terça-feira, 19 de agosto de 2014

Sujeito e ficção em Ode Fragmentária de Hilda Hilst


 








Presença e Ausência: Sujeito e ficção de Sujeitos 

em Ode Fragmentária de Hilda Hilst


Leonardo de Magalhaens

Fale / UFMG


     A importância da autora Hilda Hilst (1930-2004) tem se evidenciado após a publicação de suas obras completas, pela Globo Livros, nos anos 2000, quando a Crítica, dentro e fora das universidades, passou a analisar não apenas a fase mais polêmica, de caráter erótico-pornográfico-sarcástico, mas aquela de temática metafísica, confessional, afetiva que vem a religar a autora a uma fala feminina (não feminista) a marcar a nossa literatura nas obras de Cecília Meireles, Henriqueta Lisboa, Clarice Lispector e Ana Cristina César, dentre outras.

     Assim as baladas e as odes da autora puderam ser mais contempladas e contextualizadas no conjunto da obra, ao se tratarem de poemas fáceis e, ao mesmo tempo, herméticos, em diálogo entre o confessional e o metafísico, com a condição do Ser Humano diante nos Deuses, ou do Demiurgo, ou da Divindade, na consciência da mortalidade, da impermanência e da finitude, na grande ausência do Eu que se entrega/ dissolve na Morte. Comecemos aqui pelas Heroicas, com um tom épico de várias vozes que são todas projeções do sujeito ficcional.


     Pois, no âmbito da poética de Hilda Hilst podem ser feitos questionamentos sobre a condição da própria poesia lírica. Poesia enquanto arte ou confissão? Um artifício ou testemunho? Onde acaba o sujeito autoral e começa o(s) sujeito(s) ficcional(is) ? Como se situa o poeta diante de seu cotidiano? Inventar/ criar a partir da dor vivida? Ou da dor imaginada? A morte pode ser simbolizada? Como a subjetividade textual mascara o medo da Morte?

Se há muito o que inventar por estes lados
O que sei com certeza são meus fados
Exigindo verdades e punindo
Os líricos enganos da beleza


     Há uma voz, um sujeito lírico, que se posiciona ao apontar para si, a reivindicar um espaço, com seus demarcados pronomes pessoais e possessivos (meus ares, meu quarto, etc) pois no texto dilui sua dor e angústia, mas também contentamento (“um todo me angustia”, “se em nada me detenho”, e “contente de mim mesma me inauguro sonora”), e mesmo se dissociando, enquanto ser múltiplo,

Bastasse o confessar-me e assim punir-me
De toda intemperança dos humanos.
Bastasse o que não sou e o refluir-me
Longínqua na maré desordenada.

     Existem, coexistem, muitas imagens – ou paisagens – dentro do sujeito lírico, que se divide num diálogo consigo mesmo, ou dá voz aos Deuses, aos seres da Transcendência, não submetidos pela sombra da mortalidade. Deus que são interlocutores, mas entes inalcançáveis, excelsos e intocáveis, a olharem os Homens como inferiores, em suas efemeridades,

Vós, humanos,
De gesto tantas vezes suplicante.
De coração ardente, dizeis?
A nós parece exangue
Esse pulsar contínuo
E tarefa insensata
Porque nós, divinos,
Temos no peito a força
O altar
A lança
E um todo movediço nos contém.


     A posição dos Deuses é contraponto à condição humana mortal, e a ressaltá-la, a torná-la marcante e dolorosa, quando seres mortais se confrontam com seres doadores da vida. E a mortalidade é melhor concebida (ou simbolizada) quando se dá voz aos mortos, como fazem (e prometem) as religiões, como ousam os esoterismos, ao verem um mundo espiritual além do fim do invólucro corpóreo,

Os mortos ressurgiram e cantaram:
Se a perfeição é a morte
Talvez por isso imortais
Há muito que existimos.
Mas se algum dentre vós
É de sopro divino,
Encantai-nos:

     É como se fosse uma ladainha de falecidos, ou um coro de tragédia grega, com as vozes desafortunadas, submetidas por um Destino inclemente, ou indiferente, num clamor coletivo de anseios incompletos (“Ai de nós, peregrinos, / Antes do amanhecer / Sonhando eternidades! / Não é nosso o destino / De amar e florescer. / Antes vertiginosos / Tateamos na sombra / A laje dos abismos.”), como seres numa beira de abismo a contemplar os Mestres (ou o vulto do Demiurgo) no topo da montanha. Esta separação cria mais angústia e mais consciência da precariedade humana.

     É voz coletiva que amplifica apenas o desassossego íntimo do Eu, ainda muito presente meio ao coro de peregrinos, ou mutilantes, ou ausentes, ou falecidos, todos projeções do desarranjo existencial do Ser consciente da mortalidade, pois este é o tema aqui. Um nunca contentar-se, um sempre desviar-se, um viver sem rumo até que a morte nos separe e disperse,

Ai de nós, mutilantes,
De afetos imprecisos,
[…]
Estuários frequentes
Desviam nossas velas.
[…]
Muito ausência...
em que montanha azul a nossa meta?


     Outra figura tem referência no coro dos desassossegos, outro vulto é elencado para a condição de voz, de testemunha da condição humana, um ser entre a memória e a imaginação, aqui a personagem do poeta, um ser predestinado, em suas alegrias e temores, “guardou-se amante, iluminou-se crente / Cobriu-se de ternuras e de lendas / Não conheceu prazer ilimitado / Que suportasse o humano e suas penas.” Poeta que recebe referência também em Quase bucólicas, onde adentra com seu cavalo, “amáveis mas indomáveis”, vulto entre a palavra e o silêncio, o testemunho e a solidão,

O poeta – e seu vocábulo.
O cavalo – e seu pedaço de terra
Mais nas alturas

De brisa,

De solidão e hortaliças.

Entrelaçadas aspiram
Respiram juntos

 
    O poeta que presentifica a própria condição da autora, que ousa o poetizar, que ousa testemunhar seu (nosso) “mundo oscilante”, que viveu entre bonanças e vendavais, que “tribulações e medo padeceu”, que sabe-se clarividente, mas que de fato “canto o que vejo mas antes / Canto o que a alma deseja”. A poeta fala do poeta como num processo de dissociação, de separação de eu autoral e eu ficcional. Pode, assim, adquirir novas identidades, cavalgar na fantasia, ao tentar contemplar a vida e simbolizar a Morte. Morte: tema por excelência aqui (e na obra da autora, conforme ela mesma evidencia em entrevistas). Morte que dá sentido ao viver? Ou morte que é completo absurdo? Morte em-si ou a consciência de ser finito? Novamente: a Morte pode ser simbolizada? Imagens, cenas de luto, melancolia e perda, apenas rituais para apaziguar a dor: não explicá-la. Não pode se explicar o sofrimento.

     Eu ficcional que caminha entre perdas e perdidos, que procura um caminho num mundo sem rumos, marcada pela infância, confundida pela maturidade, tendo apenas o recurso do poetizar o vivido e o imaginado, “Eu caminhava alegre entre os pastores / E tatuada de infância repetia / Que é melhor em verdade ter amores / E rima transitória para o verso.” E caminhando, só em seu percurso, outras vozes, geradas pela própria voz lírica, consigo mesma, “eu senhora de vaidades”, vem partilhar a condição de ser no Tempo, na impermanência, com a corrosão e o fim da infância, e a necessidade de assumir a maturidade, mesmo com certa desesperança e niilismo,

Tempo não é, senhora, de inocências.
Nem de ternuras vãs, nem de cantigas.
Antes de desamor, de impermanência.

Tempo não é, senhora, de alvoradas.
Nem de coisas afins, toques, clarins.
Antes, da baioneta nas muradas

 
    Há todo um mal-estar com a passagem do Tempo, um ser simbolizado pela corrosão, no movimento sem volta de nascer e morrer, “à medida que o tempo nos desgasta”, num processo onde se entrelaçam amor e morte, Eros e Thanatos, pois “amor, o que renasce. / Voltando sempre.”, a tornar o sujeito lírico um ser submisso à perenidade, desejosa do amor, e temendo, sim, “tornou-me submissa e receosa”, pois há anseio e temor, uma culpa por querer, sempre em vão, “persegues / te persigo / vais e vens”.

      Assim, sempre a oscilar entre o desejo de viver e a consciência do morrer, o sujeito lírico cria possibilidades de si mesmo, outras variantes em vozes distintas, e até dissonantes, para representar sua clivagem interior. Do eu autoral, o qual não temos acesso, vários outros eus ficcionais têm nascimento, ao proliferarem textualmente, ao se contraporem, Homens e Deuses, Desejo e Fuga, Amor e Tempo, todos íntimos, mas demasiado estranhos, um verdadeiro Unheimlich freudiano, ou seja, o que é familiar e estranho ao mesmo tempo.

     É dessas ambiguidades íntimas que surgem as imagens fundidas, bizarras, entre a celebração e a lamúria, ora niilista, ora bailante, ora acreditando no Amor, ora sentindo-se corroer pelo Tempo, que evidenciam a fragmentação das justamente intituladas Odes fragmentárias. O sujeito lírico tenta se encontrar, mas o que consegue é dar voz a outros Eus possíveis, é se distanciar do Eu autoral, é não ser mais Hilda Hilst, ser finito, mas um ser diante do Demiurgo, das Divindades, do Criador.

     Um sujeito feito de palavras a indagar, entre angustiado e ousado, sobre a condição humana, simbolizada nas imagens poéticas, deslocadas e condensadas, como um sonho dado em pedaços de vivências estilhaçadas, numa tessitura de ode em fragmentos, assim como fragmentária é a identidade, enredo montado pelos retalhos da memória. Não é a autora que tem a palavra final, ou a rota a ser seguida. Então cabe aos leitores acharem o fio da meada, e adentrar um labirinto, sim, um “sofrido caminho”.




REFERÊNCIAS


COELHO, Nelly Novaes. A poesia obscura/luminosa de Hilda Hilst; A metamorfose de nossa época; Fluxo-floema e Qadós: a busca e a espera. in: _____. A literatura feminina no Brasil contemporâneo. São Paulo: Siciliano, 1993


Fico besta quando me entendem. Entrevistas com Hilda Hilst. Celestiano Diniz (org.) São Paulo: Globo, 2009.

HILST, Hilda. Ode fragmentária . São Paulo: Anhambi, 1961.

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