Presença e Ausência: Sujeito e ficção
de Sujeitos
em Ode Fragmentária
de Hilda Hilst
Leonardo de Magalhaens
Fale / UFMG
A importância da autora
Hilda Hilst (1930-2004) tem se evidenciado após a publicação de
suas obras completas, pela Globo
Livros, nos
anos 2000, quando a Crítica, dentro e fora das universidades, passou
a analisar não apenas a fase mais polêmica, de caráter
erótico-pornográfico-sarcástico, mas aquela de temática
metafísica, confessional, afetiva que vem a religar a autora a uma
fala feminina (não feminista) a marcar a nossa literatura nas obras
de Cecília Meireles, Henriqueta Lisboa, Clarice Lispector e Ana
Cristina César, dentre outras.
Assim as baladas e as odes da
autora puderam ser mais contempladas e contextualizadas no conjunto
da obra, ao se tratarem de poemas fáceis e, ao mesmo tempo,
herméticos, em diálogo entre o confessional e o metafísico, com a
condição do Ser Humano diante nos Deuses, ou do Demiurgo, ou da
Divindade, na consciência da mortalidade, da impermanência e da
finitude, na grande ausência do Eu que se entrega/ dissolve na
Morte. Comecemos aqui pelas Heroicas,
com um tom épico de várias vozes que são todas projeções do
sujeito ficcional.
Pois, no âmbito da poética
de Hilda Hilst podem ser feitos questionamentos sobre a condição da
própria poesia lírica. Poesia enquanto arte ou confissão? Um
artifício ou testemunho? Onde acaba o sujeito autoral e começa o(s)
sujeito(s) ficcional(is) ? Como se situa o poeta diante de seu
cotidiano? Inventar/ criar a partir da dor vivida? Ou da dor
imaginada? A morte pode ser simbolizada? Como a subjetividade textual
mascara o medo da Morte?
Se há muito o que inventar
por estes lados
O que sei com certeza são
meus fados
Exigindo verdades e punindo
Os líricos enganos da beleza
Há uma voz, um sujeito
lírico, que se posiciona ao apontar para si, a reivindicar um
espaço, com seus demarcados pronomes pessoais e possessivos (meus
ares, meu quarto,
etc) pois no texto dilui sua dor e angústia, mas também
contentamento (“um
todo me angustia”,
“se em nada
me detenho”,
e “contente
de mim mesma me inauguro sonora”),
e mesmo se dissociando, enquanto ser múltiplo,
Bastasse o confessar-me e
assim punir-me
De toda intemperança dos
humanos.
Bastasse o que não sou e o
refluir-me
Longínqua na maré
desordenada.
Existem, coexistem, muitas
imagens – ou paisagens – dentro do sujeito lírico, que se divide
num diálogo consigo mesmo, ou dá voz aos Deuses, aos seres da
Transcendência, não submetidos pela sombra da mortalidade. Deus que
são interlocutores, mas entes inalcançáveis, excelsos e
intocáveis, a olharem os Homens como inferiores, em suas
efemeridades,
Vós, humanos,
De gesto tantas vezes
suplicante.
De coração ardente,
dizeis?
A nós parece exangue
Esse pulsar contínuo
E tarefa insensata
Porque nós, divinos,
Temos no peito a força
O altar
A lança
E um todo movediço nos
contém.
A posição dos Deuses é
contraponto à condição humana mortal, e a ressaltá-la, a torná-la
marcante e dolorosa, quando seres mortais se confrontam com seres
doadores da vida. E a mortalidade é melhor concebida (ou
simbolizada) quando se dá voz aos mortos, como fazem (e prometem) as
religiões, como ousam os esoterismos, ao verem um mundo espiritual
além do fim do invólucro corpóreo,
Os mortos ressurgiram e
cantaram:
Se a perfeição é a morte
Talvez por isso imortais
Há muito que existimos.
Mas se algum dentre vós
É de sopro divino,
Encantai-nos:
É como se fosse uma ladainha
de falecidos, ou um coro de tragédia grega, com as vozes
desafortunadas, submetidas por um Destino inclemente, ou indiferente,
num clamor coletivo de anseios incompletos (“Ai
de nós, peregrinos, / Antes do amanhecer / Sonhando eternidades! /
Não é nosso o destino / De amar e florescer. / Antes vertiginosos /
Tateamos na sombra / A laje dos abismos.”),
como seres numa beira de abismo a contemplar os Mestres (ou o vulto
do Demiurgo) no topo da montanha. Esta separação cria mais angústia
e mais consciência da precariedade humana.
É voz coletiva que amplifica
apenas o desassossego íntimo do Eu, ainda muito presente meio ao
coro de peregrinos, ou mutilantes, ou ausentes, ou falecidos, todos
projeções do desarranjo existencial do Ser consciente da
mortalidade, pois este é o tema aqui. Um nunca contentar-se, um
sempre desviar-se, um viver sem rumo até que a morte nos separe e
disperse,
Ai de nós, mutilantes,
De afetos imprecisos,
[…]
Estuários frequentes
Desviam
nossas velas.
[…]
Muito
ausência...
em
que montanha azul a nossa meta?
Outra
figura tem referência no coro dos desassossegos, outro vulto é
elencado para a condição de voz, de testemunha da condição
humana, um ser entre a memória e a imaginação, aqui a personagem
do poeta,
um ser predestinado, em suas alegrias e temores, “guardou-se
amante, iluminou-se crente / Cobriu-se de ternuras e de lendas / Não
conheceu prazer ilimitado / Que suportasse o humano e suas penas.”
Poeta que recebe referência também em Quase
bucólicas,
onde adentra com seu cavalo, “amáveis
mas indomáveis”,
vulto entre a palavra e o silêncio, o testemunho e a solidão,
O
poeta – e seu vocábulo.
O
cavalo – e seu pedaço de terra
Mais
nas alturas
De
brisa,
De
solidão e hortaliças.
Entrelaçadas
aspiram
Respiram
juntos
O
poeta que presentifica a própria condição da autora, que ousa o
poetizar, que ousa testemunhar seu (nosso) “mundo
oscilante”,
que viveu entre bonanças e vendavais, que “tribulações
e medo padeceu”,
que sabe-se clarividente, mas que de fato “canto
o que vejo mas antes / Canto o que a alma deseja”.
A poeta fala do poeta como num processo de dissociação, de
separação de eu autoral e eu ficcional. Pode, assim, adquirir novas
identidades, cavalgar na fantasia, ao tentar contemplar a vida e
simbolizar a Morte. Morte: tema por excelência aqui (e na obra da
autora, conforme ela mesma evidencia em entrevistas). Morte que dá
sentido ao viver? Ou morte que é completo absurdo? Morte em-si ou a
consciência de ser finito? Novamente: a Morte pode ser simbolizada?
Imagens, cenas de luto, melancolia e perda, apenas rituais para
apaziguar a dor: não explicá-la. Não pode se explicar o
sofrimento.
Eu
ficcional que caminha entre perdas e perdidos, que procura um caminho
num mundo sem rumos, marcada pela infância, confundida pela
maturidade, tendo apenas o recurso do poetizar o vivido e o
imaginado, “Eu
caminhava alegre entre os pastores / E tatuada de infância repetia /
Que é melhor em verdade ter amores / E rima transitória para o
verso.”
E caminhando, só em seu percurso, outras vozes, geradas pela própria
voz lírica, consigo mesma, “eu
senhora de vaidades”,
vem partilhar a condição de ser no Tempo, na impermanência,
com a corrosão e o fim da infância, e a necessidade de assumir a
maturidade, mesmo com certa desesperança e niilismo,
Tempo
não é, senhora, de inocências.
Nem
de ternuras vãs, nem de cantigas.
Antes
de desamor, de impermanência.
Tempo
não é, senhora, de alvoradas.
Nem
de coisas afins, toques, clarins.
Antes,
da baioneta nas muradas
Há todo um mal-estar com a passagem do
Tempo, um ser simbolizado pela corrosão, no movimento sem volta de
nascer e morrer, “à medida que
o tempo nos desgasta”, num
processo onde se entrelaçam
amor e morte, Eros e Thanatos, pois “amor,
o que renasce. / Voltando sempre.”,
a tornar o sujeito lírico um ser submisso à perenidade, desejosa do
amor, e temendo, sim, “tornou-me
submissa e receosa”, pois há
anseio e temor, uma culpa por querer, sempre em vão, “persegues
/ te persigo / vais e vens”.
Assim, sempre a oscilar entre o desejo de
viver e a consciência do morrer, o sujeito lírico cria
possibilidades de si mesmo, outras variantes em vozes distintas, e
até dissonantes, para representar sua clivagem interior. Do eu
autoral, o qual não temos acesso, vários outros eus ficcionais têm
nascimento, ao proliferarem textualmente, ao se contraporem, Homens e
Deuses, Desejo e Fuga, Amor e Tempo, todos íntimos, mas demasiado
estranhos, um verdadeiro Unheimlich
freudiano, ou seja, o que é familiar e estranho ao mesmo tempo.
É dessas ambiguidades íntimas que surgem
as imagens fundidas, bizarras, entre a celebração e a lamúria,
ora niilista, ora bailante, ora acreditando no Amor, ora sentindo-se
corroer pelo Tempo, que evidenciam a fragmentação
das justamente intituladas Odes
fragmentárias. O sujeito lírico
tenta se encontrar, mas o que consegue é dar voz a outros Eus
possíveis, é se distanciar do Eu autoral, é não ser mais Hilda
Hilst, ser finito, mas um ser diante do Demiurgo, das Divindades, do
Criador.
Um sujeito feito de palavras a indagar,
entre angustiado e ousado, sobre a condição humana, simbolizada nas
imagens poéticas, deslocadas e condensadas, como um sonho dado em
pedaços de vivências estilhaçadas, numa tessitura de ode em
fragmentos, assim como fragmentária
é a identidade, enredo montado pelos retalhos da memória. Não é a
autora que tem a palavra final, ou a rota a ser seguida. Então cabe
aos leitores acharem o fio da meada, e adentrar um labirinto, sim, um
“sofrido caminho”.
COELHO,
Nelly Novaes. A poesia obscura/luminosa de Hilda Hilst; A metamorfose
de nossa época; Fluxo-floema e Qadós: a busca e a espera. in:
_____. A
literatura feminina no Brasil contemporâneo.
São Paulo: Siciliano, 1993
Fico
besta quando me entendem.
Entrevistas com Hilda Hilst. Celestiano Diniz (org.) São Paulo:
Globo, 2009.
HILST,
Hilda. Ode
fragmentária
. São Paulo: Anhambi, 1961.
Nenhum comentário:
Postar um comentário