quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Espaço em Sagarana [contos] de João Guimarães Rosa









Espaço em Sagarana de João Guimarães Rosa


Leonardo de Magalhaens

Fale/UFMG


       A importância do espaço nos contos do autor mineiro João Guimarães Rosa [1908-1967] se evidencia pelas referencialidades contidas nos textos, com ampla catalogação de acidentes geográficos, a saber, as serras, os rios, os córregos, as várzeas, os campos. Contudo, tais referências não se encaixam como panorama naturalista, mas antes como um cenário para os dramas das personagens. Podem exceder-se como alegoria, como simulacros, rumo a um caráter mais do que regional, antes universal.
       Em seus embates épicos nos sertões, as personagens, sejam os humanos ou os animais, fazem despertar dramas que podem se localizar em qualquer lugar – não somente no sertão mineiro ou nordestino. Há um caráter de universal – qualquer lugar – como cenário da epopeia dos sujeitos com outros e consigo mesmos.
       Assim há referencial e simulacro ao mesmo tempo, pois não estamos diante de uma obra de ficção fantástica ou mero produto de linguagem, antes um entrelaçar de elementos do real, num realismo para além do real, num transrealismo. Um realismo que não se prende ao regionalismo, mas que, a partir deste, se expande para o universalismo, das relações e embates humanos.

       Em tal transrealismo, ou realismo transcendental, o crítico literário, e pensador católico-liberal Tristão de Ataíde (pseudônimo de Alceu Amoroso Lima, 1893-1983) identifica a capacidade estilística de Guimarães Rosa em integrar em sua obra o 'espírito telúrico' e o 'espírito oceânico', sendo o primeiro voltado ao solo, ao regional, e o segundo voltado ao mundo, ao universal, a oscilar entre terra e mar. Para ilustrar tais 'espíritos', Ataíde aponta Alencar e Euclides da Cunha como voltado ao 'telúrico', e Machado de Assis mais ao 'oceânico', como bem mostra o trecho citado em Brandão (2013: 170),
À primeira vista Guimarães Rosa pertence mais à família euclidiana que à família machadiana. Na realidade, o que nele se encontra é mesmo a integração dos dois espíritos, embora com aparente predomínio da vertente alencarina ou telúrica. Isso porque a paisagem e a palavra desempenham um papel muito importante em sua expressão estética e tanto uma como outra em estreita ligação com a realidade sertaneja. Mas nada é mais estranho à sua literatura do que o regionalismo. Será sertanista mas não regionalista.


       Assim, além do realismo regionalista, além da catalogação descritivista, portanto, está a obra de Guimarães Rosa, em sua capacidade de partir do referencial para a fabulação, de reencantar com aspectos míticos, com dramas universais o que ocorre localmente, nos campos gerais, imerso no coloquialismo re-criado / remoldado pela linguagem.


      A extensão dos espaços do Sertão roseano tem uma ação sobre as personagens, que vivem dependentes das condições de clima e recursos hídricos, ora em seca ora em inundação, ora com fartura ora com miséria. Diretamente ligadas ao meio ambiente natural, as personagens se dedicam aos trabalhos básicos de subsistência, na agricultura e na pecuária, ou no artesanato.


       O espaço referencial é limitado, está situado no mundo sertanejo do norte-nordeste de Minas Gerais, e nordeste de Goiás, além de sul da Bahia. É um mundo já povoado e catalogado, mas que serve como cenário para embates universais. As temáticas do regionalismo estão todas aqui, mas com um tratamento diverso. Se muitos autores já se destacaram com o estilo regionalista, na condição de habitantes das cidades que voltam os olhares para as agruras do sertanejo (vide O Quinze de Rachel de Queiroz, ou Vidas Secas de Graciliano Ramos), o autor Guimarães Rosa se aventurou pelas veredas e coletou para sua literatura as vicissitudes do mundo sertanejo.

       Não apenas catalogação de cronista ou escrita acadêmica, mas um tom fabulístico, a dar voz às personagens, aos seres e aos elementos. Assim como na literatura fantástica temos os animais que pensam e falam, em voz humana, em contos e Rosa é possível adentrar a perspectiva de um burrinho, ou de alguns bois que observam – com olhares críticos! - o viver humano. É no desejo de uma fábula transrealista, além de qualquer Esopo ou La Fontaine, para ver o humano – e sua condição - com outros olhos, a partir de um real / regional. Se os animais pensam, ou falam, é com o propósito de re-encantar o mundo, como nas narrativas míticas ou folclóricas, através de uma fabulação. (Uma vez que o 'desencantamento do mundo', Entzauberung der Welt, foi denunciado pelo sociólogo alemão Max Weber (1864-1920))
       Este re-encantamento do mundo demonstra uma releitura das sagas e lendas, nas epopeias de Ilíada e Odisseia, de Eneida e Edda, de Beowulf e O Anel dos Nibelungos, de El Cid e Kalevala, de Jerusalem Libertada e Orlando Furioso, de Os Lusíadas e Paraíso Perdido, no sentido de apresentar os embates dos humanos com os elementos da natureza e com os outros homens, aliados e inimigos.
É no intuito de nova saga, de sagarana, que os contos de Rosa se apresentam, ao destacarem o épico na vida sertaneja, revista pelo estilo realista-mítico. Afinal, o que todos os contos compartilham é o espaço, o cenário regional-cósmico do sertão. (Atualmente, muito da literatura vendável se dedica aos temas épicos e fantásticos mas no sentido de entretenimento, não de aprofundamento existencial.)
       Assim entende-se que um burrinho pedrês (no conto Burrinho Pedrês) seja uma personagem central num drama onde as forças humanas se defrontam com as forças da natureza, a necessidade de subsistência de uma vida tradicional seja confrontada pelas águas das inundações, no 'ano das grandes chuvas'. O drama se desenrola ao redor do burrinho Sete-de-Ouros, que, aprisionado na faina humana, acompanha a tropa pelo sertão, este espaço aqui delimitado, “no vale do Rio das Velhas, no centro de Minas Gerais.” (p. 18), e logo expandido,
E comprimiam-se os flancos dos mestiços de todas as meias-raças plebeias dos campos-gerais, do Urucuia, dos tombadores do Rio Verde, das reservas baianas, das pradarias de Goiás, das estepes do Jequitinhonha, dos pastos soltos do sertão sem fim. (p. 19)


       O drama humano visto pelos olhos de um burrinho, que é arrastado a compartilhar as aventuras e desventuras, na miséria da vida sertaneja, no ambiente agreste, entre as secas e as enchentes. Tanto humanos quanto animais reagem ao meio ambiente, aos espaço de extremos, sem cordialidade, mas asperezas. A vida é dura, “o sertão é perigoso”, com suas boiadas e tropeiros, com seus jagunços e cavaleiros, com seus coronéis e posseiros, em arena de embates.
E era bem o regolfo da enchente, que tomava conta do plaino, até onde podia alcançar. Os cavalos pisavam, tacteantes. Pata e peito, passo e passo, contra maior altura davam, da correnteza, em que vogava um murmúrio. A inundação. Mil torneiras tinha a Fome, o riacho ralo de ontem, que da manhã à noite muita água ajuntara, subindo e se abrindo ao mais. (p. 75)


       A travessia e superação são tematizadas no longo conto A Hora e Vez de Augusto Matraga, onde o espaço é cenário para o sofrimento e para a redenção do protagonista Nhô Augusto, um impulsivo homem bom de briga que colhe as tempestades depois de semear ventos. Ele sofre em seu meio, é fruto de sua secura e aridez, está envolto na casca-grossa da insensibilidade, até que é tarde demais.

        As marcações de espaço são evidentes, principalmente na triangulação entre Pindaíbas, Tombador e Arraial do Rala-Côco, numa delimitação dos passos do protagonista no sertão-mundo, desde o adro da igreja até as fazendas no rumo das serras.
Caminharam para casa. Mas para a casa do Beco do Sem-Ceroula, onde só há três prédios - cada um deles com gramofone tocando, de cornetão à janela - e onde gente séria entra mas não passa.
Nisso, porém, transpunham o adro, e Nhô Augusto parou, tirando o chapéu e fazendo o em-nome-do-padre, para saudar a porta da igreja. Mas o lugar estava bem iluminado, com lanterninhas e muita luz de azeite, pendentes dos arcos de bambu. (p. 344)
Na fazenda - no Saco-da-Embira, nas Pindaíbas, ou no retiro do Morro Azul - ele tinha outros prazeres, outras mulheres, o jogo do truque e as caçadas. (p. 346)

       Ao se considerar o espaço, há trechos em que a marcação é mais evidente, mais longa, quase cartográfica, quase um mapa a assinalar os passos da travessia/superação do protagonista, quase assassinado, mas que se recupera, a espera de sua 'hora e vez', enquanto adentra nos nichos do sertão-mundo, com seus acidentes geográficos enquanto cenário para as transposições/transfigurações da linguagem,
Foram norte a fora, na derrota dos criminosos fugidos, dormindo de dia e viajando de noite, como cativos amocambados, de quilombo a quilombo. para além do Bacupari, do Boqueirão, da Broa, da Vaca e da Vacaria, do peixe-Bravo, dos Tachos, do Tamanduá, da Serra-Fria, e de todos os muitos arraiais jazentes na reta das léguas, ao pé dos verdes morros e dos morros de cristais brilhantes, entre as varjarias e os cordões-de-mato. E deixavam de lado moendas e fazendas, e as estradas com cancelas , e roçarias e sítios de monjolos, e os currais do Fonseca, e a pedra quadrada dos irmãos Trancoso; e mesmo as grandes casas velhas, sem gente mais morando, vazias como os seus currais. E dormiam nas brenhas, ou sob as árvores de sombra das caatingas, ou em ranchos de que todos são donos, à beira das lagoas com patos e das lagoas cobertas de mato. Atravessaram o Rio das Rãs e o Rio do Sapo. E vieram, por picadas penhascosas e sendas de pedregulho, contra as serras azuis e as serras amarelas, sempre. depois, por baixadas, com outeiros, terras mansas. Em paragens ripuárias, mas evitando a linha dos vaus, sob o voo das garças, - os camilhões por onde as boiadas vem, beirando os rios. (p. 358)


        Em terreno tão recortado, acidentado, desorientado, a linguagem se delicia em comparar homem e natureza, homem e animal, animal e terreno, numa amálgama de natureza 'naturalista' e natureza' sujeito', onde o 'estar-no-sertão' é estar condicionado ao estado de carência do viver com pouco na abundância dos espaços. A própria caracterização de personagem se dá pela abrangência de sua fama no espaço, na vastidão do sertão, sendo o chefe-de-jagunços Joãozinho Bem-Bem um caboclo dos mais 'famigerados' (tema de outro conto singular de Rosa) por todas as bandas do mundo sertanejo,
... - era o homem mais afamado dos dois sertões do rio: célebre do Jequitinhonha à Serra das Araras, da beira do Jequitaí à barra do Verde Grande, do rio Gavião até nos Montes Claros, de Carinhanha até Paracatu; ... (p. 365)


        Assim, desde a viagem, a catalogação, o fichamento de cultura-pessoas-fauna-flora, o espaço enquanto cenário, a obra de Guimarães Rosa vem num crescendo desde um referencial de realismo-regionalismo até um construto de linguagem original e ímpar, que transcende (portanto, realismo transcendental, ou transrealismo) do regional para o universal.

2014



Referências


ATAÍDE, Tristão de. O transrealismo de G. R. In: COUTINHO, A. C. Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.
BRANDÃO, Luis Alberto. Teorias do Espaço Literário. Coleção Estudos. São Paulo: Perspectiva, 2013.


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