terça-feira, 12 de janeiro de 2010

sobre ROBINSON CRUSOÉ de D Defoe





sobre “Robinson Crusoé” (The Life and strange
surprizing Adventures of Robinson Crusoé
, 1719)
de Daniel Defoe (UK, 1659-1731)


A Literatura enquanto narrativa de Aventuras

parte 1 – Robinson Crusoé
parte 2 – Moby Dick
parte 3 – A Volta ao Mundo em 80 dias


As narrativas de aventuras, enquanto relatos de viagens e
aprendizados, sempre foi muito apreciada pelo público leitor,
principalmente europeu (pois trata-se do “cânone ocidental”),
ao atrair com paisagens e culturas outras, em contraste
com a 'magnífica civilização' europeia. Povos e culturas que
não seguem os 'princípios cristãos' e, portanto, precisam
ser catequizados.

A 'magnífica civilização', espera-se, deverá estender seus
tentáculos até os 'incivilizados' e, em violenta 'domesticação',
guiar os selvagens às glórias da vida civilizada. Assim tais
relatos mostram uma visão de 'estranhamento' quanto aos
habitantes dos trópicos, das savanas e florestas, das alturas
de Macchu Picchu, das muralhas chinesas. E o explorador,
o aventureiro que atrai as simpatias do leitor, é aquele que
vai descrever o mundo distante, e ao mesmo tempo ousar
resgatar os nativos.

É em relação a tais 'narrativas de viagens' (travellers' tales)
que se situa a sátira de um “Viagens de Gulliver” (Swift, 1735),
quando encontra cavalos mais 'civilizados' do que os europeus
que se apontam como o 'ápice da civilização'. Podemos
dizer que 'Viagens de Gulliver' é um anti-Robinson Crusoé.
Enquanto o objetivo de Defoe é a 'edificação moral', a de
Swift é a sátira aos costumes. No mais, tanto Robinson
quanto Gulliver (os Narradores) escrevem após suas
surpreendentes aventuras, e tecem comentários, pedem
desculpas aos leitores pelo que pode ser exagero, ou rogam
humildemente por um pouco de crença alheia, 'por favor,
acreditem em mim!'

A 'edificação moral' em “Robinson Crusoé” começa com a
figura paterna, o pai de Robinson. Para o velho comerciante,
a virtude está no mediano – viver na classe média, nem rico
nem pobre – e evitar extravagâncias, causadoras de um 'futuro
incerto'. O pai sensato diz ao filho (louco por aventuras) que não
pode evitar a viagem do filho, mas que seria imprudência (para
não dizer idiotice) arriscar-se em viagens quando se pode viver
uma vida tranquila de classe média (tal um comerciante ou
jurista, por exemplo)

Mas apesar de todos os pedidos de sensatez, por parte do
'ajuizado' pai (e não poderia ser diferente...), o jovem Robinson
quer mesmo viajar... e Robinson (o mais velho, o que escreve)
sempre anotando que o jovem Robinson corria atrás da própria
destruição, como se perseguido por um 'demônio da perversidade'
(assim diz Poe) ou 'instinto de morte' (no conceito de Freud)

Em suas aventuras, Robinson é capturado por piratas, na
costa norte-africana, e aprisionado vai tornar-se escravo.
Vive em cativeiro, servindo ao corsário de Sallee, durante
dois anos, até conseguir fugir. Após navegar junto a costa
do Marrocos, até quase as Ilhas Canárias, Robinson (e um
menino muçulmano que o acompanha) consegue abrigo em
um navio português que viaja rumo ao Brasil.

No Brasil, após desambarcar na Baía de Todos os Santos,
graças às boas intervenções do capitão lusitano, Robinson
consegue algum capital e contatos, o que possibilita sua
experiência de ser agricultor, nos enormes latifúndios
(plantations) que retalhavam a colônia portuguesa, naquele
século 17. Quase quatro anos prendem o inglês ao solo
brasileiro. Mas o próprio Robinson reconhece que não está
no seu destino tornar-se um 'plantador brasileiro'.

Nos primórdios do tráfico negreiro, quando os fazendeiros
precisavam de mão-de-obra (e escrava!) para manter suas
enormes plantations, Robinson é convidado por proprietários
para uma excursão de aprisionamento de negros, na costa
africana. Robinson seria o guia, devido àquela famosa aventura
anterior.

Robinson estava decidido a evitar a vida (e a morte) no mar,
e manter os pés na terra firme. Mas não consegue resistir às
propostas de viagem.

But I, that was born to be my own destroyer, could no more resist the offer than I could restrain my first rambling designs when my father' good counsel was lost upon me.

“Mas eu, que nasci apenas para ser meu destruidor, não poderia resistir a oferta que poderia conter meus ímpetos quando abandonei os bons conselhos de meu pai.”


Rumam para a costa norte, até Fernando de Noronha,
onde novas tragédias esperam o aventureiro Robinson Crusoé.
As tempestades arrastam o navio nas ondas revoltas, não para
leste, para a costa africana, mas para oeste, para o norte
brasileiro, as Guianas e o Caribe. Sempre que as 'coisas dão
erradas', Robinson se recrimina, amaldiçoa seu destino de
'aventureiro'.

O navio é abandonado, mas o escaler não é capaz de
enfrentar as ondas. Todos os marinheiros naufragam, exceto
Robinson. Arremessado aos recifes e atirado sobre a praia.
Exausto e desorientado, o náufrago se abriga numa árvore do
bosque, temendo a chegada de feras ou homens selvagens.
Somente tem consigo, além das roupas molhadas, uma faca,
um cachimbo e um rolo de fumo. Como poderá sobreviver?

Então, eis o milagre. Antes tivessem todos permanecido no
navio! Pois se o escaler foi facilmente virado, o navio tão-
somente foi empurrado para a praia, a ficar encalhado entre
rochas e recifes. É este navio (quase) inteiro que será a
salvação de Robinson. Lá ele terá a sua disposição uma
miríade de bens produzidos pela civilização – tudo o que
ele precisa para edificar sua cabana, seu novo lar. Até ser
salvo.

Enquanto não vem o salvamento, Robinson trabalha para
se manter. Cabana, caverna, provisões, jangadas, plantações,
abate de animais selvagens, reconhecimento do périplo da
ilha, saber se há ou não nativos selvagens ou outros
colonizadores europeus, etc. Tudo isso é minuciosamente
relatado em trechos de diário e na narrativa propriamente
dita – é o principal deste livro incrível. Um homem que,
sozinho, consegue 'domesticar' a ilha selvagem e criar um
novo lar.

Evitando a ociosidade – Robinson se justifica o tempo todo:
raramente fico ocioso” - o inglês constrói uma verdadeira
fortaleza, e se arma com estacas, mosquetes, provisões de
pólvora e munição. Além disso, os grãos que jogou ao redor
da caverna logo brotam e crescem – a primeira lavoura
(não exatamente planejada) de arroz e cevada.

Robinson certificando-se que realmente é o único
sobrevivente, começa a se indagar porque ele se salvou e
os demais (os outros onze marujos) pereceram. Será esta
a provação, o castigo enviado pelos Céus, para punir sua
vida de aventuras longe do lar? Sozinho e desamparado numa
ilha selvagem, precisando trabalhar pesado para garantir o
mínimo de subsistência!

Assim, a condição do náufrago pode ser péssima e também
boa. Robinson está sozinho, por conta própria, mas não há
nativos selvagens na ilha, não há bestas-feras, não há perigo
visível e de imediato. As defesas vão sendo construídas,
pouco a pouco, e se destinam a perigos futuros. As provisões
do navio permitem uma sobre-vida maior, mesmo que a
pólvora seja limitada (e esteja molhada) ou não tenha velas,
e a tinta para escrever vai acabando... Pior seria, o homem
naufragar numa ilha de selvagens e sem sequer uma arma!

Essas meditações – os capítulos seguintes são exatamente
isso: meditações sobre as atividades e providências diárias –
levam o náufrago a voltar-se para pensares metafísicos,
um retorno à religiosidade, um questionar sobre as
intervenções divinas. Leve, quando adoece, devido ao clima
tropical, recorre a prece (e depois à leitura de uma Bíblia,
encontrada num baú) e passa a conduzir a narrativa como
um edificante sermão – a condenar aqueles que se extraviam
na vida, deixam de seguir os bons conselhos, e querem se
aventurar. “Que cada um se satisfaça e fique na posição que
lhe foi destinada
” é a lição que o velho Robinson quer passar
através da narrativa das vicissitudes do jovem Robinson.

No novo mundo do náufrago não há 'divisão de trabalho'.
Robinson é rei e serviçal, é agricultor e caçador, é construtor
e explorador. Executa todas as atividades para sua subsistência.
É o empregado e o empregador de si-mesmo. O homem em
constante trabalho, criando a si-mesmo enquanto transforma
o ambiente e cria a civilização. (O homem que inspira a vida
de um David Thoreau, século e meio depois, na busca da
solidão, criando seu próprio mundo, no abrigo do eremita na
sua cabana na floresta, segundo pode-se ler em “Walden”, 1854)
Nenhuma autoridade a não ser aquela de sua 'consciência moral'
(inclusive essa 'moral' cultivada na solidão é um dos temas
principais, além do 'relativismo cultural' quando aparecem
os nativos)

Pois a próxima fase no 'aprendizado' de Robinson – após a
difícil convivência consigo mesmo, durante quinze anos! – é a
de aceitar a presença do Outro. De repente, ele descobre
uma pegada numa praia e fica profundamente assustado.
Existem outras pessoas andando naquela ilha! De repente,
os nativos (os canibais!) podem descobrir sua morada e surgir
num ataque! Assim, Robinson – antes ansiando por companhia –
agora fica horrorizado: aumenta o 'aparato defensivo' de sua
fortaleza, não se distancia do abrigo, está sempre armado.

Com o tempo, pois logo passaram-se mais seis anos, ele
descobre os rituais antropofágicos nas praias da ilha. As
tribos em guerra se alimentam dos prisioneiros. Tal 'costume
tribal' causa nojo profundo no europeu, apegado à sua 'moral
cristã'. Ele pensa se não seria o caso de atacar e destruir
estes selvagens canibais. Contudo, mantem-se às ocultas.
Até o dia em que surge a oportunidade de salvar um dos
prisioneiros. O selvagem, finalmente salvo pela intervenção
de Robinson, vem demonstrar sua humildade ajoelhando aos
pés do novo amo. Estando numa manhã de sexta-feira,
Robinson passa a chamar o seu novo servo (e única companhia)
de Friday.

Ensinando a 'vida civilizada' ao jovem selvagem, Robinson
vai introduzindo Friday ao culto cristão, além dos hábitos
europeus (vestir roupas, comer carne assada ou cozida,
abandonar o canibalismo, etc), ousando explicar passagens
complicadas do mito cristão, para melhor 'salvar a alma' do
selvagem. Enquanto isso, o índio vai assumindo as tarefas
braçais. Ou seja, o europeu vem salvar o incivilizado, mas
espera que o outro pague com trabalho esforçado e obediente.
Eu agora me ocupo em pensar e planejar, enquanto você
se encarrega do trabalho pesado
”, eis a fórmula do
'processo civilizatório'.

Com a ajuda de Friday, sempre submisso, o mestre
Robinson vai enfrentar os próximos selvagens, vai libertar
prisioneiros, vai abrigar mais 'súditos' em seu 'reino' (a 'ilha
civilizada'), vai enfrentar um motim num navio de ingleses –
providencialmente (?) ancorado nas costas da ilha considerada
deserta. Ao ajudar o capitão inglês, a derrotar os amotinados,
Robinson vai conseguir sua passagem de retorno para o
lar. Chega ao solo britânico, enfim, velho e deslumbrado,
após 35 anos de ausência.

Em resumo, esta é a narrativa de “Robinson Crusoé”. Os
símbolos da Obra podem ser destacados, podem ser reavaliados.
Uma aprendizagem, na fuga da autoridade paterna, para uma
aprendizagem consigo mesmo e para aceitar a 'relatividade
cultural' do Outro. O homem sozinho a trabalhar para o próprio
sustento, ou a civilização contra o mundo selvagem. Todas
estas leituras são válidas e merecem crédito, mas todas
convergem para a aventura enquanto ir além dos limites,
superar uma 'cosmo-visão' recebida e, com maturidade,
criar outro modo de ver o mundo.



Dez/09

por Leonardo de Magalhaens

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