Sobre “A gata do rio Nilo” (2002)
conto em seis estilos
conto em seis estilos
da autora Lia Neiva (RJ)
Entrelaçando tramas e estilos
Uma das questões que movimentam a vida acadêmica
é aquela dos Estilos de Época: seria mero didatismo?
Será que dividir a história da Literatura em fases, em
períodos com datas de início e fim, em diversos modus
operandi de escrita, em constante mutação, porém
mantendo 'estruturas' de transição (vide as duplas
barroco-romantismo ou realismo-naturalismo) que
permitem identificar a originalidade os autores que
(como bons flutuantes) souberam criar um estilo apartir
de um estilo já consagrado.
A voz autoral (idiossincrasia) a se destacar num dado
Zeitgeist ('espírito da época')? Sim, pois caso contrário,
o estilo ainda seria o das cartas, ou dos diários.
Exemplos de uma 'proto-literatura' (que muitos julgam
mais 'real', 'verídico' que a literatura mesmo, que não
passa de 'ficção'), onde quem escreve não é um Escritor
já pensando num Leitor, mas uma voz narrativa que
confessa a um ente querido, a um familiar, a um amante,
os acontecimentos íntimos, ou crises com a sociedade,
a religião, etc. A narrativa ainda não existiria enquanto
“Narrativa” (que lembrando 'trama', ganha contornos
de 'dissimulação', 'mistificação'...) e o ato de escrever
ainda não seria a “Escrita”.
Em “A gata do rio Nilo”, conto (ou contos?) de Lia Neiva,
a história (ou estória) é simples, há meia dúzia de
personagens, um núcleo apenas, um fato desagradável
que depois se revela um crime. Mas a narrativa (ou
enredo ou trama) é que se mostra importante. O COMO
se é narrado. A ideia de se explorar os diferentes estilos –
em vários recortes, ângulos ou points-of-view (perspec-
tivas) – a cada personagem em foco (pois muda-se o
'foco narrativo') faz lembrar aqueles romances
experimentais (ou semi-originais) como “Ulisses”
(James Joyce) ou “Se numa noite de inverno um viajante”
(Italo Calvino) ou “Crônica da Casa Assassinada” (Lúcio
Cardoso), ou mesmo contos de Osman Lins onde a
narração segue o caleidoscópio das personagens. Obras
estas que exploram a “multiplicidade potencial do
narrável”(I Calvino)
Primeiro, o Leitor tem contato com o 'problema' (afinal,
qual a narrativa que não tem um novelo, um
emaranhado qualquer a complicar, a desfiar e solucionar?)
quando toma conhecimento da correspondência entre o
frei José Lourenço do Amor Divino e seu irmão José
Fulgêncio Pereira Matoso, lá nos meados do século 18,
abordando o estado de saúde e de espírito do jovem
professor Victor Alexandre. Parece que o professor se
envolveu em algo desagradável, um vexame qualquer
e entrou em depressão.
As dúvidas do tio religioso sobre o sobrinho atomentado,
ou a descoberta de um motivo a revelar a causa do
estado depressivo, ou o delinear das personagens (o
professor, o taverneiro, o mascate de ervas, a esposa
irritante, a gata caprichosa) são narradas ao estilo
daquelas cartas barrocas, com longas descrições ou
digressões, riqueza vocabular, referências sacras,
condição de colônia portuguesa, etc, a lembrar as
cartas do Padre Vieira (organizadas por João Adolfo
Hansen, em 2003, apartir da edição de 1735)
A figura do professor Victor Alexandre, com algo
vergonhoso nas brumas do passado, ganha texto e
vida numa narrativa romântica, marcadamente
descritiva e sentimental, que lembra o romance “A
Moreninha” de José Manuel de Macedo, ou uma ou
outra obra de José de Alencar, com aquele momento
de conflito do protagonista ao enfrentar o seu 'destino':
o encontro com o antagonista, ou a perda da coadjuvante
(a mocinha que abandona ou é abandonada). As
descrições são tingidas com o estado emocional da
personagem (“Cinco anos já passados e o horror daquele
almoço continuava vívido e presente. Caminhando
feito um morto-vivo, o professor não conseguia espantar
as dolorosas lembranças que o acompanhavam.”)
enquanto o confronto com os demais vai revelar seu
desassossego (“Victor Alexandre urrou desesperado
e fugiu antes que o horror o transformasse em outro
justiceiro.”)
Já o estilo realista com tons de ironia (vide Machado de
Assis ou Lima Barreto), vem a narrativa sobre Epaminondas,
o taveneiro, com sua simpatia suspeita, seu passado
mal-contado, suas frases feitas, seus sorrisos de máscara.
“Gabava-se o homem de haver prosperado graças, em
primeiro lugar, a uma absoluta dedicação ao trabalho,
uma quase servidão, pode-se dizer, e, em segundo,
ao seu natural pendor para o trato com as pessoas.”
O contraponto romantismo X realismo ganha maior realce
quando se percebe que o título do capítulo romântico é
“Epaminondas”, mas se concentra em Victor Alexandre,
enquanto o capítulo realista é “Victor Alexandre”, mas
descreve Epaminondas! (Será mesmo proposital, ou
um deslize da autora?) Dalmo, o mascate de ervas
(ditas) medicinais, ou de artigos de botica, é descrito
(e radiografado, anatomicamente dissecado) numa escrita
naturalista, cheia de descrições corpóreas (ou hormonais,
se quiserem), onde o ser humano é mais um animal na
fauna do planeta. “Sujeito sempre maldormido, suarento
e catingoso, de unhas sujas e trajo amarfanhado. De
índole mesquinha, é desprovido de qualquer compromisso
com os sentimentos mais elevados de qualquer homem.”
A habitação da personagem também é importante (tal
como a referência: o romance “O Cortiço”/1890, de
Aluisio de Azevedo) para 'determinar' seu caráter:
“O cortiço de Dalmo era o sobrado mais dilapidado e
pulguento da rua, e seu dormitório, no andar de cima,
vivia infestado de percevejos e baratas. (...) Nas manhãs
de domingo, ele escancarava a janela e curava a
carraspana com bicarbonato e ar; depois, postava-se
no parapeito com os sovacos cabeludos à mostra,
exibindo-se às moçoilas numa encardida e indecente
camisa de cava pronunciada.”
Depois de entrelaçar 'ambiente' e 'personalidade', no
estilo naturalista, o conto segue para as encenações,
os contrapontos e o 'psicologismo' do estilo modernista,
caracterizado aqui em dois níveis de narrativa, sendo
um narrador inserido em 'cenas de teatro' (mas,
convenhamos, cena de teatro tem narrador?) A figura
do gato (ou antes, da gata) é mais destacada, como um
símbolo do mistério e do outro-mundo (assim é também
no conto “O Gato Preto”/ The Black Cat/ EUA,1843, de
Edgar Allan Poe e na novela “Pet Sematary”/Cemitério
Maldito/ EUA,1983, de Stephen King), onde o gato é,
na verdade, a encarnação de um demônio, ou uma bruxa
disfarçada, presentificando o terror do desconhecido.
A ação faz um 'flashback' ao situar-se no Egito Antigo,
em Bubatis, mil anos antes de Cristo, nos cerimonais
em devoção a deusa Bastet (ou Ba-en-Aset, a deusa
em forma de gato), em contraponto a ação entre Dalmo
e Alexandre, na década de 40 do século 20, com uma
fala coloquial, despojada, em períodos curtos, em reduzida
descrição, a lembrar o estilo dos Andrades (o Mário e o
Oswald, e também as crônicas de um Rubem Braga). Os
dois planos narrativos se unem na 'mente' da gata Glorinha
que, ao sofrer os maus tratos da esposa de Dalmo,
passa a evocar 'lembranças' de uma vida passada
(quando a gata seria a sucessora do Tefmut – gato
venerado – recém-falecido), e o 'simbólico' e o 'alegórico'
(ou 'carnavalesco', como diria Bakhtin) toma conta: a
'colagem' de influências caracteriza o 'espírito moderno'.
Ou, mais marcadamente, o estilo pós-modernista. Aqui
a apresentar algo de Clarice Lispector, mas também algo
de Virginia Woolf e James Joyce (ainda que falte um toque
de Jorge Luis Borges e/ou Murilo Rubião) com um
'psicologismo' mais acentuado, onde o Leitor tem acesso
aos recôndito das mentes e dos desejos das personagens,
o que elas pouco exteriorizam, ou que nem chega a se
converter em ação (estilo que já consagrou o russo
Dostoiévski, e antes de Sigmund Freud...), pois o 'mundo
íntimo' pode ser também todo um campo de batalha de
embates e resistências, pulsões e recalques, que revelam
maior violência que o 'mundo externo', de interrelação
e socialização.
Assim, o monólogo de Molly Bloom, em “Ulisses”, de J. Joyce,
é um ícone da mente perdida no labirinto dos pensamentos
em fluxo, e visivelmente inspirou o estilo final do conto
(ou contos) de Lia Neiva, em “A gata do rio Nilo”. Aqui,
Naná, que descobre-se ser a esposa de Dalmo, deitada,
a pensar, meio entorpecida, mas em plena atividade
mental – tanto que há a narrativa, há um Narrador, não
o acesso direto ao pensamento, como no 'fluxo de
consciência' – que revela os impulsos e os hesitares da
personagem. Por que ela está entorpecida? Uma doença
súbita? O que há? O tom psicologista causa justamente
este desconforto.
“Estava mais que na hora de sair da cama. Tentou.
Esforçou-se. Não conseguiu. Seu resfriado era realmente
brabo. Melhor ficar deitada. Por sinal, a cama estava ótima.
Seu velho colchão nem parecia o mesmo: ela não sentia
aquele afundamento que torturava a sua coluna. Parecia
que ela estava pousada de leve na cama, sem peso no corpo.
Era bom! Continuava emperrada, mas a sensação de
solidão tinha ido embora; agora, ela sentia uma espécie
de paz. Fez força pra se lembrar quando fora a última vez
que se sentira tão leve. Bota tempo nisso!...”
E o conto (ou contos?) finda assim: Naná, a esposa de
Dalmo, em circunstância que o leitor logo descobrirá qual
é, assim corporalmente passiva, mas mentalmente ativa,
a deixar deslizar uma corrente de pensares (e sentires) que
deixa a leitura à deriva, mas que vai desembocar no oceano
onduante da Narrativa. Afinal, é apenas mais um estilo, o
mais 'moderno' (ou 'pós-moderno', se é que saímos da
modernidade, com tanta coisa de medieval...), e não pretende
resumir ou explicar a fábula (a estória) toda – o Leitor que
coopere, que faça a sua parte. Afinal, leitura é isso: o delírio
e a sugestão do(a) Autor(a) compartilhada e digerida pela
cumplicidade e co-autoria do(a) Leitor(a).
dez/09
Leonardo de Magalhaens
http://leoliteratura.zip.net/
http://desencontrosgrafados.blogspot.com/
Entrelaçando tramas e estilos
Uma das questões que movimentam a vida acadêmica
é aquela dos Estilos de Época: seria mero didatismo?
Será que dividir a história da Literatura em fases, em
períodos com datas de início e fim, em diversos modus
operandi de escrita, em constante mutação, porém
mantendo 'estruturas' de transição (vide as duplas
barroco-romantismo ou realismo-naturalismo) que
permitem identificar a originalidade os autores que
(como bons flutuantes) souberam criar um estilo apartir
de um estilo já consagrado.
A voz autoral (idiossincrasia) a se destacar num dado
Zeitgeist ('espírito da época')? Sim, pois caso contrário,
o estilo ainda seria o das cartas, ou dos diários.
Exemplos de uma 'proto-literatura' (que muitos julgam
mais 'real', 'verídico' que a literatura mesmo, que não
passa de 'ficção'), onde quem escreve não é um Escritor
já pensando num Leitor, mas uma voz narrativa que
confessa a um ente querido, a um familiar, a um amante,
os acontecimentos íntimos, ou crises com a sociedade,
a religião, etc. A narrativa ainda não existiria enquanto
“Narrativa” (que lembrando 'trama', ganha contornos
de 'dissimulação', 'mistificação'...) e o ato de escrever
ainda não seria a “Escrita”.
Em “A gata do rio Nilo”, conto (ou contos?) de Lia Neiva,
a história (ou estória) é simples, há meia dúzia de
personagens, um núcleo apenas, um fato desagradável
que depois se revela um crime. Mas a narrativa (ou
enredo ou trama) é que se mostra importante. O COMO
se é narrado. A ideia de se explorar os diferentes estilos –
em vários recortes, ângulos ou points-of-view (perspec-
tivas) – a cada personagem em foco (pois muda-se o
'foco narrativo') faz lembrar aqueles romances
experimentais (ou semi-originais) como “Ulisses”
(James Joyce) ou “Se numa noite de inverno um viajante”
(Italo Calvino) ou “Crônica da Casa Assassinada” (Lúcio
Cardoso), ou mesmo contos de Osman Lins onde a
narração segue o caleidoscópio das personagens. Obras
estas que exploram a “multiplicidade potencial do
narrável”(I Calvino)
Primeiro, o Leitor tem contato com o 'problema' (afinal,
qual a narrativa que não tem um novelo, um
emaranhado qualquer a complicar, a desfiar e solucionar?)
quando toma conhecimento da correspondência entre o
frei José Lourenço do Amor Divino e seu irmão José
Fulgêncio Pereira Matoso, lá nos meados do século 18,
abordando o estado de saúde e de espírito do jovem
professor Victor Alexandre. Parece que o professor se
envolveu em algo desagradável, um vexame qualquer
e entrou em depressão.
As dúvidas do tio religioso sobre o sobrinho atomentado,
ou a descoberta de um motivo a revelar a causa do
estado depressivo, ou o delinear das personagens (o
professor, o taverneiro, o mascate de ervas, a esposa
irritante, a gata caprichosa) são narradas ao estilo
daquelas cartas barrocas, com longas descrições ou
digressões, riqueza vocabular, referências sacras,
condição de colônia portuguesa, etc, a lembrar as
cartas do Padre Vieira (organizadas por João Adolfo
Hansen, em 2003, apartir da edição de 1735)
A figura do professor Victor Alexandre, com algo
vergonhoso nas brumas do passado, ganha texto e
vida numa narrativa romântica, marcadamente
descritiva e sentimental, que lembra o romance “A
Moreninha” de José Manuel de Macedo, ou uma ou
outra obra de José de Alencar, com aquele momento
de conflito do protagonista ao enfrentar o seu 'destino':
o encontro com o antagonista, ou a perda da coadjuvante
(a mocinha que abandona ou é abandonada). As
descrições são tingidas com o estado emocional da
personagem (“Cinco anos já passados e o horror daquele
almoço continuava vívido e presente. Caminhando
feito um morto-vivo, o professor não conseguia espantar
as dolorosas lembranças que o acompanhavam.”)
enquanto o confronto com os demais vai revelar seu
desassossego (“Victor Alexandre urrou desesperado
e fugiu antes que o horror o transformasse em outro
justiceiro.”)
Já o estilo realista com tons de ironia (vide Machado de
Assis ou Lima Barreto), vem a narrativa sobre Epaminondas,
o taveneiro, com sua simpatia suspeita, seu passado
mal-contado, suas frases feitas, seus sorrisos de máscara.
“Gabava-se o homem de haver prosperado graças, em
primeiro lugar, a uma absoluta dedicação ao trabalho,
uma quase servidão, pode-se dizer, e, em segundo,
ao seu natural pendor para o trato com as pessoas.”
O contraponto romantismo X realismo ganha maior realce
quando se percebe que o título do capítulo romântico é
“Epaminondas”, mas se concentra em Victor Alexandre,
enquanto o capítulo realista é “Victor Alexandre”, mas
descreve Epaminondas! (Será mesmo proposital, ou
um deslize da autora?) Dalmo, o mascate de ervas
(ditas) medicinais, ou de artigos de botica, é descrito
(e radiografado, anatomicamente dissecado) numa escrita
naturalista, cheia de descrições corpóreas (ou hormonais,
se quiserem), onde o ser humano é mais um animal na
fauna do planeta. “Sujeito sempre maldormido, suarento
e catingoso, de unhas sujas e trajo amarfanhado. De
índole mesquinha, é desprovido de qualquer compromisso
com os sentimentos mais elevados de qualquer homem.”
A habitação da personagem também é importante (tal
como a referência: o romance “O Cortiço”/1890, de
Aluisio de Azevedo) para 'determinar' seu caráter:
“O cortiço de Dalmo era o sobrado mais dilapidado e
pulguento da rua, e seu dormitório, no andar de cima,
vivia infestado de percevejos e baratas. (...) Nas manhãs
de domingo, ele escancarava a janela e curava a
carraspana com bicarbonato e ar; depois, postava-se
no parapeito com os sovacos cabeludos à mostra,
exibindo-se às moçoilas numa encardida e indecente
camisa de cava pronunciada.”
Depois de entrelaçar 'ambiente' e 'personalidade', no
estilo naturalista, o conto segue para as encenações,
os contrapontos e o 'psicologismo' do estilo modernista,
caracterizado aqui em dois níveis de narrativa, sendo
um narrador inserido em 'cenas de teatro' (mas,
convenhamos, cena de teatro tem narrador?) A figura
do gato (ou antes, da gata) é mais destacada, como um
símbolo do mistério e do outro-mundo (assim é também
no conto “O Gato Preto”/ The Black Cat/ EUA,1843, de
Edgar Allan Poe e na novela “Pet Sematary”/Cemitério
Maldito/ EUA,1983, de Stephen King), onde o gato é,
na verdade, a encarnação de um demônio, ou uma bruxa
disfarçada, presentificando o terror do desconhecido.
A ação faz um 'flashback' ao situar-se no Egito Antigo,
em Bubatis, mil anos antes de Cristo, nos cerimonais
em devoção a deusa Bastet (ou Ba-en-Aset, a deusa
em forma de gato), em contraponto a ação entre Dalmo
e Alexandre, na década de 40 do século 20, com uma
fala coloquial, despojada, em períodos curtos, em reduzida
descrição, a lembrar o estilo dos Andrades (o Mário e o
Oswald, e também as crônicas de um Rubem Braga). Os
dois planos narrativos se unem na 'mente' da gata Glorinha
que, ao sofrer os maus tratos da esposa de Dalmo,
passa a evocar 'lembranças' de uma vida passada
(quando a gata seria a sucessora do Tefmut – gato
venerado – recém-falecido), e o 'simbólico' e o 'alegórico'
(ou 'carnavalesco', como diria Bakhtin) toma conta: a
'colagem' de influências caracteriza o 'espírito moderno'.
Ou, mais marcadamente, o estilo pós-modernista. Aqui
a apresentar algo de Clarice Lispector, mas também algo
de Virginia Woolf e James Joyce (ainda que falte um toque
de Jorge Luis Borges e/ou Murilo Rubião) com um
'psicologismo' mais acentuado, onde o Leitor tem acesso
aos recôndito das mentes e dos desejos das personagens,
o que elas pouco exteriorizam, ou que nem chega a se
converter em ação (estilo que já consagrou o russo
Dostoiévski, e antes de Sigmund Freud...), pois o 'mundo
íntimo' pode ser também todo um campo de batalha de
embates e resistências, pulsões e recalques, que revelam
maior violência que o 'mundo externo', de interrelação
e socialização.
Assim, o monólogo de Molly Bloom, em “Ulisses”, de J. Joyce,
é um ícone da mente perdida no labirinto dos pensamentos
em fluxo, e visivelmente inspirou o estilo final do conto
(ou contos) de Lia Neiva, em “A gata do rio Nilo”. Aqui,
Naná, que descobre-se ser a esposa de Dalmo, deitada,
a pensar, meio entorpecida, mas em plena atividade
mental – tanto que há a narrativa, há um Narrador, não
o acesso direto ao pensamento, como no 'fluxo de
consciência' – que revela os impulsos e os hesitares da
personagem. Por que ela está entorpecida? Uma doença
súbita? O que há? O tom psicologista causa justamente
este desconforto.
“Estava mais que na hora de sair da cama. Tentou.
Esforçou-se. Não conseguiu. Seu resfriado era realmente
brabo. Melhor ficar deitada. Por sinal, a cama estava ótima.
Seu velho colchão nem parecia o mesmo: ela não sentia
aquele afundamento que torturava a sua coluna. Parecia
que ela estava pousada de leve na cama, sem peso no corpo.
Era bom! Continuava emperrada, mas a sensação de
solidão tinha ido embora; agora, ela sentia uma espécie
de paz. Fez força pra se lembrar quando fora a última vez
que se sentira tão leve. Bota tempo nisso!...”
E o conto (ou contos?) finda assim: Naná, a esposa de
Dalmo, em circunstância que o leitor logo descobrirá qual
é, assim corporalmente passiva, mas mentalmente ativa,
a deixar deslizar uma corrente de pensares (e sentires) que
deixa a leitura à deriva, mas que vai desembocar no oceano
onduante da Narrativa. Afinal, é apenas mais um estilo, o
mais 'moderno' (ou 'pós-moderno', se é que saímos da
modernidade, com tanta coisa de medieval...), e não pretende
resumir ou explicar a fábula (a estória) toda – o Leitor que
coopere, que faça a sua parte. Afinal, leitura é isso: o delírio
e a sugestão do(a) Autor(a) compartilhada e digerida pela
cumplicidade e co-autoria do(a) Leitor(a).
dez/09
Leonardo de Magalhaens
http://leoliteratura.zip.net/
http://desencontrosgrafados.blogspot.com/
A história "A gata do rio Nilo", foi um deleite para mim.Entrando nos labirintos em que a estória nos conduz e manter a atenção no desenrolar da mesma.
ResponderExcluirFoi emocionante.
Att,
Verinha