quinta-feira, 7 de agosto de 2014

As Cortinas / O Espelho / O Cenário -- de Floriano Martins





FLORIANO MARTINS



AS CORTINAS

 
Os passos correm de um lado para outro do cenário a preparar as sombras para um próximo ato. Confundem-se na marcação e as cortinas se põem a rir. Ouço teu corpo por toda noite, a inventariar os modos com que nos desfizemos uns dos outros. A memória postergada pelo bailado sibilante do sangue arrebatando a beleza das mãos dos barbantes que prendiam uma vítima à outra. Como seguir a rota de seus desvãos? Como abrir covas no alongamento de tuas quedas? O que fizeram do adeus que não demos a todos os nossos vícios? As vozes iam chegando para o ensaio. As cortinas vigiavam os improvisos com um olhar enfeitiçado. As falhas se punham imóveis. As sombras se engrenavam em círculos, repetições que se tornam pegajosas em meio a uma sentença: o texto não te salva.

Pequenas fraudes de enumeração. Ruídos girando em sentidos confusos. Corpos embaralhados com as sombras que representam. Meus dedos foram deglutidos por teus seios como um metal que se liquefizesse em nome do desejo. Tua felicidade se disfarça em peixe no vestíbulo de meus sonhos. Uma mesma chama viola nosso tormento. Onde foram recolher essas frases? As cortinas mal disfarçam a dúvida de que esse abuso transborde. O cenário ainda não pôs a roupa devida. Há um excesso de sangue em relação ao quinhão de corpos de que podem se valer os atos. São bocados de dramas desencontrados. Não se sabe se houve crime ou festa. Os hábitos são capazes de tudo. Meu corpo não sabe viver sem teus particípios. Não devo socorro ao encaixe de tua pele em meu desejo. És testemunha de tudo quanto me sangras. As cortinas confabulam o imaginário. Riem porque sabem que são fantoches que podem ser retirados de si.

Tudo é muito fácil no balcão dos feitiços. Umas sombras rasgadas, símbolos com ar fatal de enigmas insolúveis, testemunhas improváveis. Tudo em nossa vida se repete de maneira tão maçante que nos fechamos para a intromissão do encantador. Os barbantes amarravam os fantoches em uma combinação de elementos palpitantes no encaixe. A morte aprisionada por suas razões de ser. Mesmo o corpo quebrado da cena ainda suspirava. Havia lugar para tudo. As feridas se viciaram em recursos fáceis. Uma orgia de fantoches, uma matança de títeres. Os passos correm de um lado para outro do cenário a preparar as sombras para um próximo ato.

[Floriano Martins]




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O ESPELHO

 
Um espelho caminha por entre as ruas, atormentado por imagens que insistem em acusá-lo de demasiada passividade. As sombras projetadas sobre sua angústia tricotam um manto de luxuriosas figuras em transe. Nada comparte a metafísica frustrada dessa realidade desfeita em síncopes aparentes. O espelho sabe que recai sobre si o embaraço de estampas que flutuam no sentido suspenso de suas representações. Como explicar agora o tráfico intenso de inversões? Hesita em seu caminhar. Os passos começam a jorrar uma torrente de vultos que se dispersam assustados. Saltam do restante do corpo emblemas, fotocópias, figurações agônicas. Incontáveis rostos salpicam do olhar aturdido. A esta altura o poema não pensa senão em uma maneira de retirar de cena a ruinosa aparição do espelho em sua escritura automática.

O palco terá que ser refeito em destroços? A arte evapora-se em aposentos vulgares rendida por uma transcendência que a torna ausente de si. O espelho já não recusa a desigualdade de seus modelos. As imagens são inconstantes, é da natureza delas, confessa cabisbaixo sem reter uma imitação que seja do que andara ressoando. Diante de todos insiste que não alonga cenas, que a plateia se encanta pelo quadro real que ele próprio configura. E enquanto depõe fac-símiles se agitam como se garantissem a permanência da realidade.

Já não olha para parte alguma. Reflete um vazio ainda mais carente de sentido. Diante de tudo, qual a extensão de nossa reação elementar? E já de tal maneira decaído no abalo de sombras decompostas, o espelho se retrai, e toda forma se cala. A plateia vocifera, desambientada. Qualquer que seja a maneira com que o espelho prove sua humanidade, jamais será aceito se recusar espelhá-la. A ilusão não teria outra dieta mais favorável à sua gula.


[Floriano Martins]


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O CENÁRIO

 
Ao afastar a cômoda uns dias retidos caíram por trás como fulgores que fossem reencontrados. Lâmpadas disformes soletravam bosques por todas as ranhuras de seus corpos desconhecidos. Ramagem de objetos acariciados pelo esquecimento. Por onde cai uma imagem de nossa angústia, os fogos-fátuos se constrangem. Deixamos escapar alguns segredos da rivalidade entre esses monstros que se confundem com o eterno. Por vezes o visível não passa de seios arbitrários entalhados em uma madeira apodrecida. Este é o traje com que abençoamos o carvão orgulhoso da existência. Não vestimos senão uma combinação de naufrágios. E a mobília se ri da maneira como a utilizamos para disfarçar a inaptidão para o abismo.

Peças instáveis, que a todo instante requerem um reflexo distinto de sua utilidade, ensaiam efeitos sonoros, dissimulações de trevas, afiam sombras que possam projetar ao menos uma interrogação presumível. Uns poucos objetos resmungam, não aceitando que a realidade se conforme com o entendimento. Os móveis então começam a afastar-se das paredes. A casa inteira entreabre seus lábios para um novo sobressalto. Vasculham as gavetas do tempo. Não querem mais sonhar conosco. Rejeitam o mistério que impusemos a cada um deles. Por entre uns trapos inseguros de sonhos e o bailado descompassado de fantasmas, as mesmas fugas ensaiadas. Estes são os primeiros véus que o tempo leva para dentro de si. Quando me tocas, não penso no que pode estar se passando comigo. Se a tua pele descobre o fogo no contato com a minha, não te amo mais por esta compreensão. A mobília não festeja as chamas na casa como se um novo quadrante fosse instaurado em sua visão de mundo. Não há magia sem a consciência de seus ingredientes? Quanto custa sonhar contigo?

Faço os apontamentos em suspiros, devaneios, vômitos, desarmonias, masturbações. É fácil levar um texto a recorrer a seu equipamento de incêndio. Presumimos uma saída de emergência para tudo, considerando a existência de uma queda unida. Os móveis ensaiaram repetidas vezes o mesmo procedimento. Para o caso de quem desistir de si? Tratemos de prever os deslocamentos improváveis do passado. Não cabem argumentos em favor da transparência. As películas a que submetemos nosso tráfico entre visível e invisível denunciam que somos infratores da substancialidade. Os meus sentidos são tão confiáveis quanto os teus. Toda realidade se evapora na medida em que é considerada.

[Floriano Martins]


fonte: facebook do autor / 
 
jun / jul 2014








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