O Biografismo no cinema
Cinema?
Falemos aqui sobre os filmes baseados em autores, literatos, poetas, dramaturgos, e que fazem tanto sucesso na cultura midiática popular. Pouco vamos diferenciar cultura erudita de cultura popular. As fronteiras são por demais tênues. Afinal, o que é 'cult' hoje pode ter sido 'kitsch' ontem. Por exemplo, vejamos, basta envelhecer para o filme ficar idolatrado. Veja o caso de “O Vento Levou” (1939) ou de “Casablanca” (1942). Filmes que envelheceram e então foram elevados a categorias de obras-primas. Daqui há alguns anos até os blockbusters se tornarão obras cults.
Obviamente não vamos aqui descrever filmes, ou avaliá-los como um crítico de cinema (não temos bagagem 'formalista' para tanto), mas apenas considerar os conteúdos, os enredos. Em que medida os filmes procuram retratar os autores, de que perspectiva, de que formato enquadram as vidas autorais. Em função da obra ou dos costumes morais? Em que medida são perspectivistas biografistas?
O que é Biografismo?
Sendo uma forma de ler a obra do autor como uma soma das experiências vivenciadas – onde até as imaginadas são a partir das vividas – o Biografismo é um quase-ramo dos Estudos Literários – ao lado dos consagrados ramos do Estruturalismo, do Formalismo, do Funcionalismo, do Historicismo, do Novo Criticismo – ou Close Reading – e da Estética da Recepção.
Recorre-se ao biografismo toda vez em que um fato parece por demais 'real' na obra, e exige explicações extra-textuais. Ou seja, a vida do/a autor/a é motivo de um olhar mais apurado, de modo a encaixar uma leitura a partir dos fatos biográficos. Saímos da ficção apenas para procurar fatos no mundo extra-ficcional, no mundo de carne e osso.
A ênfase na vida autoral – as vicissitudes, as ascensões e quedas, os comas alcoólicos, as prisões, os divórcios, etc – tudo isso parece fascinar os leitores tanto – ou mais – que os textos. Não se limitando a ler os poemas de Lord Byron, o leitor quer saber se Byron viveu tudo aquilo – viagens, exílios, casos amorosos, duelos, batalhas, separações, etc. Em que medida o descrito foi vivenciado? Não pode-se aceitar que o autor tenha inventado tudo...
Nem vamos perguntar se Bram Stoker teve contato com vampiros, ou se Tolkien conheceu pessoalmente um duende, ou um elfo, isso é fantasia, sabemos bem. Mas é diferente quando o/a autor/a descreve amores, fatos históricos, exílios, prisões, ou seja, coisas palpáveis, que encontramos nos jornais diariamente.
Aquele(a)s autore(a)s que falam muito da 'realidade' – no sentido de serem testemunhas de uma época, de descreverem um 'Zeitgeist' como uma singularidade quase palpável, este(a)s recebem um olhar além do ficcional, são considerados 'testemunhas fieis' da época narrada. Veja um Goethe, veja um Dickens, veja um Balzac, veja um Dostoiévski, veja um Proust, veja uma Simone de Beauvoir, veja um Pedro Nava.
Além do texto, há a vida. A vida autoral. Tão interessante quanto – a se acreditar nos biografistas, claro. Para os adeptos do Biografismo, o poeta tem que necessariamente ter 'vida de poeta'. Tem que morrer jovem, tem que ser auto-destrutivo, tem que ser iconoclasta, em suma, tem que seguir o figurino de poeta.
Ao biografismo seguramente interessa as perversões de Sade, as loucuras de Höderlin e Nietzsche e Van Gogh, a surdez gradativa de Beethoven, os casos amorosos de Goethe e Sartre, os delírios de Baudelaire e Rimbaud, as epilepsias de Dostoiévski e de Machado de Assis, as extravagâncias de Salvador Dalí, a depressão de Virginia Woolf. E assim vai.
Não apenas a Obra, mas também o Artista é alvo de olhares e admirações e reprovações. O Artista está na vitrine, exposto na galeria. Não tem qualquer privacidade. Deve se apresentar sem máscaras e sem batom retocado. Está nu.
Numa época em que temos poetas demais e poesia de menos, numa época onde o excesso de informações gera desinformações, é de se pensar se saber sobre o(a)s autore(a)s, suas vidas e vicissitudes, é tão essencial a ponto de fecharmos os livros e abrirmos as biografias. Claro, se tivermos tempo de ler todas as obras de Dostoiévski, então pode-se até separar um tempo para uma olhada na biografia. Mas, de repente é inútil: as Obras bastam por si mesmas.
Os filmes (...alguns filmes...)
Excentricidades autorais
Falemos dos filmes, então. Comecemos por “The Quills”(2000, no Brasil, “Contos Proibidos do Marquês de Sade”), do diretor Philip Kaufman, que mescla obra e vida, em citações e vivências, o que imaginamos ao ler os contos eróticos e os delírios do próprio Marquês, autor e personagem. O ator australiano Geoffrey Rush encarna um marquês meio lunático e meio autoconsciente. Algumas questões me ocorrem. Qual a relação do Marquês com a própria obra? Ele a levava a sério? Ele escrevia fantasias que desejava praticar ou escrevia o que praticava, digamos, religiosamente? De repente, ele escrevia porque não pudia fazer...
Na peça “Sade / Marat” do alemão-sueco Peter Weiss (1916-82) este diálogo autor-obra é mais evidente, com a presença do teatro dentro da obra – a encenação da perversidade num asilo de lunáticos. A loucura de Sade seria tão consciente a ponto de performatizar a loucura? O louco sabe que é louco? Ou a razão é algo externo? (“Dizem que sou louco”...) por outro lado, a 'razão' pode ser apenas o instrumento do poder. Quem não se adapta a dita normalidade (um padrão dito racional) é considerado louco.
Meu ensaio sobre o Marquês de Sade
http://meucanoneocidental.blogspot.com/2010/08/sobre-obra-do-marques-de-sade.html
Encenação da peça “Sade / Marat” de Peter Weiss
http://www.youtube.com/watch?v=aur-t-RtOJM&feature=related
Essa relação de loucura e normalidade, ou o delírio versus o padrão, pode ser encontrado em “Naked Lunch” (1991, no Brasil é “Mistérios e Paixões”), dirigido pelo canadense David Cronenberg , um filem baseado no romance homônimo do escritor beatnik William Burroughs (1914-97), que a considerar o título - “Almoço Nu” - mostra as frágeis fronteiras entre a normalidade e o delírio. É preciso a loucura para gerar a Arte? O autor deve mesmo ser meio louco para gerar a originalidade ex nihilo? Ser original é mesmo ser excêntrico, extravagante ? Os artistas a la Dalí, talvez...
Imagens desconexas, cortes de imagens, colagens. Temos algo de Bruñel, temos lances cubistas meio dadaístas, temos delírio imagético. E o escritor perdido dentre de tudo, meio ao cheiro entorpecente de inseticidas, 'curtindo o maior barato'. E o receptor – nós, a plateia – precisamos montar tudo, achar um sentido (que de repente não existe...), ou nos deixamos mergulhar no mesmo delírio.
Adentrar o delírio do autor, do poeta, é um convite fascinante. Até porque continuamos fora, nós, os bons leitores, e o poeta carrega a nossa quota de loucura, de excentricidade. Assim nos mantemos sadios, funcionais, adaptados. Lemos a poesia para não precisarmos praticá-la!
Dramas Passionais
Filmes que mergulham no drama passional do poeta e que ameaça a sanidade mental de autor e personagem (e da plateia, às vezes), sim, são filmes que não faltam. Filmes que não hesitam em apelar ao passional, ao drama afetivo (que tentamos sufocar intimamente, mas que os autores vivenciam, parece). Temos ao menos três destes. Um drama belíssimo sobre a vida da inglesa Virginia Woolf, um sobre a poeta norte-americana Sylvia Plath e um bem romântico ao estilo romantismo-clássico sobre o poeta romântico John Keats.
O filme “The Hours”/ “As Horas”, de 2002, do diretor Stephen Daldry, assume a perspectiva das mulheres, como uma filmagem enredada num dos clássicos da autora – o romance “Sra. Dalloway” - que seria uma teia a unir as personagens. As relações da autora com a obra não poderiam ser mais explícitas – temos a depressão, os pensamentos mórbidos, o suicídio anunciado – temos os efeitos da obra sobre as leitoras. A escrita de Woolf é feminista? É escrita para mulheres hetero ou homossexuais? Sem a depressão, Virginia não escreveria? Eis algumas questões que levanto ao ver o filme.
Meu ensaio sobre a obra “Orlando” (de V. Woolf)
e a questão da escrita de gênero
http://meucanoneocidental.blogspot.com/2011/03/sobre-orlando-de-virginia-woolf-12.html
Não diferente, a personagem-autora Sylvia Plath (1932-63) (interpretada pela bela Gwyneth Paltrow) do filme “Sylvia” (2003, no Brasil, “Amor além das palavras”) está suspensa entre a interioridade – o lírico, o poético – e o exterior – a vida com o marido, a recepção crítica da obra, a vida cotidiana, a infidelidade conjugal -, mas sobretudo no seio da condição feminina. O que é ser uma poeta? Como articular o discurso feminino num mundo falocêntrico? Num mundo que tolera a traição masculina e humilha a mulher adúltera. O certo é que o mundo de Sylvia desaba quando ela é a próxima vítima. A poesia não é mais capaz de agregar significado – é melhor calar-se.
Mas o poeta John Keats (1795-1821) não se cala quando perde uma paixão. Aliás, a Belle Dame Sans Mercy tem seu brilhante nascimento. No filme “Bright Star” (2009, “Brilho de uma Paixão”), da diretora neo-zelandesa Jane Campion, é a figura romântica do par amoroso que salva a fragilidade da personalidade de Keats. Ou então temos um estereótipo de poeta romântico. Pálido, sonhador, sofredor. Afinal, o poeta é tão somente o dono de um universo de palavras e símbolos, de um universo que não significa necessariamente vivenciado. E nem podemos exigir que o poeta viva tudo o que escreveu. No mais, falando de romantismo não pode faltar um... par romântico.
Continuo a preferir os belos e geniais poemas de John Keats. A poética me emociona mais que o autor e seus dramas. Aliás, os dramas somente têm valor no sentido de levar o poeta a escrever tão belos poemas. Que o poeta continue continue a sofrer desde que escreva poemas tão geniais! Vejam algumas traduções que ousei.
http://leoleituraescrita.blogspot.com/2010/08/ode-um-rouxinol-john-keats.html
http://leoleituraescrita.blogspot.com/2010/08/ode-uma-urna-grega-john-keats.html
http://leoleituraescrita.blogspot.com/2010/07/ode-melancolia-john-keats.html
O Autor e a Época
Filmes existem com padrões mais, digamos, historicistas. Ambicionam uma ambientação, pretendem um painel de época – desde que centrados nos autores. O foco permanece nos autores, e arredores. Assim a partir do poeta e dramaturgo Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) conhecemos o Sturm Und Drang , ou pré-romantismo, do final do século 18 na Alemanha (aliás, nos estados alemães do Sacro Império Germânico), basta que vejamos “Goethe” (2010), do diretor alemão Phillpi Stölzl, que já dirigiu filme sobre Richard Wagner (o qual ainda não vi).
Ou a partir do também poeta e dramaturgo espanhol Lope de Vega (1562-1635) termos uma visão da Espanha na transição dos séculos 16 para 17, com a ascensão espanhola abafando o antigo pioneirismo lusitano. (Depois a Espanha teria ainda pela frente os franceses e os britânicos, e foi derrotada por ambos.) O filme “Lope” (2010), dirigido pelo brasileiro Andrucha Waddington, mescla historicismo e biografismo ao situar o autor em uma dada época. (“Shakespeare Apaixonado” (1998) e “Anonymous”(2011) basicamente seguem o mesmo esquema: o autor era a pessoa genail no lugar certo no momento certo para então fazer sucesso e se imortalizar...)
Em “Becoming Jane” (2007, ou “Amor e Inocência”), com a bela Anne Hathaway, temos um painel da Inglaterra do fim do século 18, com os bailes e flertes (aqueles das heroínas de Jane Austen) aqui com a própria Jane Austen (1775-1817), que vivia entre o 'senso e a sensibilidade', entre o racionalismo masculino e o sentimentalismo das belas damas em sociedade. Aliás, a obra de Austen é um retrato dos costumes sociais a partir da percepção feminina, o mundo social interessa a partir do momento que emociona a sensibilidade da heroína. Tudo gira em torno da projeção amorosa – o amor enquanto encanto, o pretendente enquanto homem ideal – onde as aparências enganam, e as heroínas só percebem isso no final.
O Autor e a gênese da Obra
Por fim, as obras que flagram o autor nos processos criativos. Temos o “Shakespeare Apaixonado” , protagonista numa espécie de drama-romântico que, entre uma conquista ou outra dos corações femininos, se recolhe para escrever seus sonetos e suas peças obras-primas. Mas temos também “Capote” (2005) , do norte-americano Bennett Miller, sobre a vida e obra do também norte-americano Truman Capote (1924-84), autor do clássico romance-reportagem “A Sangue Frio” (In Cold Blood, 1966) e do popular “Breakfast in Tiffany's” (1958, no Brasil, “Boneca de Luxo”, que virou filme cult de 1961 com a bela Audrey Hepburn (1929-93). resumindo: Capote mostra o escritor com a 'mão na massa', em reportagens, em pesquisas para a criação literária. Nada de 'inspiração' ou 'ideias aladas' que as Musas enviavam por piedade! O autor é mesmo um trabalhador mental.
Assim também em “Finding Neverland” (2004), do suiço-alemão Marc Forster que mostra os esforços do escritor e dramaturgo britânico James M. Barrie (1860-1937) – interpretado pelo talentoso Johnny Depp - para criar seu famoso Peter Pan (nos palcos em 1904, e em livro em 1911), um sucesso de palco, de livro, de bilheteria, de mídia, em suma, uma ideia genial (do menino que não cresce, que se recusa a ser adulto...) que habita o mundo das fantasias infantis, ao lado de piratas, fadas, crocodilos ardilosos, meninos perdidos...
Meu ensaio sobre “Peter Pan” em
http://leoleituraescrita.blogspot.com/2009/12/sobre-peter-pan-ensaio.html
Em suma, temos os esforços monumentais da arte mais complexa – o cinema – para retratar as interessantes vidas dos autores, talvez para nos fazer ler os livros. Mas se esquecem – com tanto drama e delírio – que não é o Autor que nos faz ler a Obra, antes é a magnitude da Obra que atrai nossa atenção sobre os Autores. Certamente Shakespeare nos interessa na medida em que nos emociona “Romeu e Julieta” , “King Lear” e “Hamlet”. Shakespeare se imortaliza justamente por causa da grandiosidade das Obras, não o contrário. Sem a Obra, o Autor inexistiria para nós – no máximo seria elogiado pelos bons amigos seus contemporâneos.
Set/11
Leonardo de Magalhaens
http://leoleituraescrita.blogspot.com/
http:meucanoneocidental.blogspot.com
...
Mais sobre o Biografismo
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40142005000300026&script=sci_arttext
O biografismo no cinema
(… alguns filmes...)
Anonymous / 2011 (foco: Shakespeare)
http://www.youtube.com/watch?v=2PaliLAQT8k
Howl / 2010 (Allen Ginsberg)
http://www.youtube.com/watch?v=ytEORri27xE&feature=fvst
Goethe / 2010
http://www.youtube.com/watch?v=02FTZzok9fY
Lope / 2010 (Lope de Vega)
http://www.youtube.com/watch?v=T4T28OSkqX4&feature=fvst
Bright Star / 2009 (John Keats)
http://www.youtube.com/watch?v=golIjhAOf_Y&feature=related
Becoming Jane / 2007 ( Jane Austen)
http://www.youtube.com/watch?v=NLguXJK5kJ8&feature=related
Capote / 2005 (Truman Capote)
http://www.youtube.com/watch?v=Q4BvvJ69pIQ&feature=related
Sylvia / 2004 ( Sylvia Plath)
http://www.youtube.com/watch?v=GLXzDJ7JkIA
Finding Neverland / 2004 ( James M. Barrie)
http://www.youtube.com/watch?v=8cQgZfdH01g
Byron / 2003
http://www.youtube.com/watch?v=QzfC_JVFL9w
The Hours / 2002 (Virginia Woolf)
http://www.youtube.com/watch?v=yMErdpA804Y&feature=related
The Quills / 2000 (Marquês de Sade)
http://www.youtube.com/watch?v=u--PYnIYewE
Shakespeare in love / 1998
http://www.youtube.com/watch?v=i3Zi2N1Q8-Y
Wilde / 1997 ( Oscar Wilde)
http://www.youtube.com/watch?v=r-GFOdNUwLM
Total Eclipse / 1995 ( Rimbaud e Verlaine)
http://www.youtube.com/watch?v=usceW-s99H8
Naked Lunch / 1991 ( William Burroughs)
http://www.youtube.com/watch?v=Q0fhzA_j6lQ
Henry & June / 1990 ( Henry Miller & Anais Nin)
http://www.youtube.com/watch?v=ilACmWdTXWg
LdeM
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