quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

sobre PETER PAN (ensaio)





sobre “Peter Pan” (ou “Peter and Wendy”, 1911)
do autor escocês Sir James M Barrie (1860-1937)


A Literatura enquanto Fantasia

Parte 3 – Peter Pan


Nas partes anteriores, foi discutido a Fantasia e o
Maravilhoso em “Alice no País das Maravilhas”, quando
fenômeno aceito sem hesitações, como algo 'natural',
também a Fantasia enquanto a realização (ou satisfação)
de um desejo de posse de algo que as personagens
possuem e nem sabem disso, na leitura de “Mágico de
Oz”. Em “Peter Pan” pode se encontrar o desejo de algo
fora, uma vontade acima do dever, a busca de outro (tal
qual na 'fantasia sexual', em busca de um Objeto de
satisfação). Assim é, pois o menino Peter, ou Peter Pan,
tem o arraigado desejo de não crescer, uma vontade
férrea de ser sempre criança.

Ser criança, conservar a infância, não ficar adulto, não
envelhecer. Fisicamente em florescência. Mas, principal-
mente, não ter responsabilidades, não entrar no 'mundo
adulto', não ser 'domesticado'. Uma criança enquanto
ser de impulsos, fartura de energia, olhar de curiosidade,
vontade de potência, egocentrismo inocente, pedantismo
ingênuo.

Ou criança para viver num mundo imaginado, re-criado
ao gosto e (in)conviniência, dado de antemão em sonhos
(e pesadelos), re-estruturado em palavras de contos e
recontos, e pronta para viajar (sim, voando!) para este
mundo imaginado. Um mundo ao qual somente as crianças,
curiosas, inventivas, inocentes, ingênuas, de pensamento
leve, enfim, raríssimas, têm acesso.

A recusa em crescer para continuar vivendo num mundo
de fantasias, eis o resumo de “Peter Pan” O menino que
vive entre fadas, sereias, índios, piratas, numa tal “Terra
do Nunca” (Neverland), feita dos sonhos (e pesadelos) de
todas as crianças. Um mundo feito dos retalhos das
imagens produzidas pelas mentes infantis adormecidas
quando acabam de ouvir 'contos de fadas'.

Não querer crescer? Eis um árduo conflito a permear as
crianças e adultos. Deixar um mundo de potencialidades,
de 'caminhos possíveis', para tornar-se um ser de caminhos
traçados, de responsabilidades e compromissos, de seguir
datas marcadas, etapa por etapa. Quem não consegue,
é reprovado, é marginalizado, é aprisionado, é exilado. E
a criança se rebela: não serei adulto!

Assim é o menino egocêntrico e convencido, o Peter Pan
que aparece (finalmente) para a menina Wendy Darling
e os irmãos John e Miguel, que adormecem ouvindo os
bons e velhos 'contos de fadas', acreditando e esperando,
conservando assim o mundo das fantasias, a “Terra do
Nunca”. Peter logo seduz todos (e primeiramente Wendy)
com planos de voar para a ilha dos sonhos.

Tendo o livro nascido de uma peça teatral (com estreia
em 1904), o aspecto cênico, ou descritivo, é muito mais
evidente. As cenas são ágeis, plenas de imagens e
símbolos que alegram qualquer criança atenta. O desejo
de voar, de chegar a um lugar onde as crianças imperam,
onde têm uma liberdade sem disciplina (nem ordens de
adultos), tudo isso é muito sedutor para qualquer coração
infantil. E o Autor Barrie soube bem narrar esta fábula,
ora na perspectiva das crianças, ora apoiando os adultos
(principalmente os pais das três crianças Darling).

O narrador vez ou outra adentra a narrativa com
digressões com britânica ironia, como por exemplo, ao
descrever a mente infantil

I don't know whether you have ever seen a map of a person's mind.
Doctors sometimes draw maps of other parts of you, and your own map can
become intensely interesting, but catch them trying to draw a map of a
child's mind, which is not only confused, but keeps going round all
the time. There are zigzag lines on it, just like your temperature on a
card, and these are probably roads in the island, for the Neverland is
always more or less an island, with astonishing splashes of colour here
and there, and coral reefs and rakish-looking craft in the offing, and
savages and lonely lairs, and gnomes who are mostly tailors, and caves
through which a river runs, and princes with six elder brothers, and a
hut fast going to decay, and one very small old lady with a hooked nose.
It would be an easy map if that were all, but there is also first day
at school, religion, fathers, the round pond, needle-work, murders,
hangings, verbs that take the dative, chocolate pudding day, getting
into braces, say ninety-nine, three-pence for pulling out your tooth
yourself, and so on, and either these are part of the island or they are
another map showing through, and it is all rather confusing, especially
as nothing will stand still. (p. 5)
fonte: http://www.gutenberg.org/catalog/world/readfile?fk_files=785840&pageno=5
“Não sei se você já viu o mapa da mente de uma pessoa. Os médicos, às vezes, desenham mapas de outras partes suas, e seu próprio mapa pode ser realmente interessante, mas tente surpreendê-los tentando desenhar um mapa da mente de uma criança! Que não apens é confusa, mas também fica girando o tempo todo. Cheia de linhas em zigue-zague, parece mais aquelas linhas de temperarura, e talvez sejam as estradas da ilha, pois a Terra do Nunca é sempre mais ou menos um ilha, com incríveis manchas de cores aqui e ali, e recifes de corais e velhos navios costeando, com selvagens e covis solitários, e gnomos que muitas vezes são alfaiates, e cavernas onde os rios correm, e príncipes com seis irmãos mais velhos, e uma cabana que vai desabando, uma velhota com nariz em forma de gancho.
Seria até um mapa fácil se fosse só isto, mas há também o primeiro dia na escola, religião, os pais, uma piscina, alguns bordados, crimes, forcas, verbos que usam o dativo, os transitivos indiretos, o dia do pudim de chocolate, armação nos dentes, um 'diga-noventa-e-nove' do médico, aquela moedinha para deixar o dente, e por aí vai, e todas estas coisas são parte da ilha ou estão em algum mapa a indicar, e é tudo um tanto complicado, ainda mais porque nada fica sossegado.” (trad. LdeM)

É realmente difícil resistir ao charme prepotente de Peter
Pan que leva tudo na esportiva, sempre sorrindo e
achando tudo muito engraçado! É uma espécie de
diabinho zombeteiro, que nem percebe que 'fazendo
graça' pode estar prejudicando alguém... O narrador deixa
claro que a narrativa não é uma ode louvatória ao
protagonista (ou um dos, afinal o título original é
duplo, “Peter and Wendy”), que tudo giram em torno
dos desejos infantis, e ninguém mais 'infantil' (com sua
personalidade arrogante e egocêntrica) que o tal menino
que se recusa a crescer.

It is humiliating to have to confess that this conceit of Peter was
one of his most fascinating qualities. To put it with brutal
frankness,there never was a cockier boy.
(p.18)

É humilhante ter que confessar que este caráter de Peter era uma
de suas mais fascinantes qulidades. A falar com franqueza, nunca
houve um menino mais convencido.

Os irmãos Darling (e principalmente Wendy) fazem tudo
para agradar o menino brincalhão e mandão, naquela
jornada avoada rumo a Terra-do-Nunca. Lá estão as mil
aventuras escutadas, esperadas, sonhadas, adormecidas,
com fadas, sereias, índios e piratas. Todos num ciclo de
mitos e fábulas que as crianças conhecem muitíssimo
bem! Lá estão os “Meninos Perdidos”(Lost Boys), as
crianças que cairam da cama (ou fugiram de casa) e
vivem na ilha das fantasias infantis, e vivem saudosos
de um bom carinho de mãe (tanto que Wendy vai se
tornar a 'mãezinha' de todos eles...) a lutarem contra
os perigosos piratas, comandados pelo pior de todos
os bucaneiros, o Capitão James Gancho (Hook) - assim
chamado por usar um gancho superafiado no lugar da
mão direita ( cortada por Peter e dada a um medonho
crocodilo, a perserguir, então, em contínuo tic-tac de
relógio, o chefe pirata).

E para que tudo exista, tudo continue a existir, no rodízio
perpétuo de fadas, gnomos, sereias, índios, piratas, é
preciso que as crianças sempre acreditem em fadas, em
fantasias, em outros mundos possíveis.

"No. You see children know such a lot now, they soon don't believe in
fairies, and every time a child says, 'I don't believe in fairies,'
there is a fairy somewhere that falls down dead." (p. 20)

“Não. Você sabe, as crianças sabem um monte de coisas, e logo não
acreditam em fadas, e toda vez em que uma criança diz: não acredito
em fadas! Então em algum lugar uma fada morre.”

O próprio voar livre precisa de crença em fadas, pó de
fadas, além de 'pensamentos amáveis', que sejam assim
leves, airosos; “Você precisa de maravilhosos pensamentos
amáveis
”, Peter explicou, “e eles vão te fazer levitar”
("You just think lovely wonderful thoughts
," Peter explained,
"and they lift you up in the air.",p. 25)
Não poderia ser mais imagética a descrição da Terra do
Nunca (Neverland), a ilha nascida da imaginação infantil,
com sua coleção de mitológicas personagens a dependerem –
para continuarem existindo! - da crença das crianças. Um
'real' imaginário a precisar de um 'imaginário' faz de conta
(make-believe). Os seres fantásticos espelham (sendo 'pro-
jeções') dos anseios infantis, com identidades desejadas,
tanto benévolas quanto perversas. (E até as fadas podem
ser más, ciumentas, como Sininho, a tilintar de ciúmes
quando Peter dá atenção a menina Wendy...) e não sabe s
er mais ou menos boa ou mais ou menos má, mas sendo
boazinha ou perversa por completo.

Aqui não será abordado o enredo (não privaremos
ninguém do prazer da leitura!) mas apenas apontar a
importância da simbologia da Obra, que influenciou
literatos e também psicólogos, pedagógos, que depois
criaram os conceitos de 'síndrome de Peter Pan' ou
'síndrome de Wendy', onde a primeira consiste no recusar-
se a crescer (puer aeternus), ser responsável e indepen-
dente, permanecendo 'socialmente imaturo', e a segunda,
caracterizada pela vontade de apoiar e proteger o outro,
fazer tudo para agradar, ser uma 'mãe e tanto'. Esta
dicotomia Peter e Wendy dá tanto enredo quanto um
encontro entre Sade e Masoch. Desde que as crianças
se retirem da sala.


Nov/09

Leonardo de Magalhaens
http://leoliteratura.zip.net/

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