quarta-feira, 10 de novembro de 2010

sobre DOM CASMURRO - de Machado de Assis








Sobre “Dom Casmurro” (1899)
romance de Machado de Assis (1839-1908)
escritor brasileiro



A máscara personal do Autor


Destaca-se na prosa da segunda metade do século 19 uma tendência a fundamentar uma estilística que superasse os formatos do romance romântico, já ultrapassado. Muitos criticavam o uso de formatos importados, advindos da literatura europeia. Contudo, muitos reagiram ao romance romântico com outras formas importadas.

A Crítica passou a considerar um novo estilo em contraponto ao estilo romântico, e denominou Realismo a este modo mais 'realista' de enfocar os modos e tipos sociais, mostrados de forma deveras subjetivista em autores como Macedo e Alencar. Muito do Realismo brasileiro era influenciado pelos autores tais como Eça de Queirós (Portugal) e Balzac, Flaubert e Maupassant (França), mas com uma tematização da 'cor local' – era importante inserir cenas da vida nacional dentro da prosa, contos ou romance.

Dentro do Realismo outros autores tenderam mais do que a 'fotografar' a realidade, mas quiseram explicar, de forma cientificista, isto é, de acordo com as teorias científica, positivistas que vicejavam na época – algo de darwinismo, psiquiatria, etc – que daria uma faceta 'séria' ao escritor e obra – queria uma prosa mais do que 'entretenimento' e mais como denúncia.

Assim – baseado em técnicas de um Zola, autor francês – um autor implantou entre nós o Naturalismo. Trata-se da obra de Aluízio de Azevedo, celebrizado basicamente por três obras 'naturalistas' - “O Mulato”, “O Homem” e “O Cortiço”. Nestas obras a ênfase nem é tanta nos indivíduos – mas nos condicionamentos de meio e raça. No que há pouco espaço para os psicologismos de um Stendhal ou de um Flaubert. Predomina um tom antropológico, onde os indivíduos não superam a condição de animais.


Pois bem, ainda dentro do Realismo, mas não encubado no Naturalismo, surgiria um autor – advindo de orlas românticas – outro autor que continuaria (de certa forma) a excepcionalidade de um Manuel Antônio de Almeida (que o assinava “O Brasileiro”), autor do insuperável “Memórias de um Sargento de Milícias” (1852-53), obra de tradição pícara de fundo hispânico, mas nacionalíssima. Conservando um riso de mofa e um tom cínico, Brás Cubas surgiria para assombrar os leitores de Machado de Assis.


A Crítica aplaude “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881) como um marco do Realismo – ainda que passe longe de um Flaubert ou de um Maupasssant, e se aproxime mais de um Swift, um Sterne, um Voltaire ou um Dickens – pois supera o formato romântico ao 'desconstruir' as categorias exaltadas pelos românticos. Daí continuaria a entender o Realismo em reação ao Romantismo.


Ora, Machado de Assis fez mais. Não apenas foi iconoclasta, não apenas ficou na ironia, resolveu criar a partir da fauna de tipos e caricaturas o que transbordava de mesquinhez e banalidade na sociedade brasileira. Os proprietários, os parasitas, os funcionários, os serviçais, os escravos. Fez, entre nós, o que Gógol fizera na Rússia, o que Balzac fizera na França, o que Dickens fizera na Inglaterra. Com cerca de quarenta anos de atraso, concebeu uma galeria de personagens ao mesmo tempo brasileiras e universais.


Não falaremos aqui de “Memórias Póstumas” ou de “Quincas Borba” - obras umbilicamente ligadas pela ironia e pelo capricho – onde o cômico se entrelaça ao trágico. Mas abordaremos uma obra que se inclui em outro ciclo – o de maturidade , onde é o melancólico que se sobrepõe ao cínico. Falamos de “Dom Casmurro”, “Esaú e Jacó” e “Memorial de Aires”. Nossa ênfase aqui é “Dom Casmurro”.

Trata-se de um romance com narração em 1ª pessoa, onde Bento de Albuquerque Santiago, ou Bentinho, o chamado Dom Casmurro, reconstrói a vida com Capitolina, ou Capitu, através da escrita – cerca de 40 anos depois... “Um dia, há bastantes anos lembrou-me reproduzir no engenho Novo a casa em que me criei na antiga Rua de Matacavalos, dando-lhe o mesmo aspecto e economia que daquela outra, que desapareceu.”

Parece mais uma sessão de análise – compararemos com “São Bernardo” e “Angústia” de Graciliano Ramos e “Grande Sertão: Veredas” de Guimarães Rosa, ou as memórias desenfreadas de um Marcel Proust ou de um Pedro Nava. Uma voz que tenta reelaborar o 'passado' pela estilística de uma obra escrita. Escreve para melhor se entender – e se justificar. Num duplo plano, há um Narrador que se vê no mundo de outrora, onde foi uma Personagem. Há um Eu-de-hoje a falar de um Eu-de-ontem.

Que seja. Falemos das Personagens, sobre as quais há toda uma teoria - vide os compêndios de Teoria da Narrativa. Lá as personagens podem ser divididas basicamente em três tipos, a saber, indivíduos – tipos – caricaturas. De uma maior grau de individuação até uma fórmula genérica que leva ao riso.

Podemos dizer que tanto Bentinho quanto Capitu sejam indivíduos, enquanto outros – José Dias, Tio Cosme, prima Justina – se figuram bem como... figurantes. Dona Glória, por exercer uma hegemonia sobre a família, fica numa posição intermediária. Podemos dizer que Capitu se destaca como protagonista – dominadora – pessoa, isto é, a narrativa gira em torno dela; ela domina o Narrador-personagem; e depois que fechamos o livro é a única personagem que enxergamos enquanto 'pessoa', verossímil e quase tocável. É inesquecível.

Mas – detalhe não tão detalhe assim - Capitu é vista pela perspectiva de Bentinho (não há aqui um Narrador neutro – 3ª pessoa), portanto se o leitor confiar em Bentinho então poderá concluir que Capitu foi infiel. Se não confiar em Bentinho poderá considerar que é tudo fantasia de um ciumento, ou sequer chegar a qualquer certeza, pois não há certeza de qualquer informação fornecida pelo Narrador suspeito. É melhor fechar o livro. Afinal, ler é um pacto do Leitor com o Narrador/Autor.



Relações entre Autor, Narrador e Personagens


O Narrador-Personagem Bentinho é um ressentido, enquanto personagem foi um ingênuo, ao ser dominado pela mãe, pela família e pelas manobras de Capitu. Ele se sentia aprisionado e quem ama mais é quem sofre mais. Semelhante a Brás Cubas – com as cínicas 'memórias póstumas' – Bentinho nunca é totalmente confiável – ainda que seja menos cínico, e mais trágico.

Vejamos o que diz Roberto Schwarz em “Um Mestre na Periferia do Capitalismo” (2000), cujo título da obra lembra muito o daquele livro de W. Benjamin sobre o poeta simbolista francês, “Charles Baudelaire – Um Lírico no apogeu do Capitalismo” (“Charles Baudelaire, ein Lyriker im Zeitalter des Hochkapitalismus”), mas tendo em distinção a condição periférica do escritor brasileiro, ao comparar o tipo de narrador no modo discursivo – ironizar o capricho, o caráter volúvel dos proprietários cultos que narram seus dramas – assim o cínico Brás Cubas, assim o amargurado Bentinho.

Assim, a forma ostensiva das Memórias é delineada pelo movimento, ou melhor, pela futilidade do narrador; já no plano latente o feitiço vira contra o feiticeiro, e a massa das circunstâncias – desvalorizadas embora – torna-se determinante. A relevância delas por definição escapa à voz narrativa, a qual por isto mesmo fica desacreditada. Daí a presença poderosa e difusa da matéria social, sem contorno fixado, a existência que pesa e influi mas não se vê refletida numa formulação. Trata-se, noutras palavras, de um livro escrito contra o seu pseudo-autor. A estrutura é a mesma de Dom Casmurro: a denúncia de um protótipo e pró-homem das classes dominantes é empreendida na forma perversa da auto-exposição 'involuntária', ou seja, da primeira pessoa do singular usada com intenção distanciada e inimiga (comumente reservada à terceira). A chave deste procedimento está na insuficiência calculada dos pontos de vista do narrador em relação aos materiais que ele mesmo apresenta.” (p. 82)


Em relações entre personagens e autor são tema do capítulo “O Autor e a Personagem” de “Estética da Criação Verbal” do crítico russo Bakhtin. Onde encontramos interessantes afirmações.

“A luta do artista por uma imagem definida da personagem é, em grau considerável, uma luta dele consigo mesmo” (p. 4) e “O autor nos conta essa história centrada em ideias apenas na obra de arte, não na confissão de autor – se esta existe -, não em suas declarações acerca do processo de sua criação;” (p. 5)


Pensamos em Tolstoi e Dostoiévski, lidos por Bakhtin, o quanto há de cada autor nas personagens. O crítico russo faz questão de diferenciar Autor das Personagens, até de Narrador. Estão em planos distintos. Afinal, não é o autor-pessoa, com base biográfica, que se expressa na obra, mas um “autor-criador”, só compreensível a partir da Obra. Lembramos de alguns escritores. Se Flaubert dizia que “Madame Bovary sou eu”, em declarada identificação, poderíamos encontrar algum traço de Tolstoi em Anna Karenina? Ou algo de Dostoiévski em Raskolnikov? - só para ficarmos entre as personagens mais conhecidas.

“O autor vivencia a vida da personagem em categorias axiológicas inteiramente diversas daquelas em que vivencia sua própria vida e a vida de outras pessoas – que com ele participam do acontecimento ético aberto e singular da existência -, apreende-a em um contexto axiológico inteiramente distinto.” (p. 13)


Na verdade, não havendo uma 'perspectiva' do Autor, pode-se considerar uma pluralidade de perspectivas – cada personagem simbolizando um modo de ver, numa posição social diferente, numa localização geográfica ou histórica diversa. O autor então pode – no máximo – escolher uma ou duas personagens para expressar a opinião do Autor-pessoa dentro do drama. No mais, atua como 'regente', ao manter a orquestra de perspectivas num “discurso polifônico”.

Em “Bel-Ami”, por exemplo, muitos críticos identificam o Autor Maupassant na personagem do poeta Norbert de Varenne, de um lirismo amargurado diante da finitude da vida, pois o autor encontrava-se doente e consciente da morte próxima. Assim, outros tantos críticos identificam na personagem Conselheiro Aires – de “Esaú e Jacó” e “Memorial de Aires” - o próprio autor Machado de Assis, que envelhecia, mais melancólico do que cínico, a resignar-se à viuvez, e a morte iminente.

Ainda segundo Bakhtin, a identificação com personagens seria mais fácil para o leitor menos crítico, pronto a se identificar com as personagens – leitoras que se imaginam Madames Bovarys, ou leitores que se imaginam o sedutor Bel-Ami. Eis um trecho do capítulo II, A Forma Espacial da Personagem,

“Às vezes, quando pessoas sem cultura leem sem arte um romance, a percepção artística é substituída pelo sonho, não por um sonho livre e sim predeterminado pelo romance, um sonho passivo, e o leitor se compenetra da personagem central, abstrai-se de todos os elementos que lhe dão acabamento, antes de tudo da imagem externa, e vivencia a vida dessa personagem como se ele mesmo fosse o herói dessa vida.” (p. 27)


Em que medida o Narrador expressa as perspectivas do Autor? Se o Narrador não é o Autor, então quem é o Autor. Quem é Machado de Assis? Um liberal anti-monarquista? Um intelectual solitário? Um pensador a la Ivan Karamázov? Dono de um 'ceticismo ilustrado'? Um cínico? Um debochado? Um adepto do 'darwinismo social'? Um adepto da teoria do 'rodízio das Elites'?

Quando o Autor resolve criticar a burguesia de dentro das fileiras burguesas – pois Brás Cubas, Bentinho-Dom Casmurro, o Conselheiro Aires são personagens do mundo burguês, da classe dos proprietários ou funcionários, burocratas de destaque – quando há esta crítica ela parte de um não-burguês? De um anti-burguês? De um socialista? Ele zomba da burguesia para que esta se reforme? É mais uma crítica liberal ao pseudo-liberalismo?

Machado de Assis nada tem de 'revolucionário'. Assim também não era revolucionário um Swift, que era crítico – e cínico – mas não 'iconoclasta'. E assim também um Voltaire, iluminista, crítico, mas dificilmente se aliaria a um Marat, ou a um Robespierre, dentre outros 'ativistas'.

Mais anti-burguês seria um Lima Barreto, também de origem modesta, pobre. Mas diferente de Machado, o Barreto não conseguiu ascensão social, nem conseguiu 'apurar o estilo'. Ele ainda ficou no desabafo – com o ácidos romances “Recordações do Escrivão Isaias Caminha” (1909) e “Triste Fim de Policarpo Quaresma”(1915) – onde mostra os obstáculos para aqueles que desejam 'ascensão social', principalmente devido aos preconceitos de classe e cor. Tanto Machado quanto Barreto eram mulatos e sabiam o quanto o preconceito era arraigado numa cultura escravocrata – sobre a qual o decreto da Princesa Isabel foi uma mera pincelada de verniz, pois os negros foram libertados de uma escravidão e escravizados em outros modos de exploração.

As críticas de Machado de Assis se apresentam mais contra as ideias de fora que não 'fazem sentido' entre nós. Liberalismo, Iluminismo, Positivismo o que tudo isso significa na cultura brasileira? Assim como Hoffmann, o romântico alemão, ironiza o Iluminismo anglo-franco na Alemanha semi-feudal, onde os 'déspotas esclarecidos' desejavam implantar uma cultura iluminista por meio de decretos-lei. Assim como o eslavófilo Dostoiévski lamenta a invasão das ideias europeias no espírito russo. Fora do 'ambiente' original, as ideias não passam de discursos, de retórica, “o movimento das Luzes” vira ideologia – afinal, o que é as Luzes? O que seria num país semi-feudal, de exploração primitiva, que ainda 'importaria' um capitalismo liberal (com a proclamada 'democracia liberal') como uma forma alienígena (estrangeira) de pensamento e ação? Qual seria o 'modo de vida' brasileiro – sem a importação de ideias europeias?


Estrutura e Temática da Obra

Sabendo que o Narrador Bentinho não se identifica com o Autor Machado de Assis, resta-nos analisar a estrutura do romance no que apresenta de original na temática 'adultério' – tão explorada por vários autores, dentre eles os clássicos Stendhal, Flaubert, Balzac, Maupassant, Eça de Queirós – no que tem se inusitado, ou seja, não previsto. Pois o adultério nunca é apresentado, mas sempre sugerido, se houve mesmo adultério este se encontra nas 'entrelinhas'.

Citaremos agora um interessante trecho a abordar a Obra em si, contido no ensaio de Barreto Filho em “A Literatura no Brasil”, vol. 4, sob organização de Afrânio Coutinho, onde tece comentários sobre a obra Dom Casmurro,

“O livro é feito de pequenas cenas e incidentes, uma urdidura cerrada, obedecendo muito à estrutura de uma peça teatral, na entrada e saída das personagens, nos diálogos curtos e breves. Mas seria uma peça à qual se incorporou o trabalho dos bastidores, e as indicações da movimentação cênica. Isso lhe dá um aspecto único. É um gênero novo, estritamente machadiano.” (p. 165)


e

O domínio dos processos artísticos chegou nesse livro, a uma alta classe, de modo que eles não perturbam a pureza da narração, como acontece em Brás Cubas. A verdadeira história é um veio oculto, que vai correndo fora da nossa percepção imediata, mas em contato estreito com os nossos pressentimentos. (...)”

Além, a questão do destino – as personagens não são livres, são lançadas em situações-limite, decisões pelas quais não se responsabilizam,

A força inapelável que maneja as criaturas já se chama aqui o destino, e é a mesma das tragédias antigas. É ela que os combina segundo leis que não nos é dado conhecer, e a sua presença é suficientemente forte nesse livro, para lhe dar o caráter de uma pequena tragédia, que não chega à grandeza porque foge ao plano dos sublime e da exemplaridade moral. Foi a cota de sacrifício ao Naturalismo que Machado de Assis teve de pagar, essa diminuição da natureza humana, que não lhe permitia concebê-la em momentos e atitudes de grandeza, a não ser em algumas situações do Quincas Borba.” (p. 166)

Na própria narrativa o destino é lembrado enquanto objeto de reflexão do Narrador, que vê a própria estória como uma encenação num palco,“O destino não é só dramaturgo, é também o seu próprio contra-regra, isto é, designa a entrada dos personagens em cena, dá-lhes as cartas e outros objetos, e tiro.”

“Nem eu, nem tu, nem ela, nem qualquer outra pessoa desta história poderia responder mais, tão certo é que o destino, como todos os dramaturgos, não anuncia as peripécias nem o desfecho. Eles chegam a seu tempo, até que o pano cai, apagam-se as luzes e os espectadores vão dormir.” (cap. LXXII)


A tragédia está em que a Capitu possível adúltera é aquela mesma que compartilhou a paixão de adolescente, em promessas de amor eterno. Como poderia a heroína da estória se tornar a vilã? Pois “se te lembras da Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca.”, diz Bentinho no capítulo final. A jovenzinha que nos seduziu a narrativa toda – ao seduzir o narrador nos deixamos seduzir por indução – poderá nada mais ser que uma mulher infiel que traiu o marido com o melhor amigo dele?

Parece que Barreto Filho confiou na narrativa de Bentinho, pois acredita que Capitu realmente foi uma mulher infiel.

“Essa infidelidade excede o conflito moral que os romances exploram no adultério. O livro não tem semelhante vulgaridade. É uma falha mais radical, uma traição à infância, uma negação da poesia da vida, tanto mais dura, quanto se tem a impressão de que tinha que ser assim. É essa a conclusão do escritor, a moralidade da história, se assim podemos dizer, pois tudo bem considerado, a Capitu de agora já estava toda inteira na doce companheira da meninice, que riscava a carvão, para entrelaçá-los eternamente, os nomes de ambos, no muro do quintal.
.
Muito se tem discutido sobre essa crueldade machadiana. Tem-se indagado por que teria ele resolvido transformar o idílio da infância numa infidelidade revoltante. A resposta está um pouco naquele programa traçado anteriormente no conto “Lágrimas de Xerxes”. A realidade da vida lhe parecia tão absurda e decepcionante, que o homem não tem o direito de colocar em coisa alguma um sentimento de triunfo, porque “toda epifania receberá essa nota de sarcasmo”, a fim de que o homem não ponha a sua complacência em nenhuma realidade, pois no fundo das coisas se encontra uma infidelidade radical: a incapacidade delas em saturar a aspiração de absoluto do coração humano. Infiel é a vida. Capitu é a imagem da vida
.” (p. 167)


Mas quem nos diz que Capitu traiu? Ora, Bentinho. Ou a versão dele. Então, para chegar a conclusão de que houve infidelidade basta confiar no narrador. Mas pode-se acreditar em quem, de modo ressentido, se julga traído? Ele pode inconscientemente manipular todos os eventos de forma retroativa de modo a extrair a interpretação de que a mulher foi traidora! Não há provas materiais – a mais forte é a semelhança do menino Ezequiel com o amigo Ezequiel Escobar. Mas pode não passar de impressão – ou de paranóia – do narrador. Não há a confissão da mãe, a acusada Capitu.

Quanto a Capitu – diminutivo carinhoso de Capitolina - nela temos a mesmo sedução dúbia de uma Catherine Earnshaw (“Morro dos Ventos Uivantes”, Emily Brontë), de uma Nastácia Filíppovna (“O Idiota”, Dostoiévski) ou de uma Anna Karenina (do romance de Tolstoi), assim de modo marcante se tornando a protagonista de fato do romance.

A presença das mulheres – as heroínas – ou vilãs – são mais 'convincentes' que as masculinas, mais caracterizadas como 'tipos' (o burguês, o burocrata, o mendigo, o comerciante, etc) ou 'caricaturas' (o hipócrita, o louco, o sovina, etc). A personalidade textual é aquela que não exige verossimilhança, mas consistência na estrutura do romance. Não se trata de 'alguém' mas de um ser textual que ultrapassa o papel e se materializa em nossos sentimentos de Leitor.

Em “Memórias Póstumas” temos a singela Eugênia, em contraponto a infiel Virgília. Em “Quincas Borba” temos a sedutora Sofia, que enlouquece literalmente o pobre Rubião. Em “Dom Casmurro” a dominadora mãe D. Glória e a dúbia Capitu, que nunca conheceremos realmente. Em “Esaú e Jacó” temos a Flora, que será objeto de desejo e competição entre os gêmeos Paulo e Pedro. E, por fim, a Fidélia de “Memorial de Aires”. São todas as memoráveis, enquanto as personagens masculinas são esquecidas, com raras exceções, por exemplo, o mesquinho Cotrim (Memórias Póstumas), o mendigo-filósofo Quincas Borba (criador do 'Humanitas'), e o mestre da intriga José Dias (Dom Casmurro).



Recursos da Metalinguagem / Intertextualidade


O Narrador – e assim o Autor – não hesita em demonstrar sua erudição, suas tantas leituras de uma vida de pensamento e reclusão. Uma vida de leituras, de dramas e peças de teatro, toda uma 'digestão' da cultura ocidental – sobretudo a europeia. Depois ele adentra a própria cultura nacional, a brasileira. Cita outros autores brasileiros da época, tais como José de Alencar e Álvares de Azevedo.

Outro referencial é o bardo britânico William Shakespeare (principalmente Othelo e Macbeth) – o ícone do “Cânone Ocidental” segundo o scholar Harold Bloom. Há uma citação de Macbeth, a tragédia do rei usurpador escocês,


“Ainda agora sou capaz de jurar que a voz era da fada; naturalmente as fadas, expulsas dos contos e dos versos, meteram-se no coração da gente e falam de dentro para fora. Esta, por exemplo, muita vez a ouvi clara e distinta. Há de ser prima das feiticeiras da Escócia: “Tu serás rei, Macbeth!”. “tu serás feliz, Bentinho!” [...]” (cap. C)

Na galeria de influências estão com destaque os bardos Dante e Camões, além dos clássicos gregos e romanos – por exemplo, Homero, Sêneca, etc.

Por exemplo, no capítulo CXXV, subitamente, encontramos Homero - “Príamo julga-se o mais infeliz dos homens por beijar a mão daquele que lhe matou o filho. Homero é que relata isto, e é um bom autor, não obstante contá-lo em verso, mas há narrações exatas em verso, e até mau verso. Compara tu a situação de Príamo com a minha;” - quando o Dom Casmurro faz um discurso de despedida no funeral de Escobar, que pode não passar de uma amigo-traidor.

Em outro momento, Bentinho vai ao teatro ver justamente uma peça teatral clássica com o tema do adultério - “Othelo” - que apresenta na verdade um ciumento obsessivo, pois na verdade Desdêmona era sincera e fiel.

“Jantei fora. De noite fui ao teatro. Representava-se justamente Otelo, que eu não vira nem lera nunca; sabia apenas o assunto, e estimei a coincidência. Vi as grandes raivas do mouro, por causa de um lenço – um simples lenço! - e aqui dou matéria à meditação dos psicólogos deste e de outros continentes, pois não me pude furtar à observação de que um lenço bastou a acender os ciúmes de Otelo e compor a mais sublime tragédia deste mundo.” (Cap. CXXXV)

Bentinho hesita entre envenenar-se ou vingar-se de Capitu – ela mereceria o mesmo destino da shakesperiana Desdêmona? Mas e se Capitu fosse tão inocente quanto a heroína do drama? De repente, Bentinho pode estar imaginando coisas.

Mas não. Ele quer provas. Mas quais? Um retrato serve. No capítulo CXXXIX – A Fotografia – composto de apenas um parágrafo, temos o que ele considera uma prova, para então decidir por uma solução – deixar a mulher que não foi dele, com o filho que não é dele.

“Palavra que estive a pique de crer que era vítima de uma grande ilusão, uma fantasmagoria de alucinado; mas a entrada repentina de Ezequiel, gritando: -”Mamãe! Mamãe! É hora da missa!” restituiu-me à consciência da realidade. Capitu e eu, involuntariamente, olhamos para a fotografia de Escobar, e depois um para o outro. Desta vez a confusão dela fez-se confissão pura. Este era aquele; havia por força alguma fotografia de Escobar pequeno que seria o nosso pequeno Ezequiel. De boca, porém, não confessou nada; repetiu as últimas palavras, puxou do filho e saíram para a missa.”

Por mais que não tenha certeza – se a traição é real ou imaginária – a vida sentimental de Bentinho foi abalada. Provas nem são necessárias se o ciumento já se atormenta. Ele nem precisa de algo palpável. Basta IMAGINAR a traição para que haja sofrimento. Um sofrer que pode destruir o ser e todos ao redor. Daí o Bentinho tornar-se o Dom Casmurro, solitário, retirado, amargurado com uma vida que desmoronou – o amor de juventude que não foi eterno. A mulher e o filho – que não são dele – ficam na Europa, ele continua a morar no rio de Janeiro. Tempos depois, após a morte de Capitolina, o filho retorna – sempre a tratá-lo de 'pai' – e Bentinho é até amável, cordial, não quer atormentar o rapaz que é um Escobar com “sotaque afrancesado”.

O estudante viaja pelo mundo antigo – Mediterrâneo, Grécia, Egito, Palestina – e morre durante a viagem. É assim que Bento de Albuquerque, o Bentinho, encontra o seu fim na solidão. Encontra outras 'caprichosas' para ligações amorosas, mas sem continuidade. Viveu – e vai morrer - sem deixar um filho que sobreviva a ele. Aliás, praticamente a mesma condição de Brás Cubas, que declara, no final de tudo, “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.”


Influências / Adaptações

O escritor mineiro Fernando Sabino (1923-2004) escreveu uma possível versão de Dom Casmurro, com uma narração em 3ª pessoa ( “Amor de Capitu”, foi publicada pela Editora Ática em 1998), onde procura-se superar o narrador dúbio da ficção machadiana. Não adiantaremos detalhes desta versão, que vale a leitura.

Uma minissérie televisiva foi produzida e veiculada pela TV Globo, em 2008, com o nome da protagonista, “Capitu”, com um arranjo de ópera-bufa e excessiva dramatização como se Dom Casmurro fosse um “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, o que não é. O filme “Memórias Póstumas” (2001) do diretor André Klotzel faz todo um sentido pela veia satírica, tragicômica. “Dom Casmurro” é mais triste do que satírico, mais amargo do que cínico.

Na versão global, criou-se uma 'caricatura' (aquela do debochado e satírico) do estilo machadiano que na verdade só serve ao “Memórias Póstumas” - sendo que as obras finais (“Dom Casmurro”, “Esaú e Jacó” e “Memorial de Aires” retornam ao tom sentimental de antes – na fase romântica – acrescentado um tom melancólico. Afinal, o Autor envelhecia, via-se viúvo, contemplava a morte próxima.



Out/10


Leonardo de Magalhaens




REFERÊNCIAS


ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Ática, 1983.
.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 4ª ed.
.
BENJAMIN, Walter. O Narrador. Observações sobre a Obra de Nikolai Leskov In: Obras Escolhidas. Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1987. 3ª ed.
.
COUTINHO, Afrânio. (org.) A Literatura no Brasil. Volume IV – A Era Realista / Era de Transição. São Paulo: Global, 2004.
.
SANTOS, Luís Alberto Brandão e OLIVEIRA, Silvana Pessoa de. Sujeito, tempo e espaço ficcionais. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
.
SCHWARZ, Roberto. Um mestre na Periferia do Capitalismo. São Paulo: Ed. 34, 2000.



Pesquisa
on-line

links sobre a figura do Narrador (em Bakhtin, em W. Benjamin)


http://www.artigosonline.com.br/o-narrador-como-regente-o-papel-do-narrador-no-romance-de-dostoievski/

http://recantodasletras.uol.com.br/cronicas/102959

http://www.letras.ufrj.br/ciencialit/garrafa12/robertadacosta_autor.html
.
.

Nenhum comentário:

Postar um comentário