Fernando Bonassi
crônicas
na Folha
de São Paulo
2002
- 2006
9/
BREVE
ESTUDO SOBRE A NORMALIDADE
Normalmente
é um encontro. Normalmente é num tesão. Normalmente é um receio.
Normalmente é uma espera. Normalmente é urgente.
Normalmente
é cesariana. Normalmente o leite empedra. Normalmente as fraldas
fedem. Normalmente os filhos crescem. Normalmente as tias mimam.
Normalmente as mães reclamam. Normalmente os pais se mandam...
normalmente é uma outra.
Normalmente
dá despesa. Normalmente dá trabalho. Normalmente é sem emprego.
Normalmente
o recheio é pouco. Normalmente a casca é grossa. Normalmente o
buraco é fundo. Normalmente é lá pra baixo. Normalmente o mais
gostoso.
Normalmente
o rabo não encurta, a curiosidade não mata e nem todos que têm
boca chegam à Roma.
Normalmente
as camisinhas são guardadas, as contas pagas, inconfidências
escapam, o estômago se revolta, o veneno é conhecido e alguém já
havia pensado nisso antes.
Normalmente
os últimos ficam sem. Normalmente os primeiros têm mais medo.
Normalmente os do meio não levam vantagem. Normalmente é sacanagem.
Normalmente
vocações são encontradas, normalmente virgindades são perdidas:
os dedos apontados, as pernas abertas, as mãos estendidas.
Normalmente
os calos surgem. Normalmente o sapato aperta. Normalmente o troço é
mole. Normalmente o espelho alerta. Normalmente a vingança é fria.
Normalmente faltam dentes. Normalmente o vizinho espia. Normalmente a
orelha quente. Normalmente os mundos se fazem de surdos e os cães
guiam os cegos.
Normalmente
falta luz. Normalmente a água bate por aqui. Normalmente aqui é o
único lugar. Normalmente os afogados comem o peixe cru. Normalmente
coisas são pescadas no ar. Normalmente o ar está poluído pelas
coisas que são arremessadas nele. Normalmente encanamentos e
encanadores dão problemas de manutenção. Normalmente a inocência
é uma explicação.
Normalmente
é o passado, uma oportunidade, um sofrimento, uma esperança.
Normalmente é um consolo. Normalmente se ajeita, se conversa, se
aceita.
Normalmente
amanhece o dia. Normalmente suaviza a noite.
Normalmente
sonhos e pesadelos se confundem. Normalmente a confusão é desfeita
com um pouco de consciência. Normalmente consciência é sabedoria.
Normalmente a sabedoria está na escola. Normalmente os professores
corrigem provas. Normalmente as provas são insuficientes.
Normalmente
os curiosos são mais rápidos que a polícia; a polícia mais rápida
que as ambulâncias e as ambulâncias mais rápidas que os carros
funerários.
Normalmente
é tiro trocado, é arma raspada, é sem testemunha.
Normalmente
as leis são compridas e as letras minúsculas. Normalmente as
obrigações são maiores. Normalmente os juízes não têm pena.
Normalmente
os sorrisos, as piteiras, as roupas de baixo, os jornais e as
fotografias amarelam.
Normalmente
os mapas se complicam, os tênis se desgastam, os povos se misturam,
as paixões se esgarçam, os monumentos são recobertos pela bosta
das pombas e a História se repete.
Normalmente
os pedestres são atropelados pelos bois, os bois são atropelados
pelos carros, os carros pelos ônibus, os ônibus pelos trens e
muitos aviões sobem por aqueles que caem. Normalmente as
estatísticas confortam os ateus. Normalmente ateus viajam de avião.
Normalmente os ateus vão à igreja.
Normalmente
o Diabo tenta. Normalmente Deus perdoa.
Normalmente
a carne é fraca e a vontade é grande. Normalmente é de fumar, é
de beber, é de cheirar ou de comer. Normalmente é proibido.
Normalmente é tudo junto. Normalmente a gente faz.
Normalmente
os valores passam pelas rugas, a decência pelas blusas, os ferros
pelos vincos, os prazeres pelas calças, a poesia pelas musas, as
malas pelas alças e os inimigos pelas costas.
Normalmente as feridas cicatrizam e as varizes aparecem. Normalmente os sacos enchem e as bundas caem. Normalmente é cada vez mais ginástica por peso vencido. Normalmente há um sentido. Normalmente há um marido.
Normalmente as feridas cicatrizam e as varizes aparecem. Normalmente os sacos enchem e as bundas caem. Normalmente é cada vez mais ginástica por peso vencido. Normalmente há um sentido. Normalmente há um marido.
Normalmente
não tem cigarro. Não tem pulmão. Normalmente não tem trocado, não
tem espaço, não tem importância.
Normalmente
é da carteira pra bolsa e da bolsa pro caixa. Normalmente é o
mercado, o supermercado, o hipermercado etc.
Normalmente
é uma hora e outra. Normalmente é desde sempre. É um ovo, um arroz
e um feijão. Normalmente há uma razão. Normalmente só complica.
Normalmente é um princípio. Normalmente um precipício.
Normalmente
está lotado: um caminho é cortado, palavrões arremessados no
retrovisor, milhões de mortos no televisor.
Normalmente
atrás vem mais. Normalmente uma necessidade. Normalmente é outra
fila, uma taxa, uma bolacha.
Normalmente
a especialidade é cara, o salário é pouco, a fome é tanta, o
remédio é raro... mas a morte é certa.
fonte:
A
BOCA NO MUNDO – 100 crônicas de Fernando Bonassi
São
Paulo / Novo Século / 2007
16/
TEXTO
PARA LEITURA
O
que dizer por todos esses livros no zoológico das estantes?
Livros
são animais sexuados: livros são metidos, livros são gestados,
livros são paridos. Livros crescem, como meninos. Livros sangram,
como meninas. Livros infantis com ideias de aprendiz. Livros de
aventura pra estimular a travessura. Livros de iniciação pras
pessoas em formação. Todo livro é um livro da vida (mesmo os
livros de contabilidade, que são livros de dívidas). Livros de
poesia controlam a azia. Livros de História fortalecem a memória.
Livros de viagem aperfeiçoam a paisagem. Livros de religião
aumentam a devoção. Livros de química servem pra misturar. Livros
de teste, pra confundir. Livros de lógica, pra entender. Livros
didáticos, pra explicar. Livros revolucionários são livros
vermelhos espetados no ar. Livres pra reclamar, livros de arrepiar!
Mas...
com quantos livros se faz uma pessoa?
Livros
de tabuada pra conta calculada. Livros de auto-ajuda praquilo que não
muda. Livros de lazer pra quem tem muito o que fazer. Livros de
direito pra homens de respeito. Livro de reza quando a coisa pesa.
Livros em liquidação para leitores sem condição. Livros de
oratória, livros de ortografia, livros de culinária, livros de
psicologia. Livros em orgia. Livros pornográficos levados pra cama.
Livros de etiqueta pra pôr a mesa. Livros sádicos. Livros trágicos.
Livros míticos. Livros pro alimento do espírito e dos editores.
Livros pra vaidade dos escritores. Livros especiais. Livros
espaciais. Livros de colecionadores. Livros de informática são
livros de computador. Livros de condolências são livros cheios de
dor. Livros ensinam a ler. Livros pro humor. Livros pra quem quiser
ver. Livros loucos pra saber. Livros com ilustração auxiliam a
compreensão. Livros beijados, livros mordidos. Livros apalpados,
livros espremidos. Livros lambidos como frutos escorridos. Livros
embebidos. Livros embevecidos. Livros abraçados como casais
apaixonados. Livros são romances cultivados. São feridas, são
repastos. Livros passados de mão em mão, como boas biscas. Livros
de arte. Livros de artistas. Páginas arrancadas sem vergonha, livros
fumados com maconha. Livros de piada. Sacos de risada. Palavras
cruzadas e frases alinhavadas. Livros depenados. Livros invocados.
Livros em conflito. Páginas de livros processados em juízo. Livros
censurados. Livros permissivos. Os livros das sopas, os livros dos
sonhos, o livro dos molhos. Livros molhados nos clubes de livros.
Livros de ocorrência. Livros policiais. Livros de referência.
Livros originais. Livro pra orientação num universo em expansão.
Livros equivocados. Livros inquisitivos. Livros engavetados. Livros
recolhidos. Livros esmagados nos ônibus lotados. Livros encoxados,
livros encolhidos. Livros espalhados por baixo dos estrados. Livros
deflorados. Livros chacoalhados. Livros escondidos. Livros
arremessados nos divórcios acalorados. Livros feito espadas. Livros
como escudos. Livros que berram e livros que são mudos. O pior livro
de cego é aquele que não quer se ler. Livros na ponta da língua.
Livros com a ponta dos dedos. Livros engrossam, como rapazes. Livros
melhoram, como mulheres. Livros murchos, livros sujos, livros finos.
Livros como manda o figurino. Livros de moda. Livros em falta. Livros
de sobra. Livros que cheiram bem e livros que cheiram mal (livros de
renúncia fiscal). Livros roubados. Livros comprados. Livros
vendidos. Árvores de livros abatidos. Livros de cabeceira. A
fertilidade dos livros de madeira. Livros exibidos como corpos
oferecidos. Livros safados. Livros falados. Livros sorvidos. Livros
conservadores nas gavetas dos doutores. Livros emocionais pra cólicas
menstruais. Livros de regime. Livros de política. Livros de ótica.
Livros de crítica. Livros diários são livros crônicos, são
livros cômicos, são livros tônicos. Dicionários de livros
explicados. Raciocínios apalavrados. Teses de mestrado. Bolsas de
livros financiados. Tomos, tombos, citações. Parágrafos,
capítulos, correções. Publicações, polêmicas, opiniões. Livros
importados. Livros transportados. Livros traduzidos. Livros
encomendados, livros encarecidos. Livros encardenados como faraós
embalsamados. Livros aposentados. Livros comentando livros. Livros
lavrados em cartórios hereditários. Livros aplicados e homens
especializados. Diplomas de livros emparedados. Livros emparelhados.
Bibliotecas de livros amontoados. Sebos empoeirados. Livros decorados
são livros encruados são livros mal comidos. Livros devorados por
vermes aculturados. Livros bichados. Livros suados. Livros vencidos.
Caixas e caixas de livros caixa. Arquivos mortos em pandemônio, as
fortunas dos livros de patrimônio. Livros de capas trocadas, capas
disfarçadas, capas ofensivas. Livros de capas ousadas. Capas
proibidas. Os livros contra capas. Os lidos pelas costas. Livros
sádicos, livros cínicos, livros mágicos. Livros lívidos, livros
épicos, livros bíblicos. Livros lidos como vícios. Livros de
sacrifícios. Todo homem é um livro aberto. Todo livro acha que é
certo. Escreveu, não leu, continua sendo livro. Já no início era
verbo! Larga a mão de ser burro e leia.
fonte:
A
BOCA NO MUNDO – 100 crônicas de Fernando Bonassi
São
Paulo / Novo Século / 2007
18
/ HOMEM-BOMBA
(A
Murilo Mendes)
O
Homem-bomba, futuro inquisidor, decora o livro sagrado e soletra
estilhaços do caos. O Homem-bomba prepara um discurso épico e fala
sozinho com as câmeras de televisão. O Homem-bomba terá, no
mínimo, assegurado seus quinze minutos de fama. O Homem-bomba recebe
extrema unção em solitários estúdios isolados antes da última
ceia. O Homem-bomba, independente dos nossos erros, será abençoado.
O
Homem-bomba fará uma refeição simples. O Homem-bomba rezará antes
dela. O Homem-bomba não comerá carne. O Homem-bomba ainda se
deitará entre os vivos. O Homem-bomba, se dormir, sonhará com
calcinhas diáfanas, tesouras de perna aberta, espadas enterradas e
umbigos deformados. O Homem-bomba poderá acordar pensando em urinar,
mas quando o Homem-bomba acordar realmente, não estará mais
pensando. O Homem-bomba poderá ver o dia clarear e não mudará de
ideia. O Homem-bomba, na última noite, por essas e outras, poderá
fazer amor.
O
despertador do Homem-bomba é infalível e ele levanta cedo. O
Homem-bomba toma banho, veste seu colete sob medida e um casaco
pesado por cima (faça chuva ou faça sol). O Homem-bomba faz o
desjejum pela última vez, como todos os últimos dias. O Homem-bomba
poderá conhecer o pão que o diabo amassou, com manteiga. O
Homem-bomba poderá passar geleia por cima. O café com leite do
Homem-bomba terá um significado político que paulistas e mineiros
desconhecem.
Outros
homens, mais ou menos bombas, também se erguerão das casas
geminadas desses morros de periferia pra continuar a vida. Detalhe
significante: o Homem-bomba se ergue pra continuar a morte: beija a
esposa, os filhos e segue para o trabalho.
O
Homem-bomba não tem carteira assinada. O Homem-bomba não bate
ponto. O Homem-bomba não tem férias ou cesta básica. O Homem-bomba
não requererá aposentadoria. O Homem-bomba tem pressa. O
Homem-bomba deixará tudo pra trás.
O
Homem-bomba tem pra onde ir (o lugar do Homem-bomba é aquele onde
cair morto). O Homem-bomba é um cidadão comum disfarçado de
revolução e a revolução disfarçada de terra arrasada (na mochila
do Homem-bomba, os talheres batucando com a marmita também seriam
meros disfarces). O almoço do Homem-bomba já se encontra colado ao
seu estômago: uma dúzia e meia de bananas (de dinamite). O
Homem-bomba também adora os coletivos de sardinhas enlatadas pra
causar indigestão. O Homem-bomba tem vale transporte ou o dinheiro
contado. O Homem-bomba tem uma ilusão. O Homem-bomba tem uma
certeza. O Homem-bomba tem uma missão.
O
Homem-bomba não brinca com fogos (mesmo os de artifício). O
Homem-bomba desafia as buzinas, as alfândegas, os alarmes e os
detectores de metais. O Homem-bomba não tem pena, não tem culpa,
não tem respeito. O Homem-bomba não tem paciência pra bobagens de
qualquer tipo.
O
Homem-bomba defende sua causa, sua casa, suas calças, mas não
lavará suas roupas sujas de sangue. O Homem-bomba é um burro de
carga perigosa. O Homem-bomba é instável. O Homem-bomba não pode
ficar nervoso. O Homem-bomba já não teme os outros homens, bombas
ou não. O Homem-bomba é um serial
killer
de uma vez só. O Homem-bomba não sobreviverá a esses tempos. O
Homem-bomba vai... e racha-se.
O
Homem-bomba sobe pelas paredes enquanto os templos vigiados fazem o
possível pra não se perderem das fundações. O Homem-bomba amplia
os horizontes decapitando construções e construtores. O Homem-bomba
poderá se reconhecer num kamikaze.
O Homem-bomba não poderá ser reconhecido depois dos acontecimentos.
O Homem-bomba terá feito História.
O
Homem-bomba não pega só quem é do seu tamanho. O Homem-bomba
exerce sua liberdade onde não acaba a dos outros. Pro Homem-bomba,
no dos outros é puro refresco ardido!
O
Homem-bomba é um desmaterialista (os nossos torturadores dirão que
é romântico). O Homem-bomba tem medo do escuro. O Homem-bomba acha
que é maduro, mas acredita que vai encontrar um pote de delícias no
fim do arco-íris. O Homem-bomba é inimigo do Homem de Lata. O
Homem-bomba é parente do abridor de garrafa, do gambá, do alicate e
da serpente, invocando Deus de igual para igual. O Homem-bomba alega
legítima defesa às portas do inferno. O Homem-bomba é essa
porcaria de vísceras misturadas nas calçadas empoeiradas. O
Homem-bomba é corajoso. O Homem-bomba é mesquinho. O Homem-bomba é
espetacular! Pro Homem-bomba, quanto mais quente melhor!!! O
Homem-bomba sepultará as Américas com o calor de cem sóis!!!
O
Homem-bomba é um louco, é um mártir, é um bosta...
Será
o Homem-bomba redimido pela cirurgia dos explosivos plásticos?
O
Homem-bomba... é um homem... é uma bomba... este texto se
autodestruirá em cinco segundos... quatro... três...
fonte:
A
BOCA NO MUNDO – 100 crônicas de Fernando Bonassi
São
Paulo / Novo Século / 2007
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