terça-feira, 26 de agosto de 2014

Literatura e o irracionalismo em Onde vais, drama-poesia?




Literatura e o irracionalismo / surrealismo
na obra Onde vais, drama-poesia?
de Maria Gabriela Llansol (1931-2008)


Leonardo de Magalhaens


Fale/UFMG


Introdução


       Ao relacionar sonho e ficção, Sigmund Freud, o fundador da Psicanálise, em seu artigo Escritores Criativos e Devaneios, se pergunta sobre o efeito das obras de ficção/fantasia sobre os leitores, o modo como as fantasias e devaneios dos autores atuam sobre os leitores, sobre as relações entre as fantasias e os desejos ocultados, sobre a fantasia enquanto reconquista do mundo da infância. Qual o padrão egocêntrico nas fantasias? A narrativa pode desvelar o/a autor/a? A biografia ilumina os meandros da criação artística? O efeito sobre os leitores advém da identificação com os biografemas? Ou é devido às fantasias compartilhadas?
Freud argumenta que as fantasias fazem efeito sobre os leitores pois não são apenas as fantasias do autor, mas ocorre uma confluência de fantasias, em suas sublimações e deslocamentos, quando a partir da fantasia do Outro há uma aceitação da fantasia do Eu. “Em minha opinião, todo prazer estético que o escritor criativo nos proporciona é da mesma natureza desse prazer preliminar, e a verdadeira satisfação que usufruímos de uma obra literária procede de uma liberação de tensões em nossas mentes.” Aqui uma verdadeira catarse ocorre quando tomamos contato com uma fantasia alheia reelaborada de modo estético. Assim é a literatura enquanto tentativa de dizer – e assim desvelar - o mais profundo Eu.
       Então como a literatura, e mais especificamente o surrealismo e o realismo-mágico, liberta – ou possibilita a libertação de – os conteúdos inconscientes nas elaborações das obras? Como se apresentam os conteúdos de fantasia e de devaneio nas obras dos surrealistas ou dos realistas-mágicos, dedicados ao desvelamento de absurdos? Será o transbordar do mundo onírico o modo mais comum de apresentação dos conteúdos inconscientes? Tanto a poesia quanto a prosa poética são modos ideais para manifestações do recalcado, ou se equivalem às obras plásticas, como pintura e escultura? Imagens ou palavras são os elementos ideais para expressão do não-racional? Ou a linguagem ainda carrega racionalidade suficiente para bloquear o indizível? A loucura, tão idealizada e elogiada pelos surrealistas, seria o estado-limite para a expressão? Ou a loucura seria um incomunicável e, assim, o louco um alienado da linguagem? O surrealista simula ser louco, uma vez que a loucura seria improdutiva?

O surrealismo, também o realismo mágico, o drama do absurdo, na poesia e na prosa, e outras estéticas (pintura, teatro, cinema, música), é evidente em autores os mais diversos, de várias épocas e nacionalidades, são autores não apenas contadores de estórias alheias, inventadas ou fábulas, mas falam de seus dramas, desvelam suas inquietações e desassossegos, de modo original, singular e revelador. Não que seja compreensível, pois trata-se do mundo interior, profundo de quem escreve. Uma profundidade complexa não comunicável, não representada, mas apresentada. Não se espera compreensão. Que o leitor adentre o absurdo e se identifique no teatro de espelhamentos.




O irracional na obra Onde Vais, Drama-Poesia?


Encontramos na Escrita da autora portuguesa Maria Gabriela Llansol (1931-2008), tradutora de Arthur Rimbaud, Paul Verlaine, Charles Baudelaire e Paul Éluard, dentre outros; alguns traços deste irracionalismo, ou mesmo surrealismo, como modo de explicitar o mundo enquanto indizível, mesmo incompreensível. Pois a vida não pode ser explicada, e a literatura revela este sentimento de incompreensão por parte do Autor/a, ou sujeito textual/eu lírico.
Podemos destacar alguns trechos de Onde Vais, Drama-Poesia? enquanto amostra de uma Literatura além do entendimento, de uma Escrita a partir do corpo, a partir de uma apreensão / vibração corporal do vivido e que deve se mostrar no escrito na forma de um 'fulgor', 

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Nenhum de nós estava a imaginar. Estávamos a conjecturar fisicamente no escuro. As imagens sabem que têm de caminhar para nós com o seu sexo de ler. Sem ele, são propriamente sem texto. Sabem? Sim, sabem. Utilizamos pouco o nosso sexo próprio pra fazer. Utilizamo-lo, sobretudo, para sentir e sondar. Como crianças em perpétuo crescimento, nunca estáveis numa única imagem. O que sentimos fisicamente com o sexo que temos, o que as imagens vêm procurar em nós, não é o sexo que praticamos,
é a vibração pelo vivo e pelo novo. Chamei-lhe fulgor porque é assim que sinto. [p. 33]
 

Qual a utilidade racional da obra poética? A quem interessa a poesia? Apenas ao sujeito que se expressa, ou ao menos tenta? A poesia não é interessante aos 'construtores e formadores', aqueles que racionalizam, que planejam, que “algarismam as manhãs” (em verso de Mário de Andrade, poeta brasileiro modernista) e a autora se pergunta: “por que querem submeter a visão à razão?” [p. 47]

        Pois é no âmbito do sonho o lugar da metáfora num tentativa de se expressar, num embate mundo onírico versus realidade, com suas contradições e interferências, no que pode ser descrito ou simbolizado, se possível em metáforas,

              
escrevia um sonho que tivera_____
os sexos não podem ser trocados. Era uma espécie de segredo
metafísico.
É possível, pensei, mas qual é a realidade que essa metáfora teme? [p. 54]



A dor não pode ser pensada, mas pode ser simbolizada na Escrita, pode ser aliviada pela expressão, pela tentativa de uma figuração, a partir dos manifestos nos sonhos, do que interrogamos enquanto conscientes, quando nos acreditamos donos de uma razão,


a sua dor é demasiado pura para poder ser pensada, é certo; o
texto decide oferecer-lhe um princípio de palavra, um isco,
uma hipótese,
a figura ouve-a,
envolvida numa recordação que parece gozar de uma completa autonomia 
[p. 88]



       Quando somente sobram interrogações depois que o sonho se vai, se esvanece, então eis que a razão tenta explicar aquele outro mundo “muito longe” onde o irracional viceja sem amarras da consciência, 
               
quase todos os nossos sentimentos, deus meu!, vem de muito
longe, ainda nem sequer o ser humano fora imaginado,
se o efeito é sonhado pela causa, ainda os humanos não haviam
sido sonhados,

e continuamos,
a interrogarmo-nos sobre quem nos sonhou
porque deus é palavra demasiado grande e complexa para o
efeito,
e explosão inicial demasiado impessoal para as pessoas sonhadas
que somos, [p. 114]
 


       Há um Eu que escreve sobre um Eu que sonhava, e há um desnível entre o 'vivido' no mundo onírico' e que se busca recuperar no mundo do Real, com a mediação da linguagem – um desnível que é impossível de ultrapassar, de superar, então sobram imagens desfocadas, e sem-sentido (em nonsense) para a compreensão não-onírica.

Em Busca da Troca Verdadeira
XL

Os cogumelos são, de facto, nus e, na orla do bosque, confundem-se
com o que eu não gostaria de ser; este cogumelo sonha,

a Sulamita fechou-o numa gaiola e, posto em pássaro, começou
a fenecer, e tornou-se pálido; mais tarde, lembrou-se dele
e ele rapidamente voou para uma nascente a alimentar-se de
água, de insectos e de perfumes;

[…]


se o seu sonho fosse colhido, e perdesse o seu significado,
seria a morte do meu micorizo; corram arbustos, vejam na su-
perfície da
água,
atentem nos ramos,

[…]
[p. 146-148]



O possível e explicitado entrelaçar de Poesia & corpo & fantasia na manifestação da Escrita, tentativa de expressão ainda que incompreensível, como notamos em poemas de Arthur Rimbaud (1854-1891) poeta simbolista (e também pré-surrealista?) francês, como bem sabe a autora Llansol, tradutora do autor de O Barco Bêbado, e de outros autores franceses, tais como Paul Verlaine, Charles Baudelaire, Paul Éluard, dentre outros.

Apoptose
VI

já vos falei de Rimbaud, já vos li poemas seus,
enquanto dormitais, de olho aberto e cauda repousada; é, na
paz momentânea que nos envolve, que mais se apura o grito
que lhe estilhaçou o peito:

É nos odores que se realizam as trocas, sobretudo, nos sa-
bores incomunicáveis;
'faz o texto',

dizeis, faz o poema ________________________ chorar

dentro das paredes da Casa, com a certeza de que a Casa es-
cuta musicalmente o choro,
sendo as lágrimas, na voz que murmura o texto,
um simples som; [ p. 176]


Em que nível o texto é compreensível ? O que o texto comunica? Se é que é possível comunicar. A Escrita pode ser desconhecida para o/a autor/a, que pode ignorar se o/a compreendem, se conseguem apreender os meandros da expressão,

ofereço-lhes o texto que escrevo, ignoro se o entendem, como
ignoro se a minha presença activa bate asas como a borboleta
que causa um tufão sobre o Pacífico
'é para si', e concluo 'é para nós',

exactamente como acontece ao texto que ouve o mar bramir
na copa das árvores,
a dança frenética dos elementos,
as folhas voam em sopro e em escrita ______________ os
corpos, nus, repousam como falésias,
os corpos nus das flores rasteiras
em pleno esplendor. Não sabem o que o despertar lhes trará,
sob a lei da refulgência da natureza. [VII, p. 179]


         A presença do corpo, dos elementos da natureza, das relações / correspondências entre o natural e o irracional aprofundam os laços entre o ser que escreve e o ser que sofre / vivencia, num elo de imagens que tentam reproduzir sensações, não pensamentos, ousar contatos, não conceitos. Sua voracidade de Escrita tira as cascas e mostra os cernes, sem pudores. Há corpos nus, há plantas rasteiras, há fendas não penetradas, na dança frenética da vida inexplicável. Somente uma linguagem sem-racionalidade, ou surreal, pode ousar uma fala, um testemunho, não só de Escrita, mas de Vida.

       O fato de a autora Llansol não se deixar na superfície do texto, mas sondar meandros outros numa Escrita-fulgor evidencia sua importância como porta-voz de uma interpretação não-racional, até surreal, da vida que não nos concede qualquer explicação, uma vez que vivemos sem-sentido e no absurdo, sem nada que seja amparo a não ser nossas próprias ficções, de deuses e anjos, de avatares e entidades, aguardando uma vida no além sem saber como viver esta vida em que ora nos encontramos.




REFERÊNCIAS


BRETON, André. Manifesto Surrealista [1924]. Disponível online em http://www.marxists.org/portugues/breton/1924/mes/surrealista.htmAcesso em 08.10.2013.
FREUD, Sigmund. Escritores Criativos e Devaneio. 1908 [1907] In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Volume IX. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
_______ . Interpretação dos Sonhos, A [1900] In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Volumes IV e V . Rio de Janeiro: Imago, 1976.
LLANSOL, Maria Gabriela. Onde vais, Drama-Poesia? Lisboa, Relógio D’Água Editores, 2000.












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