagulha de olhos
que me olhemantes que os olhos virem gralhas longe das folhas que folham
os bicos deminhasbotas que farfalham atrás de linces a cego faro olho o próprio
olho da fome ondesou arrefecido no cardume do escuro e mais que a fome do mundo
e mais que aboca famélica sou vadio


como se a Poesia fosse mesmo 'missão' (não mais um Sentido que
inventamos para viver, além dos 'imperativos fisiológicos) e o Poeta
mesmo vivesse se espantando com suas ousadias (aliás, sem
'assombro' o Poeta mesmo não escreveria, não recitaria, não
saíria de debaixo das cobertas), como um cão a se surpreender
quando ouve o próprio uivo para a lua,


sou espanto e sombra sou espantado e sou o espantalho na casa delona
onde sou vira-lata e meu latido fosse uma fala e minha fome
tivesse
uma bandeja e minha sede uma talha eu caço meu semblante na
poça
d’água e um fogopara afogar a sede que racha a boca onde procuro
um açude piscoso na lâmpadaque me enxerga de longe através de
árvores as sombras de minhas pálpebras onde moinhos de
sobrancelhas arremessam eu todo calado e meu mundo mudo
eu com minha lanterna
presa dentro de meus olhos e dentro de minha boca uma palavra

impronunciável como o amor


Repito: sem o 'assombro', o Poeta não produz (perdoem-me este
industrialismo), então o Poeta precisa, urgentemente, sempre se
assombrar, se surpreender, se deixar laçar por novidades léxicas
e fonéticas, ou gestação de palavras, ou pretensão de Desbravador,
para que a Novilíngua possa ser concretizada – e, se possível,
publicada. É esta Novilíngua de “Cachaprego” (e de ANU, e de
Arranjos, e de Estilhaços) é que denomino (sem patente ainda)
Agrolírica. E Reforma Agrolírica é a Reforma Agrária proposta por
um ousado Poeta Wilmar Silva, para remodelar nossas sensibildades
urbanas - asfaltadas, concretadas e banalizadas.


Maio/09


Por
Leonardo de Magalhaens
http://leoliteratura.zip.net