quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

sobre "A Volta ao Mundo em 80 dias" (Jules Verne)





sobre A Volta ao Mundo em 80 dias
(Le tour du monde en quatre-vingts jours, 1873)
de Jules Verne (FRA, 1828-1905)

A Literatura enquanto Narrativa de Aventuras

parte 3

Uma imagem clara do Imperialismo, a colonização da
África e da Ásia e o desenvolvimento de invenções que
agilizaram as viagens (navios a vapor, locomotivas, balões,
etc) é o Império Britânico que dá a volta ao mundo: Suez,
Bombaim, Calcutá, Cingapura (Singapore), Hong Kong,
a imensa América do Norte (EUA e Canadá) com cultura
inglesa e 'democracia parlamentar'.

Os súditos da Rainha Vitória (“God save the Queen!”)
vislumbravam o controle do mundo, quando controlariam
(através de seus exércitos e homens de negócios) as
matérias-primas básicas para manter o ritmo da industria-
lização, enquanto disseminavam a civilização cristã (e
tecnocrata) por todo o globo 'incivilizado'. Assim, qualquer
narrativa de aventura do século 19 não pode ignorar este
expansionismo imperialista britânico (diante do qual os
alemães e italianos chegaram tarde, e acabaram provocando
as grandes guerras mundiais do século 20)

Não se esquecer que é um autor francês, Jules Verne, a
escrever sobre o poderio britânico (que derrotou os franceses
em 1815, na Batalha de Waterloo), a exaltar o 'gênio
colonizador' dos britânicos, aqui personificado num fleumático
cavalheiro inglês, figura excêntrica por ser demais 'típica',
e que tem como serviçal um ousado e extrovertido francês,
Passepartout. O 'caráter francês' em vivo contraste com o
'tipo inglês'. Assim os contrapontos: a fleuma de Fogg e a
exaltação de Passepartout.

Ambos unidos numa aventura no tempo (limitado: 80 dias)
e contra o tempo (se passar de 80 dias, Fogg perde a
aposta e cai na miséria!), seguindo as 'regras da matemática',
onde segundos perdidos aqui podem levar aos dias perdidos
numa futura 'conexão' – o 'efeito borboleta' não é somente
metáfora ou retórica! Precisam controlar horários de chegada
e partida, o movimento das marés, a direção dos ventos,
a carga de carvão, o estado das ferrovias, a hostilidade
dos indianos e/ou dos pele-vermelhas. E além disso, lidar
com as suspeitas de um certo Sr. Fix, inspetor de polícia.
('Fix' de 'ideia fixa', mesmo. Assim como 'fogg' de 'nebuloso'.)

Interessante este triângulo: o fleumático Fogg, o empolgado
Passepartout e o obcecado Fix, todos arrastados ao redor
do globo por uma aposta fantástica. Alcançar as conexões
e enfrentar as intempéries, e, como se não bastasse, ainda
aguentar as artimanhas do inspector, que teima em atrasar
o 'cavalheiro-miliante' (assim poderá receber a ordem de
prisão, vinda de Londres), ainda que Passepartout pense
que Fix não passa de um 'agente' dos cavalheiros do Reform
Club, dispostos a 'jogar sujo' para ganharem a aposta.

Mais interessante é comparar as obsessões: a obsessão 'fria'
de Fogg e a obsessão 'legalista' de Fix. Aqui, a obsessão de
Fix para prender Fogg é a mesma do Inspetor Javert para
prender Jean Valjean (aquele que roubou um pão, foi para
as galés, fugiu, tenta se regenerar, em “Les Misérables”, de
Victor Hugo), como a imagem do agente da lei que não
tolera deslizes, e que todo criminoso merece sentir o 'peso
da lei'.

Tudo isso porque o detetive Fix compara a descrição do
'cavalheiro' que roubou 55 mil libras do Banco da Inglaterra
com a descrições do excêntrico Phileas Fogg, e sua ousada
aposta de 'dar a volta ao mundo em oitenta dias', é
incentivado pela recompensa de duas mil libras, e assim tenta
atrasar a viagem de Fogg, e, com o mandado de prisão, deter
o 'assaltante'. Mas a recompensa apenas reforça o 'sentimento
de dever'. “cumprir o meu dever” ou “dura lex sed lex” (a lei
é dura, mas é a lei) se justificam no comportamento de ambos
os deteteives, Fix e Javert.

E realmente o serviçal Passpartout (e também o Leitor) não
sabe de onde vem a fortuna do digno e pontual Fogg, e quase
chega a hesitar (o leitor também pensa: 'será que Fogg é
mesmo o ladrão?') Afinal, o que sabemos sobre Mister Fogg?
Sabemos que ele é membro do Reform Club (“Phileas Fogg
était membre du Reform-Club, e voilà tout
.”) Sabemos que
ele é pontual no Clube, cumpre os compromissos, “seus
cheques sempre são pagos” e “sua conta sempre tem crédito”.
Enfim, não sabemos quem Fogg É, sabemos o que Fogg TEM.
Ele é rico e pronto. Mas como tornou-se rico?

Possivelmente, ganhou no jogo. Pois o Sr. Fogg é dedicado
jogador de uíste (whist), e não perde a oportunidade para
uma aposta. Assim, ele aposta prontamente que pode
'matematicamente' dar a volta ao mundo nos tais 80 dias,
como informam os jornais. E aposta mesmo as 20 mil libras.
Assim, o drama está montado: conseguirá Fogg ganhar a
aposta? Conseguirá 'saltar matematicamente' dos navios
para os trens, dos trens para as carruagens, e alcançar todas
as conexões?

O romance se pretende realista, a descrever os fatos seguindo
as extensões geográficas, cartas marítimas, horários de trens,
conquistas tecnológicas (como um real precursor das
narrativas de 'ficção científica'), mas sem deixar o 'lado
aventureiro', o inusitado, o não previsto, quando o formalismo
de Fogg é quebrado e o lado inventivo aflora: ele recorre a
elefante, tem tempo para salvar uma jovem viúva de uma
cerimônia de suttee (sati), enfrenta tempestades, índios sioux,
queima toda a madeira de um navio em alto-mar, em lances
que saltam dos quadros de horários e planos de itinerários – é
quando a improvisação deixa um 'gosto de aventura' -
e se não fosse 'aventura', se ele não tivesse o bolso cheio
de libras, ou recorrido a elefante, barco alugado, trenó com
velas, etc, a viagem não teria se completado em menos de
94 dias (ou até 90, segundo outros cálculos)

Mas a aventura (e quando lemos o original, e não as
adaptações, torna-se evidente) é apenas uma 'isca' para a
apresentação das novidades tecnológicas, das improvisações
da mente humana, das superações diante dos desafios,
do poder da técnica e do dinheiro (leia-se: interesses
financeiros) para mover o mundo e integrar as nações. Onde
quer que chegue, basta o Sr. Fogg apresentar suas libras
esterlinas e é prontamente aceito, recebido, integrado,
cortejado, a representar a figura de um gentleman. (O poder
do dinheiro britânico no século 19 é o mesmo do dólar no
século 20 pós-grandes guerras.) O dinheiro que arrasta
emigrantes, que move contrabandos, que aluga e compras
meios de transporte, que abre canais de oceano a oceano
(exemplos: Suez e Panamá), que integra o comércio e o
serviços nos preâmbulos da 'globalização capitalista'.

Englobando tudo: as colônias tornam-se 'comunidade de
países', as ex-colônias tornam-se 'parceiros comerciais',
assim os anglo-saxões dão a volta ao mundo. Bombaim,
Singapore, Hong Kong, após conflitos com os nativos,
tornam-se entrepostos comerciais, portos estratégicos,
cidades-estados, territórios ocidentais no mundo oriental,
criadores de alta tecnologia e mobilizadores de mão-de-obra
qualificada. A Austrália (não visitada por Fogg), ex-colônia
penal, torna-se exportadora de minérios e de pecuária. Os
Estados Unidos tornam-se o grandes produtores de minérios,
agricultura, e também do 'ouro negro', o petróleo. (No século
20, a ex-colônia toma o lugar da metrópole, institui o 'padrão
dólar' e proclama-se 'o arsenal das democracias'.) E o caráter
norte-americano (ousado e impetuoso, até demais para um
cavalheiro britânico) é esta nova forja de um mundo de
produção e consumo, de exploração dos recursos naturais
até os limites (“Às vezes o Sr. age como um ianque”, elogia
um norte-americano, quando Fogg mostra o seu lado
audacioso de apostador obcecado, investindo tudo rumo aos
objetivos. “Queremos resultados”, diria um homem de
negócios, um bussinessman, um administrador de ferrovias
e navios à vapor)

Assim, a aventura de Mister Phileas Fogg é a corrida do
homem capitalista contra o tempo, do apostador de fortunas
contra as tabelas de horários, do financista contra as taxas
de juros, do investidor contra as ameaças de falências
(seja naufrágio, descarrilhamento, ataque de selvagens, etc),
e tudo para o 'progresso da civilização' (levando a fé e a
técnica, e, claro, recebendo as matérias-primas). O Imperialismo
em si-mesmo é uma grande aventura: a epopeia burguesa.
A busca do Santo Graal é comédia perto da busca das
matérias-primas. A saga dos navegantes vikings é fábula
perto da navegação dos navios à vapor transatlânticos! O
emocionante está justamente quando a 'ordem burguesa'
sofre um atraso, um desgoverno, em arrepios e calafrios
de 'incontrolabilidade': reside aí o que se denomina
'viver uma aventura'.


Dez/09


Leonardo de Magalhaens

http://leoliteratura.zip.net/


mais info em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Le_tour_du_monde_en_quatre-vingts_jours

a obra
(em português)
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=3527

(em français)
http://www.ebooksgratuits.com/ebooks.php?auteur=Verne_Jules

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

sobre MOBY DICK (Hermann Melville)





Sobre Moby Dick (Moby Dick, or The Whale) (1851)
romance de Hermann Melville (EUA, 1819-91)


A Literatura enquanto Narrativa de Aventuras


parte 2 – Moby Dick

Segundo a leitura anterior, abordando as vicissitudes
de Robinson Crusoé, do inglês Defoe, evidenciou-se
uma clássica aventura do ser humano sozinho consigo
mesmo, uma aventura de diálogo íntimo, de sobrevivência
sem o amparo (e coerção) da coletividade. A jornada
enquanto desenvolvimento e amadurecimento daquele
homem em busca de uma vida de aventuras.

Em “Moby Dick, ou A Baleia”, é possível encontrar um
outro tipo de aventura, que ainda que não abandonando
a 'aventura íntima', vem ressaltar a aventura do ser humano
contra as forças da Natureza, no caso um enorme
Cachalote, que não hesita em revidar os ataques dos
navios baleeiros, cujos marujos vivem da caça às baleias.
(Lembrar que o óleo de baleia era um dos combustíveis
básicos do século 19)

Publicado em 1851, o livro apresenta, em sublimações
literárias, muitas das vivências do Autor Hermann Melville,
que realmente, aos 20 anos, embarcou num whaleship /
baleeiro (o Acushnet) e viajou pelas imensidões do Oceano
Pacífico. Muitas descrições da Obra retratam essas viagens,
realisticamente emoldurando a aventura. Nada é gratuito,
ou despedaçado ao longo da Escrita.

Além de empregar o realismo para melhor causar efeito,
Melville não dispensa os simbolismos que a Literatura
usa e abusa, em metáforas e referências, intertextualidades
e paráfrases. Os nomes do navios, das personagens, os
locais onde se encontram, as decorações dos ambientes
descritos – igrejas, embarcações, tabernas – são propícios
ao Efeito, ou seja, fazer o Leitor mergulhar na Aventura.

Sabendo-se que o Estilo emoldura satisfatoriamente a
Aventura, pode-se afirmar que “Moby Dick” é uma Obra
que precisa ser lido no original. Muito se lê em traduções
e adaptações, desconsiderando-se a fonte original. A obra
densa e plenamente informativa, não apenas o relato de
mais uma viagem ou peripécia. (O mesmo pode-se dizer
em referência a “Les Misérables”/Os Miseráveis (1862), de
Victor-Hugo, como outro exemplo de Obra traduzida,
adaptada, recortada, amputada)

Assim, a própria Narrativa é objeto de análise, não apenas
os fatos narrados. A começar pelo Narrador, em 1a pessoa,
que ambienta e descreve, uma aventura que já aconteceu,
cercada de perigos e fatalidades, mas da qual ele saiu ileso
(caso contrário, não haveria a narrativa...) Se há alguém
para contar as aventuras, por mais perigosas que sejam, a
fatalidade não foi completa. (Se todos naufragassem, se
não houvesse sobreviventes, nenhum Robinson, nenhum
Ishmael, não haveria narrativa.) A outra solução usual é
o Narrador em 3a pessoa, onisciente ou não.

Este relato do jovem Ishmael (um nome bíbllico entre
vários outros nomes bíblicos) apresenta todo um
envolvimento de cativar e fidelizar o Leitor, que deseja
saber até onde poderá navegar o baleeiro Pequod, tendo
como comandante o obsessivo Capitão Ahab. Este
Capitão Ahab será observado, com toda a perplexidade
possível, pelo Narrador Ishmael (assim como Dr. Watson
observa e descreve o enigmático Sherlock Holmes), e
deixará sempre uma lacuna (que será preenchida pelo
Leitor atento).

A descrição da pesca baleeira – bem como o caráter dos
marujos que se dedicam a tal atividade arriscada – vale
como o testemunho de uma profissão e de toda uma classe,
com suas pecularidades e seus jargões, como se percebe
quando da leitura de uma obra sobre a caça às baleias,
que o narrador Ishmael transcreve e comenta.


But if, in the face of all this, you still declare that whaling has no
aesthetically noble associations connected with it, then am I ready to
shiver fifty lances with you there, and unhorse you with a split helmet
every time.

The whale has no famous author, and whaling no famous chronicler, you
will say.
...

True enough, but then whalemen themselves are poor devils; they have no
good blood in their veins.


Mas se, diante disso, você ainda declara que a caça à baleia não tem
esteticamente associações nobres, então estou pronto a apostar
cinqüenta arpões com você, e você vai cair do cavalo com o elmo
bem rachado toda vez.

'A baleia' não tem autor famoso, e a caça à baleia nenhum cronista famoso,
você vai dizer.
...

É verdade, mas então os caçadores de baleia (whalemen) são mesmo
uns pobres diabos; eles não têm sangue bom correndo nas veias.


Além da própria caça à baleia (whaling) em si mesma, as
personalidades e suas idiossincracias são descritas e
compartilhadas. As figuras dos arpoadores, dos marujos, dos
proprietários do navio, do Capitão e seu imediato, todos
personificam A obsessão é um dos temas centrais (e causará
o clímax e epílogo da narrativa), mas outros temas são
recorrentes (além dos símbolos bíblicos), tais como a
vingança, a ambição, a crença e a insanidade.

A vingança obsessiva guia o Capitão Ahab, já vitimado pela
fúria de Moby Dick, o imenso cachalote branco e indomável,
que nunca se deixa cair como presa dos ambiciosos baleeiros.
O dorso marcado por cicatrizes e restos de arpões, de
ataques anteriores, a baleia é um símbolo da força selvagem,
além dos poderes humanos. E perseguir o Indomável é
correr atrás da própria destruição. (Pode-se argumentar
que Ahab sofre com o 'demônio da perversidade' – segundo
E A Poe – ou com o 'instinto de morte' – no conceito de Freud)

A ambição move os marujos, em busca de troféus de caça,
de muito óleo e tudo o mais que conseguirem arrancar das
imensas baleias. Numa época onde a palavra 'ecologia' não
existia (pois foi inventada por E. Haeckel, em 1869), e
muito menos 'defesa do meio ambiente', os marujos
imaginam as caçadas como uma imensa colheita de óleo,
indiferentes ao equilíbrio da vida marinha e outras questões,
tão relevantes atualmente. (É preciso este 'distancimento'
para entender a obra, escrita em meados do século 19...)

Quanto a crença, pode-se citar o nativo polinésio Queequeg,
firme no arpão e a prestar devoção a um ídolo de sua tribo.
É um homem forte, mas sem fanfarronices. Pode ser um
pagão e um canibal (como Ishmael vive a temer), mas
segue períodos de meditação, em silêncio e jejum. O
comportamento de Queequeg serve mais para apresentar –
por comparação – os contrastes e incoerências do 'homem
civilizado', que não segue a moral que prega, vivendo de
hipocrisias. O pagão chega a ser mais 'devoto' que os
demais, ditos 'bons cristãos'.

A insanidade, por sua vez, é a atmosfera de toda a Aventura.
Mística romântica, peso do Destino, terrível profecia: as
tonalidades irracionais que emolduram a tragédia. A
loucura do Capitão Ahab passa contagiar os demais marujos,
passa a mesmerizar até o próprio Ishmael, que diz passar
a compreender o desejo de vingança, afinal de contas o
monstro arrancou a perna do Capitão! (Mas Ishmael não
se lembra que os navios baleeiros é que atacaram
primeiramente as baleias!)

O contágio – toda a tripulação passa a compartilhar o ódio
do Capitão - será o leitmotiv que levará a narrativa ao
desfecho: a tragédia. Não há mais como parar a fúria
vingativa do Capitão ou as estratégias bélicas do imenso
cachalote, que vai atrair a tripulação, numa retirada,
apenas para melhor ofensiva. Todas as conquistas anteriores
serão sacrificadas na jornada que se segue, numa atroz
indagação: quem vai cumprir a derradeira vingança: os
marujos ou a baleia? O obsessivo Capitão Ahab ou o
indomável Moby Dick?

A fábula do homem que perde tudo por causa da uma
vingança – e que não se completa, pois a baleia sobrevive,
para destruir outros – não foi entendida na época da
publicação. Melville é outro dos 'autores póstumos' (como
dizia Nietzsche), a ser lido e compreendido pelas gerações
posteriores, assim passando anônimo na própria geração.
Os símbolos são ora claros ora nebulosos, mas a aventura
enquanto jornada de 'auto-destruição' tem muito do terror
que inspira as obras de Mary Shelley (Frankenstein) e Edgar
Allan Poe (Histórias Extraodinárias), a serem analisadas
nos próximos ensaios.

dez/09

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

sobre ROBINSON CRUSOÉ de D Defoe





sobre “Robinson Crusoé” (The Life and strange
surprizing Adventures of Robinson Crusoé
, 1719)
de Daniel Defoe (UK, 1659-1731)


A Literatura enquanto narrativa de Aventuras

parte 1 – Robinson Crusoé
parte 2 – Moby Dick
parte 3 – A Volta ao Mundo em 80 dias


As narrativas de aventuras, enquanto relatos de viagens e
aprendizados, sempre foi muito apreciada pelo público leitor,
principalmente europeu (pois trata-se do “cânone ocidental”),
ao atrair com paisagens e culturas outras, em contraste
com a 'magnífica civilização' europeia. Povos e culturas que
não seguem os 'princípios cristãos' e, portanto, precisam
ser catequizados.

A 'magnífica civilização', espera-se, deverá estender seus
tentáculos até os 'incivilizados' e, em violenta 'domesticação',
guiar os selvagens às glórias da vida civilizada. Assim tais
relatos mostram uma visão de 'estranhamento' quanto aos
habitantes dos trópicos, das savanas e florestas, das alturas
de Macchu Picchu, das muralhas chinesas. E o explorador,
o aventureiro que atrai as simpatias do leitor, é aquele que
vai descrever o mundo distante, e ao mesmo tempo ousar
resgatar os nativos.

É em relação a tais 'narrativas de viagens' (travellers' tales)
que se situa a sátira de um “Viagens de Gulliver” (Swift, 1735),
quando encontra cavalos mais 'civilizados' do que os europeus
que se apontam como o 'ápice da civilização'. Podemos
dizer que 'Viagens de Gulliver' é um anti-Robinson Crusoé.
Enquanto o objetivo de Defoe é a 'edificação moral', a de
Swift é a sátira aos costumes. No mais, tanto Robinson
quanto Gulliver (os Narradores) escrevem após suas
surpreendentes aventuras, e tecem comentários, pedem
desculpas aos leitores pelo que pode ser exagero, ou rogam
humildemente por um pouco de crença alheia, 'por favor,
acreditem em mim!'

A 'edificação moral' em “Robinson Crusoé” começa com a
figura paterna, o pai de Robinson. Para o velho comerciante,
a virtude está no mediano – viver na classe média, nem rico
nem pobre – e evitar extravagâncias, causadoras de um 'futuro
incerto'. O pai sensato diz ao filho (louco por aventuras) que não
pode evitar a viagem do filho, mas que seria imprudência (para
não dizer idiotice) arriscar-se em viagens quando se pode viver
uma vida tranquila de classe média (tal um comerciante ou
jurista, por exemplo)

Mas apesar de todos os pedidos de sensatez, por parte do
'ajuizado' pai (e não poderia ser diferente...), o jovem Robinson
quer mesmo viajar... e Robinson (o mais velho, o que escreve)
sempre anotando que o jovem Robinson corria atrás da própria
destruição, como se perseguido por um 'demônio da perversidade'
(assim diz Poe) ou 'instinto de morte' (no conceito de Freud)

Em suas aventuras, Robinson é capturado por piratas, na
costa norte-africana, e aprisionado vai tornar-se escravo.
Vive em cativeiro, servindo ao corsário de Sallee, durante
dois anos, até conseguir fugir. Após navegar junto a costa
do Marrocos, até quase as Ilhas Canárias, Robinson (e um
menino muçulmano que o acompanha) consegue abrigo em
um navio português que viaja rumo ao Brasil.

No Brasil, após desambarcar na Baía de Todos os Santos,
graças às boas intervenções do capitão lusitano, Robinson
consegue algum capital e contatos, o que possibilita sua
experiência de ser agricultor, nos enormes latifúndios
(plantations) que retalhavam a colônia portuguesa, naquele
século 17. Quase quatro anos prendem o inglês ao solo
brasileiro. Mas o próprio Robinson reconhece que não está
no seu destino tornar-se um 'plantador brasileiro'.

Nos primórdios do tráfico negreiro, quando os fazendeiros
precisavam de mão-de-obra (e escrava!) para manter suas
enormes plantations, Robinson é convidado por proprietários
para uma excursão de aprisionamento de negros, na costa
africana. Robinson seria o guia, devido àquela famosa aventura
anterior.

Robinson estava decidido a evitar a vida (e a morte) no mar,
e manter os pés na terra firme. Mas não consegue resistir às
propostas de viagem.

But I, that was born to be my own destroyer, could no more resist the offer than I could restrain my first rambling designs when my father' good counsel was lost upon me.

“Mas eu, que nasci apenas para ser meu destruidor, não poderia resistir a oferta que poderia conter meus ímpetos quando abandonei os bons conselhos de meu pai.”


Rumam para a costa norte, até Fernando de Noronha,
onde novas tragédias esperam o aventureiro Robinson Crusoé.
As tempestades arrastam o navio nas ondas revoltas, não para
leste, para a costa africana, mas para oeste, para o norte
brasileiro, as Guianas e o Caribe. Sempre que as 'coisas dão
erradas', Robinson se recrimina, amaldiçoa seu destino de
'aventureiro'.

O navio é abandonado, mas o escaler não é capaz de
enfrentar as ondas. Todos os marinheiros naufragam, exceto
Robinson. Arremessado aos recifes e atirado sobre a praia.
Exausto e desorientado, o náufrago se abriga numa árvore do
bosque, temendo a chegada de feras ou homens selvagens.
Somente tem consigo, além das roupas molhadas, uma faca,
um cachimbo e um rolo de fumo. Como poderá sobreviver?

Então, eis o milagre. Antes tivessem todos permanecido no
navio! Pois se o escaler foi facilmente virado, o navio tão-
somente foi empurrado para a praia, a ficar encalhado entre
rochas e recifes. É este navio (quase) inteiro que será a
salvação de Robinson. Lá ele terá a sua disposição uma
miríade de bens produzidos pela civilização – tudo o que
ele precisa para edificar sua cabana, seu novo lar. Até ser
salvo.

Enquanto não vem o salvamento, Robinson trabalha para
se manter. Cabana, caverna, provisões, jangadas, plantações,
abate de animais selvagens, reconhecimento do périplo da
ilha, saber se há ou não nativos selvagens ou outros
colonizadores europeus, etc. Tudo isso é minuciosamente
relatado em trechos de diário e na narrativa propriamente
dita – é o principal deste livro incrível. Um homem que,
sozinho, consegue 'domesticar' a ilha selvagem e criar um
novo lar.

Evitando a ociosidade – Robinson se justifica o tempo todo:
raramente fico ocioso” - o inglês constrói uma verdadeira
fortaleza, e se arma com estacas, mosquetes, provisões de
pólvora e munição. Além disso, os grãos que jogou ao redor
da caverna logo brotam e crescem – a primeira lavoura
(não exatamente planejada) de arroz e cevada.

Robinson certificando-se que realmente é o único
sobrevivente, começa a se indagar porque ele se salvou e
os demais (os outros onze marujos) pereceram. Será esta
a provação, o castigo enviado pelos Céus, para punir sua
vida de aventuras longe do lar? Sozinho e desamparado numa
ilha selvagem, precisando trabalhar pesado para garantir o
mínimo de subsistência!

Assim, a condição do náufrago pode ser péssima e também
boa. Robinson está sozinho, por conta própria, mas não há
nativos selvagens na ilha, não há bestas-feras, não há perigo
visível e de imediato. As defesas vão sendo construídas,
pouco a pouco, e se destinam a perigos futuros. As provisões
do navio permitem uma sobre-vida maior, mesmo que a
pólvora seja limitada (e esteja molhada) ou não tenha velas,
e a tinta para escrever vai acabando... Pior seria, o homem
naufragar numa ilha de selvagens e sem sequer uma arma!

Essas meditações – os capítulos seguintes são exatamente
isso: meditações sobre as atividades e providências diárias –
levam o náufrago a voltar-se para pensares metafísicos,
um retorno à religiosidade, um questionar sobre as
intervenções divinas. Leve, quando adoece, devido ao clima
tropical, recorre a prece (e depois à leitura de uma Bíblia,
encontrada num baú) e passa a conduzir a narrativa como
um edificante sermão – a condenar aqueles que se extraviam
na vida, deixam de seguir os bons conselhos, e querem se
aventurar. “Que cada um se satisfaça e fique na posição que
lhe foi destinada
” é a lição que o velho Robinson quer passar
através da narrativa das vicissitudes do jovem Robinson.

No novo mundo do náufrago não há 'divisão de trabalho'.
Robinson é rei e serviçal, é agricultor e caçador, é construtor
e explorador. Executa todas as atividades para sua subsistência.
É o empregado e o empregador de si-mesmo. O homem em
constante trabalho, criando a si-mesmo enquanto transforma
o ambiente e cria a civilização. (O homem que inspira a vida
de um David Thoreau, século e meio depois, na busca da
solidão, criando seu próprio mundo, no abrigo do eremita na
sua cabana na floresta, segundo pode-se ler em “Walden”, 1854)
Nenhuma autoridade a não ser aquela de sua 'consciência moral'
(inclusive essa 'moral' cultivada na solidão é um dos temas
principais, além do 'relativismo cultural' quando aparecem
os nativos)

Pois a próxima fase no 'aprendizado' de Robinson – após a
difícil convivência consigo mesmo, durante quinze anos! – é a
de aceitar a presença do Outro. De repente, ele descobre
uma pegada numa praia e fica profundamente assustado.
Existem outras pessoas andando naquela ilha! De repente,
os nativos (os canibais!) podem descobrir sua morada e surgir
num ataque! Assim, Robinson – antes ansiando por companhia –
agora fica horrorizado: aumenta o 'aparato defensivo' de sua
fortaleza, não se distancia do abrigo, está sempre armado.

Com o tempo, pois logo passaram-se mais seis anos, ele
descobre os rituais antropofágicos nas praias da ilha. As
tribos em guerra se alimentam dos prisioneiros. Tal 'costume
tribal' causa nojo profundo no europeu, apegado à sua 'moral
cristã'. Ele pensa se não seria o caso de atacar e destruir
estes selvagens canibais. Contudo, mantem-se às ocultas.
Até o dia em que surge a oportunidade de salvar um dos
prisioneiros. O selvagem, finalmente salvo pela intervenção
de Robinson, vem demonstrar sua humildade ajoelhando aos
pés do novo amo. Estando numa manhã de sexta-feira,
Robinson passa a chamar o seu novo servo (e única companhia)
de Friday.

Ensinando a 'vida civilizada' ao jovem selvagem, Robinson
vai introduzindo Friday ao culto cristão, além dos hábitos
europeus (vestir roupas, comer carne assada ou cozida,
abandonar o canibalismo, etc), ousando explicar passagens
complicadas do mito cristão, para melhor 'salvar a alma' do
selvagem. Enquanto isso, o índio vai assumindo as tarefas
braçais. Ou seja, o europeu vem salvar o incivilizado, mas
espera que o outro pague com trabalho esforçado e obediente.
Eu agora me ocupo em pensar e planejar, enquanto você
se encarrega do trabalho pesado
”, eis a fórmula do
'processo civilizatório'.

Com a ajuda de Friday, sempre submisso, o mestre
Robinson vai enfrentar os próximos selvagens, vai libertar
prisioneiros, vai abrigar mais 'súditos' em seu 'reino' (a 'ilha
civilizada'), vai enfrentar um motim num navio de ingleses –
providencialmente (?) ancorado nas costas da ilha considerada
deserta. Ao ajudar o capitão inglês, a derrotar os amotinados,
Robinson vai conseguir sua passagem de retorno para o
lar. Chega ao solo britânico, enfim, velho e deslumbrado,
após 35 anos de ausência.

Em resumo, esta é a narrativa de “Robinson Crusoé”. Os
símbolos da Obra podem ser destacados, podem ser reavaliados.
Uma aprendizagem, na fuga da autoridade paterna, para uma
aprendizagem consigo mesmo e para aceitar a 'relatividade
cultural' do Outro. O homem sozinho a trabalhar para o próprio
sustento, ou a civilização contra o mundo selvagem. Todas
estas leituras são válidas e merecem crédito, mas todas
convergem para a aventura enquanto ir além dos limites,
superar uma 'cosmo-visão' recebida e, com maturidade,
criar outro modo de ver o mundo.



Dez/09

por Leonardo de Magalhaens

domingo, 10 de janeiro de 2010

Ode Urbana (de ODE SENSACIONAL)

Ode Urbana

(De ODE SENSACIONAL)



fluxos torrenciais de faróis encobrem o anoitecer de fuligens

nas avenidas de contornos serpentinos e labirintos de alamedas

onde trinta e sete por cento da população economicamente ativa
vive na informalidade do subemprego

ou vultos se abrigam sob as tendas de concreto armado –

elevados cruzam hipervias em alta velocidade Setenta por cento
dos veículos com IPVAS em dia em velocidade superior a sessenta
quilômetros por hora

quando os quatro vagões do metrô ( e suas quarenta janelas)
iluminam os pilares dos viadutos

e dois vultos em trapos contemplam o desfile cinematográfico de
faces

e olhares se derramam na sucessão de trilhos e luzes noturnas

os pirilampos frutos de monstruosas turbinas de grotescos
megawatts

fritando as pupilas e impulsionando os motores e roldanas

nos níveis e subníveis de plataformas e estações

e os subterrâneos e os quilômetros de canais e quilômetros de
fios sepultados

e as galerias e sondas e trituradoras e carrinhos de tração

extraindo riqueza do subsolo para a ganância dos escritórios

nos arranha-céus de argamassa e vidro a flutuarem meio aos
anúncios néon

quando não ofuscados pela fuligem das chaminés pós-industriais

nas torres pós-modernas de alumínio e isopor e laminados
e recicláveis

onde funcionários sorridentes ocultam o estresse diário sob roupas
de fios artificiais de conhecida marca

em cortes de alta costura e detalhes os mais inusitados

manuseando teclas e mensagens nos telefones celulares

sob a carícia dos condicionadores de ar nos mundos lacrados

no paraíso das máquinas em apoteose nos domínios virtuais

na eficiência topográfica das infovias no mainfream dos
servidores

na performance tecnoestética dos supercondutores

até os limites do deserto do real palmitando o cyberespaço
das neo-mitologias digitais

quando a tecla pressionada responde ao toque com promessas
de orgasmos

no cruzamento de magias e tecnologias de última (e pós-última)
geração

engavetando juventudes nos vãos dos edifícios suburbanos

nas velocidade tremulantes dos coletivos intermunicipais

além de conflitos de ocupação dos espaços públicos (e dos
serviços públicos)

quando as autoridades buscam o bem-estar social e o bem
comum através do poder público

(segundo consta nos parágrafos e incisos da lei orgânica
do município )

na paisagem lunar dos estacionamentos no abandono das autopistas
noite adentro

sob a névoa rubra de mercúrio na brisa arrepiando o asfalto

no agito das lojas de conveniência e artigos para consumo

no trânsito vertiginoso de veículos de duas rodas nos
acidentes com fratura múltipla

sob os lampiões voltaicos e a lua cheia fatiada por fios de
alta tensão.


BH – Contagem – Betim
Noite de 20 fev 06


Leonardo de Magalhaens


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sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

sobre "A gata do rio Nilo" ( Lia Neiva )



Sobre “A gata do rio Nilo” (2002)
conto em seis estilos
da autora Lia Neiva (RJ)


Entrelaçando tramas e estilos

Uma das questões que movimentam a vida acadêmica
é aquela dos Estilos de Época: seria mero didatismo?
Será que dividir a história da Literatura em fases, em
períodos com datas de início e fim, em diversos modus
operandi
de escrita, em constante mutação, porém
mantendo 'estruturas' de transição (vide as duplas
barroco-romantismo ou realismo-naturalismo) que
permitem identificar a originalidade os autores que
(como bons flutuantes) souberam criar um estilo apartir
de um estilo já consagrado.

A voz autoral (idiossincrasia) a se destacar num dado
Zeitgeist ('espírito da época')? Sim, pois caso contrário,
o estilo ainda seria o das cartas, ou dos diários.
Exemplos de uma 'proto-literatura' (que muitos julgam
mais 'real', 'verídico' que a literatura mesmo, que não
passa de 'ficção'), onde quem escreve não é um Escritor
já pensando num Leitor, mas uma voz narrativa que
confessa a um ente querido, a um familiar, a um amante,
os acontecimentos íntimos, ou crises com a sociedade,
a religião, etc. A narrativa ainda não existiria enquanto
“Narrativa” (que lembrando 'trama', ganha contornos
de 'dissimulação', 'mistificação'...) e o ato de escrever
ainda não seria a “Escrita”.

Em “A gata do rio Nilo”, conto (ou contos?) de Lia Neiva,
a história (ou estória) é simples, há meia dúzia de
personagens, um núcleo apenas, um fato desagradável
que depois se revela um crime. Mas a narrativa (ou
enredo ou trama) é que se mostra importante. O COMO
se é narrado. A ideia de se explorar os diferentes estilos –
em vários recortes, ângulos ou points-of-view (perspec-
tivas) – a cada personagem em foco (pois muda-se o
'foco narrativo') faz lembrar aqueles romances
experimentais (ou semi-originais) como “Ulisses
(James Joyce) ou “Se numa noite de inverno um viajante
(Italo Calvino) ou “Crônica da Casa Assassinada” (Lúcio
Cardoso), ou mesmo contos de Osman Lins onde a
narração segue o caleidoscópio das personagens. Obras
estas que exploram a “multiplicidade potencial do
narrável
”(I Calvino)

Primeiro, o Leitor tem contato com o 'problema' (afinal,
qual a narrativa que não tem um novelo, um
emaranhado qualquer a complicar, a desfiar e solucionar?)
quando toma conhecimento da correspondência entre o
frei José Lourenço do Amor Divino e seu irmão José
Fulgêncio Pereira Matoso, lá nos meados do século 18,
abordando o estado de saúde e de espírito do jovem
professor Victor Alexandre. Parece que o professor se
envolveu em algo desagradável, um vexame qualquer
e entrou em depressão.

As dúvidas do tio religioso sobre o sobrinho atomentado,
ou a descoberta de um motivo a revelar a causa do
estado depressivo, ou o delinear das personagens (o
professor, o taverneiro, o mascate de ervas, a esposa
irritante, a gata caprichosa) são narradas ao estilo
daquelas cartas barrocas, com longas descrições ou
digressões, riqueza vocabular, referências sacras,
condição de colônia portuguesa, etc, a lembrar as
cartas do Padre Vieira (organizadas por João Adolfo
Hansen, em 2003, apartir da edição de 1735)

A figura do professor Victor Alexandre, com algo
vergonhoso nas brumas do passado, ganha texto e
vida numa narrativa romântica, marcadamente
descritiva e sentimental, que lembra o romance “A
Moreninha
” de José Manuel de Macedo, ou uma ou
outra obra de José de Alencar, com aquele momento
de conflito do protagonista ao enfrentar o seu 'destino':
o encontro com o antagonista, ou a perda da coadjuvante
(a mocinha que abandona ou é abandonada). As
descrições são tingidas com o estado emocional da
personagem (“Cinco anos já passados e o horror daquele
almoço continuava vívido e presente. Caminhando
feito um morto-vivo, o professor não conseguia espantar
as dolorosas lembranças que o acompanhavam
.”)
enquanto o confronto com os demais vai revelar seu
desassossego (“Victor Alexandre urrou desesperado
e fugiu antes que o horror o transformasse em outro
justiceiro
.”)

Já o estilo realista com tons de ironia (vide Machado de
Assis ou Lima Barreto), vem a narrativa sobre Epaminondas,
o taveneiro, com sua simpatia suspeita, seu passado
mal-contado, suas frases feitas, seus sorrisos de máscara.
Gabava-se o homem de haver prosperado graças, em
primeiro lugar, a uma absoluta dedicação ao trabalho,
uma quase servidão, pode-se dizer, e, em segundo,
ao seu natural pendor para o trato com as pessoas
.”

O contraponto romantismo X realismo ganha maior realce
quando se percebe que o título do capítulo romântico é
“Epaminondas”, mas se concentra em Victor Alexandre,
enquanto o capítulo realista é “Victor Alexandre”, mas
descreve Epaminondas! (Será mesmo proposital, ou
um deslize da autora?) Dalmo, o mascate de ervas
(ditas) medicinais, ou de artigos de botica, é descrito
(e radiografado, anatomicamente dissecado) numa escrita
naturalista, cheia de descrições corpóreas (ou hormonais,
se quiserem), onde o ser humano é mais um animal na
fauna do planeta. “Sujeito sempre maldormido, suarento
e catingoso, de unhas sujas e trajo amarfanhado. De
índole mesquinha, é desprovido de qualquer compromisso
com os sentimentos mais elevados de qualquer homem
.”

A habitação da personagem também é importante (tal
como a referência: o romance “O Cortiço”/1890, de
Aluisio de Azevedo) para 'determinar' seu caráter:
O cortiço de Dalmo era o sobrado mais dilapidado e
pulguento da rua, e seu dormitório, no andar de cima,
vivia infestado de percevejos e baratas. (...) Nas manhãs
de domingo, ele escancarava a janela e curava a
carraspana com bicarbonato e ar; depois, postava-se
no parapeito com os sovacos cabeludos à mostra,
exibindo-se às moçoilas numa encardida e indecente
camisa de cava pronunciada
.”

Depois de entrelaçar 'ambiente' e 'personalidade', no
estilo naturalista, o conto segue para as encenações,
os contrapontos e o 'psicologismo' do estilo modernista,
caracterizado aqui em dois níveis de narrativa, sendo
um narrador inserido em 'cenas de teatro' (mas,
convenhamos, cena de teatro tem narrador?) A figura
do gato (ou antes, da gata) é mais destacada, como um
símbolo do mistério e do outro-mundo (assim é também
no conto “O Gato Preto”/ The Black Cat/ EUA,1843, de
Edgar Allan Poe e na novela “Pet Sematary”/Cemitério
Maldito/ EUA,1983, de Stephen King), onde o gato é,
na verdade, a encarnação de um demônio, ou uma bruxa
disfarçada, presentificando o terror do desconhecido.

A ação faz um 'flashback' ao situar-se no Egito Antigo,
em Bubatis, mil anos antes de Cristo, nos cerimonais
em devoção a deusa Bastet (ou Ba-en-Aset, a deusa
em forma de gato), em contraponto a ação entre Dalmo
e Alexandre, na década de 40 do século 20, com uma
fala coloquial, despojada, em períodos curtos, em reduzida
descrição, a lembrar o estilo dos Andrades (o Mário e o
Oswald, e também as crônicas de um Rubem Braga). Os
dois planos narrativos se unem na 'mente' da gata Glorinha
que, ao sofrer os maus tratos da esposa de Dalmo,
passa a evocar 'lembranças' de uma vida passada
(quando a gata seria a sucessora do Tefmut – gato
venerado – recém-falecido), e o 'simbólico' e o 'alegórico'
(ou 'carnavalesco', como diria Bakhtin) toma conta: a
'colagem' de influências caracteriza o 'espírito moderno'.

Ou, mais marcadamente, o estilo pós-modernista. Aqui
a apresentar algo de Clarice Lispector, mas também algo
de Virginia Woolf e James Joyce (ainda que falte um toque
de Jorge Luis Borges e/ou Murilo Rubião) com um
'psicologismo' mais acentuado, onde o Leitor tem acesso
aos recôndito das mentes e dos desejos das personagens,
o que elas pouco exteriorizam, ou que nem chega a se
converter em ação (estilo que já consagrou o russo
Dostoiévski, e antes de Sigmund Freud...), pois o 'mundo
íntimo' pode ser também todo um campo de batalha de
embates e resistências, pulsões e recalques, que revelam
maior violência que o 'mundo externo', de interrelação
e socialização.

Assim, o monólogo de Molly Bloom, em “Ulisses”, de J. Joyce,
é um ícone da mente perdida no labirinto dos pensamentos
em fluxo, e visivelmente inspirou o estilo final do conto
(ou contos) de Lia Neiva, em “A gata do rio Nilo”. Aqui,
Naná, que descobre-se ser a esposa de Dalmo, deitada,
a pensar, meio entorpecida, mas em plena atividade
mental – tanto que há a narrativa, há um Narrador, não
o acesso direto ao pensamento, como no 'fluxo de
consciência
' – que revela os impulsos e os hesitares da
personagem. Por que ela está entorpecida? Uma doença
súbita? O que há? O tom psicologista causa justamente
este desconforto.

Estava mais que na hora de sair da cama. Tentou.
Esforçou-se. Não conseguiu. Seu resfriado era realmente
brabo. Melhor ficar deitada. Por sinal, a cama estava ótima.
Seu velho colchão nem parecia o mesmo: ela não sentia
aquele afundamento que torturava a sua coluna. Parecia
que ela estava pousada de leve na cama, sem peso no corpo.
Era bom! Continuava emperrada, mas a sensação de
solidão tinha ido embora; agora, ela sentia uma espécie
de paz. Fez força pra se lembrar quando fora a última vez
que se sentira tão leve. Bota tempo nisso!...”


E o conto (ou contos?) finda assim: Naná, a esposa de
Dalmo, em circunstância que o leitor logo descobrirá qual
é, assim corporalmente passiva, mas mentalmente ativa,
a deixar deslizar uma corrente de pensares (e sentires) que
deixa a leitura à deriva, mas que vai desembocar no oceano
onduante da Narrativa. Afinal, é apenas mais um estilo, o
mais 'moderno' (ou 'pós-moderno', se é que saímos da
modernidade, com tanta coisa de medieval...), e não pretende
resumir ou explicar a fábula (a estória) toda – o Leitor que
coopere, que faça a sua parte. Afinal, leitura é isso: o delírio
e a sugestão do(a) Autor(a) compartilhada e digerida pela
cumplicidade e co-autoria do(a) Leitor(a).


dez/09


Leonardo de Magalhaens

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segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

sobre A Última Fábula - de Liliana Laganá





sobre “A Última Fábula” (Casa Amarela, 2002)
da autora Liliana Laganá


Quando as Guerras bombardeiam as Fábulas


-Conta, nonna!
-Que fábula querem hoje?
-Da tua guerra, nonna!


Em ensaio anterior, abordamos a guerra no olhar das crianças, em narrativas que se desenvolvem na perspectiva das crianças, que ainda não entendem a 'realidade do mundo': a ignorância misturada à ambição. A realidade atroz que atingiu (e ainda atinge) as crianças num cenário de guerra, e as crianças, desprotegidas e desarmadas, sobrevivendo com as famílias, ou sem estas, numa experiência traumatizante de serem também alvos. Na mira de exércitos, guerrilhas, máfias, ditadores, populistas, pseudo-democratas, e sem qualquer defesa no 'no man's land' da guerra total.

O contexto aqui, em “A Última Fábula”, é a guerra na Itália, nos idos de 1943, quando o conflito chegou à península latina. Antes as tropas italianas lutavam na Albânia, na Grécia e no norte da África, lado a lado com as tropas germânicas. Com as ofensivas aliadas (ingleses mais aliados, entenda-se) as tropas italianas se retiraram para casa, e quando o governo de Mussolini caiu, seguido do armistício, em setembro, os soldados italianos foram rendidos e desarmados pelos alemães, que ocuparam a Itália, até o fim da guerra, em 1945.

A Itália estava visivelmente despreparada para a 'guerra moderna'. Grande número de infantaria e uso de blindados ultrapassados, em contraste com a 'Blitzkrieg' mecanizada-motorizada-blindada dos alemães. Assim o país do ditador fascista não conseguiu suportar o embate entre germânicos e anglo-saxões.

A península itálica tornou-se o campo de batalha entre os próprios italianos (os partigiani, de esquerda, contra os fascistas, de direita), e entre os nazistas e os ingleses (e suas tropas aliadas, os norte-americanos, os poloneses, os franceses, os brasileiros, etc) e quem mais sofreu foi a população civil, os camponeses, as mulheres e crianças.

São realmente pungentes os casos de soldados que voltam da guerra, do front, seja na Albânia, na Grécia, ou na África do Norte, tendo sobrevivido às batalhas, ou aos campos de prisioneiros (de alemães ou ingleses) e ao chegar em casa descobrem que a filhinha, ou um filho já rapaz, foi morta(o) por uma bomba, um estilhaço de granada ou uma mina enterrada. Assim, eles, os soldados, foram ao 'inferno da guerra' e sobreviveram, enquanto um inocente, desarmado, foi ferido e morto na guerra 'entregue à domicílio'. Não é preciso mais ir até a guerra, pois a guerra vem até a nós!)

Aquelas mesmas família que, temendo o bombardeio das grandes cidades, se refugiam nas cidades pequenas, nas aldeias, nos campos, ao chegarem ao interior, nestas aldeias, onde encontram as populações atacadas por alemães, facistas ou partigiani, ou até bombardeadas pela aviação aliada, e acabam por buscar refúgio em cavernas, nas colinas, ou poços cavados com ferramentas rústicas.

A mesma Itália que sofreu com tantas invasões, desde a era do apogeu romano, atacada por bárbaros, germânicos, hunos, vândalos, e depois sarracenos, turcos, etc, e na era medieval, ocupada ora por espanhóis, ora por franceses, agora, em pleno século 20, invadida por alemães, e libertada (com uma 'chuva de aço') pelos aliados, tendo o solo de relíquias culturais dolorosamente revirado por explosões e copiosamente regado pelo sangue derramado. Não o sangue dos tantos soldados, pesadamente armados, mas principalmente o sangue dos civis desarmados.

Pode se evocar semelhante contexto, quando se acompanha a narrativa da fuga da família de Liliana, saindo de Roma em busca de abrigo no interior, a aldeia natal da mãe da menina, onde a família reencontrará os parentes, a vida simples no campo, onde todos se conhecem, a aldeia de Fratterosa (atualmente Fratte Rosa, nos montes Apeninos, a oeste do porto de Ancona, que foi bombardeado durante a guerra), que depois sofrerá com a presença de soldados alemães, que resistem ao avanço dos Aliados.

A menina cresce então naquele universo rural, desconhece o que seja 'Roma', tem pouco contato com o pai (ele está sempre a 'fazer a guerra') e deixa-se ligar, com intensa afetividade, à figura da nonna (avó) Gemma, sempre a narrar as fábulas, aquelas narrativas orais que atravessam gerações. Fábulas que retratam a ignorância e a ambição, e também a esperteza e a coragem, que delimitam o 'bem' e o 'mal', e transmitem a cultura de um povo. As descrições de ambientes, paisagens, pratos típicos, receitas domésticas, costumes e falas populares, buscam retratar (e testemunhar) um mundo que se foi, se perdeu meio às névoas fabulosas, a esfumaçar-se, a tornar-se então 'fábula'.

A nonna é aquela que narra as fábulas nos idos de 1943, até 1946, quando a família retorna a Roma, onde o pai encontrará emprego, mas a 'fábula' da Narrativa que o Leitor tem em mãos é a 'fábula' da própria Liliana, agora, por sua vez, uma nonna, a narrar sua 'fábula da guerra' para os netos, nascidos no Brasil, em São Paulo, para onde a família emigrou em 1955. A 'fábula' – passada de geração a geração – vem a ser o elo de união entre experiências dos ancestrais e as crianças que desconhecem uma realidade mais dura. É como se para elas, as crianças no conforto, a experiência de 'sobreviver a guerra' fosse mesmo uma fábula – compartilhando a “Terra do Nunca” de fadas e duendes. Se não houvesse a 'narrativa' enquanto trasmissão de experiências seria possível até a negação dos fatos (assim como há gente que negue o “Holocausto” - como se considerassem os testemunhos como 'fábulas'...)

Certamente muitas 'fábulas' surgiram de fatos reais (existem leituras de contos-de-fadas, como "Branca de Neve” e “A Bela Adormecida”, que visam 'desmistificar' as fábulas, abordando suas origens, a época, o sistema de castas, o contexto de violência, etc) mas o caráter de 'fábula' se evidencia mais pelos 'simbolismos', as metáforas e alusões que carrega e, sendo passível de transmissão, é capaz de emocionar gerações. A 'fábula' agindo como uma 'presentificação' (mais que uma 'evocação oral') de um acontecimento (ou de um mundo) remoto.

A própria narrativa de “A Última Fábula” mostra isso. É possível ouvir a voz da nonna Liliana carregando a voz da menina Liliana, que narra as vivências junto a outra nonna, a Gemma sempre as narrar outras tantas 'fábulas'. Imagina-se de imediato uma longa fila de narradoras e fabulistas, e vovós acalantando netas e netos, e geração após geração, dormitando (e dormindo) ao som de uma voz doce que pode até narrar fatos cruéis. Afinal, faz parte do 'humano' carregar em si o máximo da 'bondade' e o ápice da 'crueldade' (“a mão que afaga é a mesma que apedreja”, escreveu Augusto dos Anjos...)

É assim que a criança vai interiorizar o mundo adulto, onde a guerra é real, e a morte pode ser trágica, brutal e gratuita, sem mandar avisos, poupando o homem nas trincheiras, sob o fogo de artilharia, e ceifando uma vida inocente numa penumbra de ruela ou no interior de um quarto, indiferente a lógica ou ao mar de lágrimas que vem regar os sobreviventes nas populações civis atingidas. Não é novidade para ninguém que as guerras modernas se notabilizam pelas enormes baixas entre os civis, sobrepujando os dos soldados, ditos 'profissionais da guerra'. Tanto é assim que inventou-se a classificação 'guerra total' que não mais se limita aos 'campos de batalha', mas se alastra, nutrida e mantida por complexos industriais, usando estratégias globais, com bombardeios por área, ou ditos 'cirúrgicos', não respeitando as populações desarmadas, e portanto indefesas.

Quanto mais se estuda a epopeia sangrenta e fútil das guerras, mais se fortalece o espírito pacifista. Seria realmente um consolo que a 'guerra' fosse mesmo uma fábula, ou 'a última fábula', como pensam os netos da nonna Liliana, que preferem as narrativas de crueldade militar que as espertezas de um pequeno polegar. Mas as vítimas de ontem e hoje, de bombas e minas terrestres, não nos deixam viver na indiferença quanto ao destino da humanidade diante dos conglomerados econômicos, das indústrias armamentistas, e os fundamentalistas com seus artefatos nucleares, prontos e ansiosos para destruírem todas as 'fábulas' das crianças e deixarem inúmeras narrativas de profundo pesadelo e sempre presente terror.


Dez/09


Por Leonardo de Magalhaens

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leitura de “A Última Fábula” (2002)
das autora Liliana Laganá

Editora Casa Amarela

email – casamarlivros@uol.com.br