segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

sobre A Última Fábula - de Liliana Laganá





sobre “A Última Fábula” (Casa Amarela, 2002)
da autora Liliana Laganá


Quando as Guerras bombardeiam as Fábulas


-Conta, nonna!
-Que fábula querem hoje?
-Da tua guerra, nonna!


Em ensaio anterior, abordamos a guerra no olhar das crianças, em narrativas que se desenvolvem na perspectiva das crianças, que ainda não entendem a 'realidade do mundo': a ignorância misturada à ambição. A realidade atroz que atingiu (e ainda atinge) as crianças num cenário de guerra, e as crianças, desprotegidas e desarmadas, sobrevivendo com as famílias, ou sem estas, numa experiência traumatizante de serem também alvos. Na mira de exércitos, guerrilhas, máfias, ditadores, populistas, pseudo-democratas, e sem qualquer defesa no 'no man's land' da guerra total.

O contexto aqui, em “A Última Fábula”, é a guerra na Itália, nos idos de 1943, quando o conflito chegou à península latina. Antes as tropas italianas lutavam na Albânia, na Grécia e no norte da África, lado a lado com as tropas germânicas. Com as ofensivas aliadas (ingleses mais aliados, entenda-se) as tropas italianas se retiraram para casa, e quando o governo de Mussolini caiu, seguido do armistício, em setembro, os soldados italianos foram rendidos e desarmados pelos alemães, que ocuparam a Itália, até o fim da guerra, em 1945.

A Itália estava visivelmente despreparada para a 'guerra moderna'. Grande número de infantaria e uso de blindados ultrapassados, em contraste com a 'Blitzkrieg' mecanizada-motorizada-blindada dos alemães. Assim o país do ditador fascista não conseguiu suportar o embate entre germânicos e anglo-saxões.

A península itálica tornou-se o campo de batalha entre os próprios italianos (os partigiani, de esquerda, contra os fascistas, de direita), e entre os nazistas e os ingleses (e suas tropas aliadas, os norte-americanos, os poloneses, os franceses, os brasileiros, etc) e quem mais sofreu foi a população civil, os camponeses, as mulheres e crianças.

São realmente pungentes os casos de soldados que voltam da guerra, do front, seja na Albânia, na Grécia, ou na África do Norte, tendo sobrevivido às batalhas, ou aos campos de prisioneiros (de alemães ou ingleses) e ao chegar em casa descobrem que a filhinha, ou um filho já rapaz, foi morta(o) por uma bomba, um estilhaço de granada ou uma mina enterrada. Assim, eles, os soldados, foram ao 'inferno da guerra' e sobreviveram, enquanto um inocente, desarmado, foi ferido e morto na guerra 'entregue à domicílio'. Não é preciso mais ir até a guerra, pois a guerra vem até a nós!)

Aquelas mesmas família que, temendo o bombardeio das grandes cidades, se refugiam nas cidades pequenas, nas aldeias, nos campos, ao chegarem ao interior, nestas aldeias, onde encontram as populações atacadas por alemães, facistas ou partigiani, ou até bombardeadas pela aviação aliada, e acabam por buscar refúgio em cavernas, nas colinas, ou poços cavados com ferramentas rústicas.

A mesma Itália que sofreu com tantas invasões, desde a era do apogeu romano, atacada por bárbaros, germânicos, hunos, vândalos, e depois sarracenos, turcos, etc, e na era medieval, ocupada ora por espanhóis, ora por franceses, agora, em pleno século 20, invadida por alemães, e libertada (com uma 'chuva de aço') pelos aliados, tendo o solo de relíquias culturais dolorosamente revirado por explosões e copiosamente regado pelo sangue derramado. Não o sangue dos tantos soldados, pesadamente armados, mas principalmente o sangue dos civis desarmados.

Pode se evocar semelhante contexto, quando se acompanha a narrativa da fuga da família de Liliana, saindo de Roma em busca de abrigo no interior, a aldeia natal da mãe da menina, onde a família reencontrará os parentes, a vida simples no campo, onde todos se conhecem, a aldeia de Fratterosa (atualmente Fratte Rosa, nos montes Apeninos, a oeste do porto de Ancona, que foi bombardeado durante a guerra), que depois sofrerá com a presença de soldados alemães, que resistem ao avanço dos Aliados.

A menina cresce então naquele universo rural, desconhece o que seja 'Roma', tem pouco contato com o pai (ele está sempre a 'fazer a guerra') e deixa-se ligar, com intensa afetividade, à figura da nonna (avó) Gemma, sempre a narrar as fábulas, aquelas narrativas orais que atravessam gerações. Fábulas que retratam a ignorância e a ambição, e também a esperteza e a coragem, que delimitam o 'bem' e o 'mal', e transmitem a cultura de um povo. As descrições de ambientes, paisagens, pratos típicos, receitas domésticas, costumes e falas populares, buscam retratar (e testemunhar) um mundo que se foi, se perdeu meio às névoas fabulosas, a esfumaçar-se, a tornar-se então 'fábula'.

A nonna é aquela que narra as fábulas nos idos de 1943, até 1946, quando a família retorna a Roma, onde o pai encontrará emprego, mas a 'fábula' da Narrativa que o Leitor tem em mãos é a 'fábula' da própria Liliana, agora, por sua vez, uma nonna, a narrar sua 'fábula da guerra' para os netos, nascidos no Brasil, em São Paulo, para onde a família emigrou em 1955. A 'fábula' – passada de geração a geração – vem a ser o elo de união entre experiências dos ancestrais e as crianças que desconhecem uma realidade mais dura. É como se para elas, as crianças no conforto, a experiência de 'sobreviver a guerra' fosse mesmo uma fábula – compartilhando a “Terra do Nunca” de fadas e duendes. Se não houvesse a 'narrativa' enquanto trasmissão de experiências seria possível até a negação dos fatos (assim como há gente que negue o “Holocausto” - como se considerassem os testemunhos como 'fábulas'...)

Certamente muitas 'fábulas' surgiram de fatos reais (existem leituras de contos-de-fadas, como "Branca de Neve” e “A Bela Adormecida”, que visam 'desmistificar' as fábulas, abordando suas origens, a época, o sistema de castas, o contexto de violência, etc) mas o caráter de 'fábula' se evidencia mais pelos 'simbolismos', as metáforas e alusões que carrega e, sendo passível de transmissão, é capaz de emocionar gerações. A 'fábula' agindo como uma 'presentificação' (mais que uma 'evocação oral') de um acontecimento (ou de um mundo) remoto.

A própria narrativa de “A Última Fábula” mostra isso. É possível ouvir a voz da nonna Liliana carregando a voz da menina Liliana, que narra as vivências junto a outra nonna, a Gemma sempre as narrar outras tantas 'fábulas'. Imagina-se de imediato uma longa fila de narradoras e fabulistas, e vovós acalantando netas e netos, e geração após geração, dormitando (e dormindo) ao som de uma voz doce que pode até narrar fatos cruéis. Afinal, faz parte do 'humano' carregar em si o máximo da 'bondade' e o ápice da 'crueldade' (“a mão que afaga é a mesma que apedreja”, escreveu Augusto dos Anjos...)

É assim que a criança vai interiorizar o mundo adulto, onde a guerra é real, e a morte pode ser trágica, brutal e gratuita, sem mandar avisos, poupando o homem nas trincheiras, sob o fogo de artilharia, e ceifando uma vida inocente numa penumbra de ruela ou no interior de um quarto, indiferente a lógica ou ao mar de lágrimas que vem regar os sobreviventes nas populações civis atingidas. Não é novidade para ninguém que as guerras modernas se notabilizam pelas enormes baixas entre os civis, sobrepujando os dos soldados, ditos 'profissionais da guerra'. Tanto é assim que inventou-se a classificação 'guerra total' que não mais se limita aos 'campos de batalha', mas se alastra, nutrida e mantida por complexos industriais, usando estratégias globais, com bombardeios por área, ou ditos 'cirúrgicos', não respeitando as populações desarmadas, e portanto indefesas.

Quanto mais se estuda a epopeia sangrenta e fútil das guerras, mais se fortalece o espírito pacifista. Seria realmente um consolo que a 'guerra' fosse mesmo uma fábula, ou 'a última fábula', como pensam os netos da nonna Liliana, que preferem as narrativas de crueldade militar que as espertezas de um pequeno polegar. Mas as vítimas de ontem e hoje, de bombas e minas terrestres, não nos deixam viver na indiferença quanto ao destino da humanidade diante dos conglomerados econômicos, das indústrias armamentistas, e os fundamentalistas com seus artefatos nucleares, prontos e ansiosos para destruírem todas as 'fábulas' das crianças e deixarem inúmeras narrativas de profundo pesadelo e sempre presente terror.


Dez/09


Por Leonardo de Magalhaens

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leitura de “A Última Fábula” (2002)
das autora Liliana Laganá

Editora Casa Amarela

email – casamarlivros@uol.com.br

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