Literatura
e o irracionalismo / surrealismo
na
obra Onde
vais, drama-poesia?
de
Maria Gabriela Llansol (1931-2008)
Leonardo de Magalhaens
Fale/UFMG
Introdução
Ao relacionar sonho e ficção,
Sigmund Freud, o fundador da Psicanálise, em seu artigo Escritores
Criativos e Devaneios,
se pergunta sobre o efeito das obras de ficção/fantasia sobre os
leitores, o modo como as fantasias e devaneios dos autores atuam
sobre os leitores, sobre as relações entre as fantasias e os
desejos ocultados, sobre a fantasia enquanto reconquista do mundo da
infância. Qual o padrão egocêntrico nas fantasias? A narrativa
pode desvelar o/a autor/a? A biografia ilumina os meandros da criação
artística? O efeito sobre os leitores advém da identificação com
os biografemas? Ou é devido às fantasias compartilhadas?
Freud argumenta que as
fantasias fazem efeito sobre os leitores pois não são apenas as
fantasias do autor, mas ocorre uma confluência de fantasias, em suas
sublimações e deslocamentos, quando a partir da fantasia do Outro
há uma aceitação da fantasia do Eu. “Em
minha opinião, todo prazer estético que o escritor criativo nos
proporciona é da mesma natureza desse prazer preliminar, e a
verdadeira satisfação que usufruímos de uma obra literária
procede de uma liberação de tensões em nossas mentes.”
Aqui uma verdadeira catarse ocorre quando tomamos contato com uma
fantasia alheia reelaborada de modo estético. Assim é a literatura
enquanto tentativa de dizer – e assim desvelar - o mais profundo
Eu.
Então como a literatura, e
mais especificamente o surrealismo e o realismo-mágico, liberta –
ou possibilita a libertação de – os conteúdos inconscientes nas
elaborações das obras? Como se apresentam os conteúdos de fantasia
e de devaneio nas obras dos surrealistas ou dos realistas-mágicos,
dedicados ao desvelamento de absurdos? Será o transbordar do mundo
onírico o modo mais comum de apresentação dos conteúdos
inconscientes? Tanto a poesia quanto a prosa poética são modos
ideais para manifestações do recalcado, ou se equivalem às obras
plásticas, como pintura e escultura? Imagens ou palavras são os
elementos ideais para expressão do não-racional? Ou a linguagem
ainda carrega racionalidade suficiente para bloquear o indizível? A
loucura, tão idealizada e elogiada pelos surrealistas, seria o
estado-limite para a expressão? Ou a loucura seria um incomunicável
e, assim, o louco um alienado da linguagem? O surrealista simula ser
louco, uma vez que a loucura seria improdutiva?
O
surrealismo,
também o realismo mágico,
o drama do absurdo, na poesia e na prosa, e outras estéticas
(pintura, teatro, cinema, música), é evidente em autores os mais
diversos, de várias épocas e nacionalidades, são autores não
apenas contadores de estórias alheias, inventadas ou fábulas, mas
falam de seus dramas, desvelam suas inquietações e desassossegos,
de modo original, singular e revelador. Não que seja compreensível,
pois trata-se do mundo interior, profundo de quem escreve. Uma
profundidade complexa não comunicável, não representada, mas
apresentada. Não se espera compreensão. Que o leitor adentre o
absurdo e se identifique no teatro de espelhamentos.
O
irracional na obra Onde Vais, Drama-Poesia?
Encontramos na Escrita da
autora portuguesa Maria Gabriela Llansol (1931-2008), tradutora de
Arthur Rimbaud, Paul Verlaine, Charles Baudelaire e Paul Éluard,
dentre outros; alguns traços deste irracionalismo, ou mesmo
surrealismo, como modo de explicitar o mundo enquanto indizível,
mesmo incompreensível. Pois a vida não pode ser explicada, e a
literatura revela este sentimento de incompreensão por parte do
Autor/a, ou sujeito textual/eu lírico.
Podemos destacar alguns
trechos de Onde
Vais, Drama-Poesia?
enquanto amostra de uma Literatura além do entendimento, de uma
Escrita a partir do corpo, a partir de uma apreensão / vibração
corporal do vivido e que deve se mostrar no escrito na forma de um
'fulgor',
-->
Nenhum
de nós estava a imaginar. Estávamos a conjecturar fisicamente no
escuro. As imagens sabem que têm de caminhar para nós com o seu
sexo de ler. Sem ele, são propriamente sem texto. Sabem? Sim, sabem.
Utilizamos pouco o nosso sexo próprio pra fazer. Utilizamo-lo,
sobretudo, para sentir e sondar. Como crianças em perpétuo
crescimento, nunca estáveis numa única imagem. O que sentimos
fisicamente com o sexo que temos, o que as imagens vêm procurar em
nós, não é o sexo que praticamos,
é
a vibração pelo vivo e pelo novo. Chamei-lhe fulgor porque é assim
que sinto. [p. 33]
Qual
a utilidade racional
da obra poética? A quem interessa a poesia? Apenas ao sujeito que se
expressa, ou ao menos tenta? A poesia não é interessante aos
'construtores e formadores',
aqueles que racionalizam, que planejam, que “algarismam
as manhãs” (em verso de Mário
de Andrade, poeta brasileiro modernista) e a autora se pergunta: “por
que querem submeter a visão à razão?”
[p. 47]
Pois
é no âmbito do sonho o lugar da metáfora num tentativa de se
expressar, num embate mundo onírico versus realidade, com suas
contradições e interferências, no que pode ser descrito ou
simbolizado, se possível em metáforas,
escrevia
um sonho que tivera_____
os
sexos não podem ser trocados. Era uma espécie de segredo
metafísico.
É
possível, pensei, mas qual é a realidade que essa metáfora teme?
[p. 54]
A
dor não pode ser pensada, mas pode ser simbolizada na Escrita, pode
ser aliviada pela expressão, pela tentativa de uma figuração, a
partir dos manifestos nos sonhos, do que interrogamos enquanto
conscientes, quando nos acreditamos donos de uma razão,
a
sua dor é demasiado pura para poder ser pensada, é certo; o
texto
decide oferecer-lhe um princípio de palavra, um isco,
uma
hipótese,
a
figura ouve-a,
envolvida
numa recordação que parece gozar de uma completa autonomia
[p. 88]
Quando
somente sobram interrogações depois que o sonho se vai, se
esvanece, então eis que a razão tenta explicar aquele outro mundo
“muito longe” onde o irracional viceja sem amarras da
consciência,
quase
todos os nossos sentimentos, deus meu!, vem de muito
longe,
ainda nem sequer o ser humano fora imaginado,
se
o efeito é sonhado pela causa, ainda os humanos não haviam
sido
sonhados,
e
continuamos,
a
interrogarmo-nos sobre quem nos sonhou
porque
deus é palavra demasiado grande e complexa para o
efeito,
e
explosão inicial demasiado impessoal para as pessoas sonhadas
que
somos, [p. 114]
Há
um Eu que escreve sobre um Eu que sonhava, e há um desnível entre o
'vivido' no mundo onírico' e que se busca recuperar no mundo do
Real, com a mediação da linguagem – um desnível que é
impossível de ultrapassar, de superar, então sobram imagens
desfocadas, e sem-sentido (em nonsense)
para a compreensão não-onírica.
Em
Busca da Troca Verdadeira
XL
Os
cogumelos são, de facto, nus e, na orla do bosque, confundem-se
com
o que eu não gostaria de ser; este cogumelo sonha,
a
Sulamita fechou-o numa gaiola e, posto em pássaro, começou
a
fenecer, e tornou-se pálido; mais tarde, lembrou-se dele
e
ele rapidamente voou para uma nascente a alimentar-se de
água,
de insectos e de perfumes;
[…]
se
o seu sonho fosse colhido, e perdesse o seu significado,
seria
a morte do meu micorizo;
corram arbustos, vejam na su-
perfície
da
água,
atentem
nos ramos,
[…]
[p.
146-148]
O
possível e explicitado entrelaçar de Poesia & corpo &
fantasia na manifestação da Escrita, tentativa de expressão ainda
que incompreensível, como notamos em poemas de Arthur Rimbaud
(1854-1891) poeta simbolista (e também pré-surrealista?) francês,
como bem sabe a autora Llansol, tradutora do autor de O
Barco Bêbado, e de outros
autores franceses, tais como Paul Verlaine, Charles Baudelaire, Paul
Éluard, dentre outros.
Apoptose
VI
já
vos falei de Rimbaud, já vos li poemas seus,
enquanto
dormitais, de olho aberto e cauda repousada; é, na
paz
momentânea que nos envolve, que mais se apura o grito
que
lhe estilhaçou o peito:
É
nos odores que se realizam as trocas, sobretudo, nos sa-
bores
incomunicáveis;
'faz
o texto',
dizeis,
faz o poema ________________________ chorar
dentro
das paredes da Casa, com a certeza de que a Casa es-
cuta
musicalmente o choro,
sendo
as lágrimas, na voz que murmura o texto,
um
simples som; [ p. 176]
Em
que nível o texto é compreensível ? O que o texto comunica? Se é
que é possível comunicar. A Escrita pode ser desconhecida para o/a
autor/a, que pode ignorar se o/a compreendem, se conseguem apreender
os meandros da expressão,
ofereço-lhes
o texto que escrevo, ignoro se o entendem, como
ignoro
se a minha presença activa bate asas como a borboleta
que
causa um tufão sobre o Pacífico
'é
para si', e concluo 'é para nós',
exactamente
como acontece ao texto que ouve o mar bramir
na
copa das árvores,
a
dança frenética dos elementos,
as
folhas voam em sopro e em escrita ______________ os
corpos,
nus, repousam como falésias,
os
corpos nus das flores rasteiras
em
pleno esplendor. Não sabem o que o despertar lhes trará,
sob
a lei da refulgência da
natureza. [VII, p. 179]
A
presença do corpo, dos elementos da natureza, das relações /
correspondências entre o natural e o irracional aprofundam os laços
entre o ser que escreve e o ser que sofre / vivencia, num elo de
imagens que tentam reproduzir sensações, não pensamentos, ousar
contatos, não conceitos. Sua voracidade de Escrita tira as cascas e
mostra os cernes, sem pudores. Há corpos nus, há plantas rasteiras,
há fendas não penetradas, na dança
frenética da vida inexplicável.
Somente uma linguagem sem-racionalidade, ou surreal, pode ousar uma
fala, um testemunho, não só de Escrita, mas de Vida.
O
fato de a autora Llansol não se deixar na superfície do texto, mas
sondar meandros outros numa Escrita-fulgor evidencia sua importância
como porta-voz de uma interpretação não-racional, até surreal, da
vida que não nos concede qualquer explicação, uma vez que vivemos
sem-sentido e no absurdo, sem nada que seja amparo a não ser nossas
próprias ficções, de deuses e anjos, de avatares e entidades,
aguardando uma vida no além sem saber como viver esta vida em que
ora nos encontramos.
BRETON,
André. Manifesto
Surrealista [1924].
Disponível online
em
http://www.marxists.org/portugues/breton/1924/mes/surrealista.htmAcesso
em 08.10.2013.
FREUD,
Sigmund. Escritores
Criativos e Devaneio.
1908 [1907] In:
Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de
Sigmund Freud.
Volume IX. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
_______
. Interpretação dos Sonhos, A [1900] In:
Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de
Sigmund Freud.
Volumes IV e V . Rio de Janeiro: Imago, 1976.
LLANSOL,
Maria Gabriela. Onde
vais, Drama-Poesia?
Lisboa, Relógio D’Água Editores, 2000.
Nenhum comentário:
Postar um comentário