sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

DESORDEM SOCIAL - conto



DESORDEM SOCIAL


De repente, eu pensei estar envolvido nas multidões de Paris. Aquela turba de estudantes barbudos, intelectuais, em palavras de ordem, passo firme na passeata. Um retrato, onde o Presidente exibia óculos exagerados, se contorcia em chamas.

A faculdade se esvaziara nas ruas. O ódio borbulhava das salas de aula, desde a morte do estudante, lá no Calabouço. Também um Presidente de pouca conversa, A. I. pra cá, A . I. pra lá. Dava nisso mesmo. Eu, que nem sou estudante, entendo isso.

A gente do mercado engrossa a passeata. Daqui a pouco vira bagunça. E eu que preciso voltar a minha vendinha lá no Méier. Os guardas só olham, só olham,. Daqui a pouco, eu já disse.

Um vendedor de água de coco está rodeado de estudantes de cara fechada. Vende muito, para aqueles que a garganta seca de tanto protesto. Vejo uma mocinhas também, até fumando, as meninas. Éta, juventude! Mas e eu, que preciso ir pro Méier, e fico aqui de curioso que sou?

Quando a massa humana invade as ruas dos cinemas, capacetes devolvem um sol com tons sinistros. Cacetes sopesados nas mãos rudes. É uma tropa de choque. Vai haver barulho. Eu bem que disse.

A passeata já vai se dissolvendo, ali jogados contra as paredes, uns cinco estudantes presos. São os líderes. Populares diriam que da baderna, mas os moços são donos de olhares de coragem. Nem resmungam. Mesmo sob os relampejos dos máquinas de fotografia. Aqui rodopiar dos repórteres. Amanhã, faces em barba de três dias estarão em manchete. Faces que talvez desapareçam para sempre.

Chegam carros. Realmente pretendem arrebatar os meninos. Ali, um mais ansioso, exibe amostras de rebeldia, e leva umas bastonadas. Populares gracejam, eu observo contrariado.

Opa, chega a autoridade. Um coronel? Um delegado? Uma autoridade. Falando grosso, cartas sobre a mesa, sai de baixo. Os repórteres encurralados. A autoridade, carrancudo, mas sempre orgulhoso, aponta os detidos – que não tentam ocultar as faces – classificando os coitados , Omo um bom entomologista, com palavras assim, subversivos, tumultuadores da ordem, comunistas de uma figa...

Penso aqui comigo, eu que não tenho lá muito estudo, eu encolhido na minha vendinha lá no Méier , que esse negócio todo parece em encenação. Os fardados tentando espremer os moços, que exibem esta cara de mártires. Até acho que reconheço um deles – de onde?- um dos mais altivos, mais peito estufado. Ninguém aqui quer dar ares de abatimento. É uma Causa contra a outra. O país está em perigo. Importa a Segurança Nacional. Contra a maré vermelha, os porcos fascistas, as hordas asiáticas, os mariners do grande irmão do norte. Haja perigo!

- Cala a boca, comunista, diz o xerife.

Nas fuças de um estudante que ousa responder. Do lado, um repórter rascunha febrilmente. O rapaz acusa os autoritários, os donos do país,os generais e a gerontocracia (que será?). Nada há de culpa ou remorso. É claro que ele nunca classificaria o evento desta tarde como distúrbio, baderna, caos social, levante comunista. Claro. É pela Causa. E estamos conversados.

E eu já queria era voltar pro Méier, e beber um trago, mas fiquei ali ouvindo o moço que - mesmo levando porrada – insistia em sua luta em favor dos proletários oprimidos, dos menos favorecidos, dos representantes políticos cassados, dos sindicalistas presos, dos seres explorados.

- Já mandei calar a boca, comuna!

Ao meu lado, um senhor, ares respeitosos, ao qual esboço palavras de defesa a respeito dos meninos, ali nas mãos das autoridades. E que naquele meio tempo já arrastavam mais seis. Os carros iriam cheios para a Detenção.

Meio ao cheiro de pólvora, o senhor, de ares respeitosos, sorriu. Falou em truculência, mas ficou nisso. Um repórter queria entrevistar populares, mas os fardados já perdiam a gentileza. Ou a Imprensa sumia, ou haveria um espacinho para ela nos carros.

Ouvindo um ou outro comentário meu, o senhor de ares respeitosos aprova com um inclinar de cabeça. Mas faz sinceros votos de que as autoridades não cheguem a ouvir a minha defesa dos “comunistas”.

- Um pobres meninos, homem! – eu digo.

Acena com a cabeça, só isso, o senhor de ares respeitosos. Aquela cara de funcionário público aposentado, patriarca, defensor da Ordem Pública. Que Ordem?


Vou subindo a ladeira, rumo a minha vendinha no Méier, e grupinhos dispersos da manifestação se arrastam nas penumbras, nas portas dos botecos (os que são corajosos) ou nas portas da igrejas (os que são devotos) ou nos portões de casa (os que são bem domesticados).

Um buzinar sobe da área central, e luzes ensaiam lampejos, logo estão acesas. Para todo lado um ar melancólico, nenhuma risada. Parece dia de Finados. Ah, se parece!

Vou subindo a ladeira. Guardo um receio: terei sido fotografado? Quem era o senhor de ares respeitosos, com o qual, oh como sou imprudente, comentei meus pesares? Em algum momento pronunciei o meu nome?

Subindo o morro acerto o passo com outros que também trazem no olhar a tristeza do êxodo. Não mais o calor da multidão. Não mais a voz do povo, a vos d Deus. Adeus nosso Paris tropical. Uma senhora, arrastando o filho, me pergunta:

- O xenhor é fulano tal e tal?

Confirmo. E penso, como ela sabe?

Então ela me segreda:

- Poix é, extão procurando pelo xenhor.

É certo, xenhora? Onde procuram por mim?

- Lá embaixo. Um homem junto aos carros.

Estou paralisado. Ela me olha com piedade. Serei um subversivo? Ela se afasta, o menininho, que ela conduz, me presenteia com um olhar encabulado. Assustado?

Desisto de subir, as pernas trêmulas, entro numa viela lateral, desço na rua paralela, e logo estou no Departamento.

- Sim, xenhor. O xenhor mexmo? Participando da manifextação?

É um olhar firme e voz sem nuance. Talvez acostumado a monossílabos. Ninguém diz que sou subversivo, ou algo parecido, mas eu devia ficar com a boca fechada. Pois, eis ali um repórter. E , quem mais?, o senhor de ares respeitosos. Com aquele jeito de já estar me esperando. Um delator? Não, seria demais. Nem em gibi, meus camaradas. Nada de interrogatório. O fardado aqui só em monólogos, que os cidadãos decentes não podem compactuar, ou mesmo tolerar, essa doutrina subversiva, coisa de ateus, de hereges, de asiáticos, essa ralé de Moscou, esses caipiras de exportação chinesa, esses agentes da desordem, causadores de distúrbios. Importa é a Segurança Nacional.

Sou convidado a assistir ao civilizado interrogatório, onde os homens são ameaçados de terem suas unhas arrancadas.


Eu deixo claro que vou me retirar. Não apontarei ninguém, e nem defenderei ninguém. O senhor de ares respeitosos não sorri mais, e logo é liberado. Eu pretendo ser igualmente indultado, voltar para a minha vendinha lá no Méier.

- Xeu doutor, nada tenho com esses rapazes. Nada disso de subversão. Xou comerciante, xou homem direito. – penso nas unhas arrancadas. – xou da Ordem, coronel. Pago os meus impoxtos...

Um sorriso de sarcasmo na face rígida do fardado? Uma ameaça velada? Não, nem penso em ter as unhas arrancadas!

- Xou cidadão honrado, coronel, xou homem direito, xeu doutor.

Sinto-me dominado. Querem levar-me para uma salinha suspeita. O suor encharcando minha camisa. Meus documentos de mãos em mãos. Descerei aos porões?

Vejo um brilho de uma arma. Na cintura do fardado. Precisa ser agora. Um golpe bem dado, afinal são dois. O peso em minhas mãos. Ouço os disparos, ecoam no corredor. Estampidos, trovões. Vai se dissipando a fumaça, vejo os corpos. Em minha mão a arma – o cano quente.



Jan/05


Leonardo de Magalhaens

http://leoliteraturaescrita.blogspot.com



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