sábado, 27 de novembro de 2010

to the lighthouse - time passes (trecho2)




To the Lighthouse

Virginia Woolf

Time passes / O tempo passa

(trechos)


trad. Leonardo de Magalhaens


VI

[...]

E agora no calor do verão o vento enviava suas espias ao redor da casa novamente. Moscas caíam nas teias nos cômodos ensolarados; ervas daninhas que tinham crescido perto dos vidros na noite golpeavam metodicamente nas vidraças. Quando as trevas caíam, o feixe de luz do Farol, que tinha se deitado com tal autoridade sobre o carpete no escuro, destacando seus padrões, veio agora na mais suave luz da primavera mesclada com o luar deslizando gentilmente como se pousasse uma carícia e se detia furtivamente e olhava e vinha amavelmente de novo. Mas na grande valmaria desta amável carícia, quando o longo feixe de luz se inclinava sobre a cama, a rocha se fendia em pedaços; outra prega do xale se soltava; lá fica suspensa, e oscilava. Através das breves noite de verão e os longos dias de verão, quandos os cômodos vazios pareciam murmurar com os ecos dos campos e o zumbir das moscas, o longo jorro de luz ondulava gentilmente, oscilam sem rumos; enquanto o sol assim listrava e bloqueava os cômodos e enchia-os com névoa amarela que a Sra. McNab, quando ela irrompia e cambaleava, limpando o pó, varrendo, parecia tal um peixe tropical remando seu caminho através das águas lancetadas pelo sol.

Mas o torpor e o sono, apesar disso, poderiam vir mais tarde no verão sinistros sons tais os golpes medidos de marretas abafadas sobre feltro, que, com suas batidas repetidas até soltarem ainda mais o xale e racharem as xícaras. Agora e novamente algum copo retinia no armário como se uma voz gigante tivesse gritado tão alta em sua agonia que agitasse também lá dentro o armário a vibrar. Então novamente caía o silêncio; e então, noite após noite, e às vezes em pleno meio-dia quando as rosas bilhavam e a luz voltava-se à parede sua forma claramente lá parecia gotejar neste silêncio, esta indiferença, esta integridade, o baque de algo caindo.

[...]


And now in the heat of summer the wind sent its spies about the house
again. Flies wove a web in the sunny rooms; weeds that had grown close
to the glass in the night tapped methodically at the window pane. When
darkness fell, the stroke of the Lighthouse, which had laid itself with
such authority upon the carpet in the darkness, tracing its pattern,
came now in the softer light of spring mixed with moonlight gliding
gently as if it laid its caress and lingered steathily and looked and
came lovingly again. But in the very lull of this loving caress, as
the long stroke leant upon the bed, the rock was rent asunder; another
fold of the shawl loosened; there it hung, and swayed. Through the
short summer nights and the long summer days, when the empty rooms
seemed to murmur with the echoes of the fields and the hum of flies,
the long streamer waved gently, swayed aimlessly; while the sun so
striped and barred the rooms and filled them with yellow haze that Mrs.
McNab, when she broke in and lurched about, dusting, sweeping, looked
like a tropical fish oaring its way through sun-lanced waters.

But slumber and sleep though it might there came later in the summer
ominous sounds like the measured blows of hammers dulled on felt,
which, with their repeated shocks still further loosened the shawl and
cracked the tea-cups. Now and again some glass tinkled in the cupboard
as if a giant voice had shrieked so loud in its agony that tumblers
stood inside a cupboard vibrated too. Then again silence fell; and
then, night after night, and sometimes in plain mid-day when the roses
were bright and light turned on the wall its shape clearly there seemed
to drop into this silence, this indifference, this integrity, the thud
of something falling.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

2 poemas de Emily Dickinson





Emily Dickinson
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Tive fome todos estes anos;
A cada meio-dia vim almoçar;
Tremendo, aproximei a mesa,
E degustei o curioso vinho.
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Tinha visto este sobre a mesa,
Quando faminta, vagava sozinha,
Olhava às janelas, eis a fartura
Que para mim não podia esperar.
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Não conhecia o pão farto;
Era bem diferente a migalha
Que compartilhei com as aves
Na sala de jantar natural.
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A fartura ofendia, tão nova, -
Que sentia-me doente e estranha,
Como se fosse fruto silvestre
Transportado à beira de estrada.
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Nem faminta estava; descobria
Que fome era um jeito
Das pessoas antes lá fora
Renegassem ao entrar.
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Trad. Leonardo de Magalhaens
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Emily Dickinson
(EUA, 1830-1886)



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Emily Dickinson

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Em minha mente senti um funeral,
E carpideiras seguiam,
Marchando, marchando, até parecia
Que os sentidos se rompiam.

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E quando todos se sentaram,
A assistência soava um tambor
Que batia, batia, até pensei
Que minha mente caía em torpor.

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E então ouvi: ergueram a caixa,
E em minha alma rangeu
Com aquelas mesmas botas pesadas.
Então o espaço todo tremeu

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E todo o céu era um sino
E o Ser nada além de ouvido,
E eu e o silêncio de estranha raça,
Aqui miserável, só, perdida.

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Trad. Leonardo de Magalhaens

Emily Dickinson
(EUA, 1830-1886)



original poem in


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sábado, 20 de novembro de 2010

Rumo ao Farol - Virginia Woolf (trechos) 1









To the Lighthouse

Virginia Woolf

Time passes / O tempo passa

(trechos)
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trad. Leonardo de Magalhaens
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IV
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Então com a casa vazia e as portas trancadas e as tapeçarias enroladas, estas brisas sem rumos, postos avançados de grandes exércitos, urgiam, roçavam em tábuas desnudas, roídas e ventiladas, nada encontravam em quartos ou salas que completamente resistiam a elas [as brisas] mas apenas cortianas que vibravam, madeira que rachava, as pernas desnudas das mesas, panelas e porcelanas já forradas, sem cor, rachadas. Que as pessoas tinham abandonado – um par de sapatos, um chapéu de caça, algumas saias desbotadas e casacos nos armários – esses sozinhos mantinham a forma humana e no vazio indicavam como certa vez eles foram preenchidos e animados; como certa vez mãos foram ocupadas com colchetes e botões; como certa vez o espelho tinha refletido uma face; tinha mantido um mundo esvaziado no qual uma figura voltava, uma mão acenava, a porta abria, através da qual entravam crianças correndo e tropeçando; e a saírem de novo. Agora, dia após dia, a luz voltava, tal uma flor refletida na água, sua aguda imagem na parede oposta. Apenas as sombras das árvores, florescendo no vento, prestavam obediência à parede, e por um momento escureciam a piscina na qual a luz se refletia; ou aves, voando, faziam uma suave mancha oscilar lentamente através do chão do quarto.

[...]
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4

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So with the house empty and the doors locked and the mattresses rolled
round, those stray airs, advance guards of great armies, blustered in,
brushed bare boards, nibbled and fanned, met nothing in bedroom or
drawing-room that wholly resisted them but only hangings that flapped,
wood that creaked, the bare legs of tables, saucepans and china already
furred, tarnished, cracked. What people had shed and left--a pair of
shoes, a shooting cap, some faded skirts and coats in wardrobes--those
alone kept the human shape and in the emptiness indicated how once they
were filled and animated; how once hands were busy with hooks and
buttons; how once the looking-glass had held a face; had held a world
hollowed out in which a figure turned, a hand flashed, the door opened,
in came children rushing and tumbling; and went out again. Now, day
after day, light turned, like a flower reflected in water, its sharp
image on the wall opposite. Only the shadows of the trees, flourishing
in the wind, made obeisance on the wall, and for a moment darkened the
pool in which light reflected itself; or birds, flying, made a soft
spot flutter slowly across the bedroom floor.


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Parecia que nada poderia romper esta imagem, corromper esta inocência, ou perturbar o oscilante manto do silêncio no qual, semana após semana, no cômodo vazio, ondulavam o piar cadente das aves, o apitar de navios, o zumbir e o zunir dos campos, um latido de cão, um grito de homem, e envolvia-os ao redor a casa em silêncio. Uma vez apenas uma tábua se soltava no terraço; uma vez, no meio da noite com um estrondo, com um êxtase, como se após séculos de consenso, uma rocha se desprendesse da montanha e ressoasse irrompendo no vale, numa prega do xale a soltar-se e oscilar pra lá e pra cá. Então novamente a paz desceu; e a sombra ondulou; a luz se inclinou a sua própria imagem em adoração na parede do quarto; e a Sra. McNab, rompendo o véu de silêncio com as mãos que seguravam no balde, rangendo com botas que tinham esmagado o cascalho, veio direto para abrir todas as janelas, e tirar a poeira dos quartos.

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Nothing it seemed could break that image, corrupt that innocence, or
disturb the swaying mantle of silence which, week after week, in the
empty room, wove into itself the falling cries of birds, ships hooting,
the drone and hum of the fields, a dog's bark, a man's shout, and
folded them round the house in silence. Once only a board sprang on
the landing; once in the middle of the night with a roar, with a
rupture, as after centuries of quiescence, a rock rends itself from the
mountain and hurtles crashing into the valley, one fold of the shawl
loosened and swung to and fro. Then again peace descended; and the
shadow wavered; light bent to its own image in adoration on the bedroom
wall; and Mrs. McNab, tearing the veil of silence with hands that had
stood in the wash-tub, grinding it with boots that had crunched the
shingle, came as directed to open all windows, and dust the bedrooms.

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fonte: http://gutenberg.net.au/ebooks01/0100101.txt
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quarta-feira, 17 de novembro de 2010

A poesia social de Vinicius de Moraes e João Cabral de Melo Neto








A questão social nos poemas
de Vinicius de Moraes
e João Cabral de Melo Neto

Abordaremos aqui a presença da 'questão social' na Poética dos seguintes autores do Modernismo brasileiro: Vinicius de Moraes (1913-1980), jornalista, literato, compositor e diplomata, atuando nos anos 40 e 50, principalmente, com a divulgação de poemas (entre os quais os famosos sonetos líricos) e a música popular (bossa nova); e João Cabral de Melo Neto (1920-1999), diplomata e poeta, com grande destaque na dramaturgia, com “Morte e Vida Severina” (1966).

São autores de distintos estilos. Vinicius é um poeta dos sentimentos, com sonetos clássicos e líricos, soando sempre nostálgico, em melódicas assonâncias. Enquanto João Cabral é o poeta de corte áspero, não-lírico, quase racional (ou cartesiano) quanto possível. Mas um enfoque proposto aqui seria o de pensar o tema da 'questão social', da desigualdade social, do drama social brasileiro, nos poemas mais 'políticos' de João Cabral e Vinicius de Moraes. Uma proposta de usar os mesmos métodos dos autores realistas, do século 19, e início do 20, onde a Arte devia apresentar um olhar mais 'realista' sobre a realidade – com temas antes excluídos, como miséria e prostituição - abandonando, assim, os traços idealizantes próprios do estilo romântico.

O método do 'realismo social' foi mais usado – e coptado – pelos autores e críticos do 'Realismo socialista' – entre os quais Gramsci e Lukács – que apreciavam um olhar maior sobre os contextos sociais do que sobre a Linguagem propeiamente dita – enquanto Maiakóvski e Brecht sabiam trabalhar tão bem o texto-contexto. Tanto é a preocupação com o contexto que Lukács apreciava Thomas Mann (de “Os Buddenbrook”) mais do que os contos alegóricos de Kafka (mesmo que façamos leituras políticas de “A Metamorfose”, “O Castelo”, “A Colônia Penal”, “A Muralha da China”, etc)

Podemos usar perfeitamente o 'método' do 'realismo social' (que integra a 'periferia' no centro do Cânone) para lermos presentemente os poemas mais politizados contextualmente. Temos a 'poesia engajada' de Carlos Drummond de Andrade (principalmente em “A Rosa do Povo”), Affonso Romano de Sant'Anna, Ferreira Gullar, de Thiago de Mello, de Moacyr Félix, dentre outros. A poesia engajada que ousa integrar a linguagem poética com a fala dos oprimidos, dos marginalizados, dos dominados pelos sistema de lucro e exploração.

Sobre a 'poesia engajada' no Brasil temos um trecho do texto (disponível online) do crítico Felipe Fortuna,

É preciso recordar que a literatura engajada, àquela época, procurava soluções "populares", que dessem finalidade aos diversos textos, com base tanto na realidade nordestina quanto nas apostilas de Gramsci. Ferreira Gullar escrevia romances de cordel; Moacyr Félix compunha longos cantos e editava cadernos de poesia que registravam o inconformismo com a ditadura militar e o imperialismo norte-americano. Morte e Vida Severina (1955), de João Cabral, conhecia fama cada vez maior - e é, ao que conste, o melhor resultado de literatura engajada que se fez no Brasil.

Há toda uma 'correspondência', um dialogismo entre os poetas João Cabral e Vinicius de Moraes, com amostras de 'aproximação e afastamento', segundo ressaltou o Prof. Roniere em palestra. “Ilustração para a 'Carta aos puros' de Vinicius de Moraes”, “Resposta a Vinicius de Moraes” e “Para Vinicius de Moraes” ( em “Faca só lâmina”, “cuidado com o objeto / com o objeto cuidado”) são poemas de João Cabral que dialogam com poemas de Moraes, tais como “O Poeta”, “Pescador”, “Mensagem à Poesia”, “Retrato, à sua Maneira” (onde chama Cabral de “camarada diamante”) com destaque para a Metalinguagem e para a atividade peculiar do Poeta de dar sentido e de 'ressignificar' o mundo.

De Moraes o poemas que apresentam maior comprometimento com temas sociais são “Elegia Desesperada”, “Mensagem à Poesia”, “Balada dos Mortos dos Campos de Concentração", "A bomba atômica”, “A Rosa de Hiroshima” e “O Operário em Construção”, sempre ao lado de alusões metalinguísticas e lirismos. De início a escrita de Moraes impregnava-se de lirismo, saudosismo e reverência religiosa, que gradativamente transmutavam-se em melodia, boêmia e ironia.

O Operário em Construção”, ao lado de “Morte e Vida Severina” são dois exemplos evidentes de 'poesia engajada' no sentido de mostrar a Arte preocupada com temas de 'realismo social' – o estilo que é anterior ao Surrealismo, Cubismo, Dadaísmo, estilos modernistas, que não eram considerados anti-burgueses pelos socialistas, mas 'arte burguesa', por ser fruto do 'mundo burguês'! Um erro evidente do 'realismo socialista' (ou 'soviético') que não entendeu as vanguardas artísticas do século 20 – e querendo ser propriamente 'a vanguarda'! - como bem percebeu Peter Weiss, alemão-sueco, autor da peça teatral “Marat/Sade” e do romance “Die Ästhetik des Widerstands”.

Tanto o retirante – vítima do 'êxodo rural' – quanto o operário – vítima da exploração capitalista – são um retrato deste Brasil não-poético que as Elites desejam ocultar. O sertanejo-retirante conta a própria sina – ou a assistimos impotentes em plena leitura de “Vidas Secas” de Graciliano Ramos – para o público de literatos que esquecem as agruras do mundo não-artístico, ou não-burguês. Daí o tom chocante.

E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).

Ou então é o operário, que descobre que a sua pobreza é o que cria a riqueza do patrão, em um tal momento de 'epifania' que consegue superar a 'alienação' e ver a totalidade do mundo em formar de 'poesia',

Foi dentro dessa compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
- Exercer a profissão -
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.

Uma poesia que pretende retratar o mundo, ou modificá-lo? Eis o que a 'vanguarda' encontrou em termos de impasse. Pode-se fazer um belo poema sobre operários e até canções de MPB, com forte apelo popular, mas não se alcançar uma superação da ‘alienação’, como é o exemplo da canção “Construção”, de Chico Buarque, que nos jogos de linguagem acaba por deixar em segundo plano a tragédia, a morte gratuita de mais um operário nas grandes metrópoles, “morreu na contramão atrapalhando o tráfego”.

A comparação entre os poetas serve mesmo para realçar o 'retrato' comum que as diferenças de estilo podem eclipsar. Ambos falam da própria poesia, ambos falam de contextos sociais, ambos são diplomatas. Ambos têm um desejo de 'retratar' os lados antilíricos do cotidiano. É assim que atingem experimentalismo e denúncia social. Para João Cabral o importante é a Arte parar de falar do umbigo do próprio autor,

“Esse tipo de poeta individualista apenas dá de si. A outra missão do leitor, no ato literário, a saber, a de colocar indiretamente na criação, é desconhecida ou negada. Este poeta não quer receber nada nem compreende que sua riqueza só pode ter origem na realidade”

Ou seja, a importância dos dados da realidade mais do que subjetividade poética autoral. Um “quadro crítico da realidade” e não visão pessoal do poeta. E ao analisar a própria 'ferramenta' de trabalho – a Linguagem poética – o Poeta usa e abusa de recursos metalinguísticos.

Metalinguagem ao abordar a estrutura, a 'arquitetura' do Poema, seja no esquematismo, seja na 'mania de simetria', seja a poesia feita com 'palavras-coisa' (a Poesia-Práxis seguiu esta trilha...) mas sempre uma 'preocupação com a linguagem, não apenas com o 'eu-lírico' (mais presente no lirismo de V. de Moraes).

Linguagem que pode ser 'pensada' ou 'sentida', 'rítmica' ou até musicada (como são evidentes as composições de Moraes para o movimento musical 'bossa-nova' com Tom Jobim, Toquinho e outros). Linguagem que pode ser 'áspera', com uma declamação não-musical, em tom seco, com menor lirismo, com um conteúdo (e ritmo) de cordel, como é evidente na obra de João Cabral.

Uma poesia de matéria bruta, mas com dilapidação simétrica, eis o objetivo do poeta da “vida severina”, no que se compara com o Graciliano Ramos, do já citado “Vidas Secas”, onde os seres humanos se desumanizam numa natureza árida e agressiva. Retirantes do meio ambiente e retirantes de si-mesmos, as personagens perdem gradativamente a capacidade de comunicação. É a perda da 'subjetividade', tão cara ao homem pós-Iluminismo.

Tanto Moraes quanto Cabral mostram uma preocupação de texto e contexto, no que se igualam a Maiakovski e Brecht, ao utilizarem recursos da linguagem poética para veicularem conteúdos antes considerados 'não-poéticos', a vida sertaneja de um retirante, ou a vida urbana de um operário.

Assim como as pinturas de Millet, Daumier e Courbert, de estilo realista, no século 19, trouxeram as imagens dos camponeses, operários – explorados e miseráveis – aos salões burgueses de Paris, assim os poetas-diplomatas souberam apresentar a “vida severina” e o “operário em construção” aos literatos que vivam em brumas líricas e torres de marfim.
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set/10

Por Leonardo de Magalhaens
http://meucanoneocidental.blogspot.com/
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REFERÊNCIAS

FORTUNA, Felipe. “Thiago de Mello: os enganos da utopia”. Jornal de Poesia.
(Disponível online em
http://www.revista.agulha.nom.br/ffortuna1.html
Acesso em setembro 2010)
MELO NETO, João Cabral. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1999.
_____________. João Cabral de Melo Neto / notas, estudos biográficos, histórico e crítico e exercícios por Samira Youssef Campedelli, Bejamin Abdala Jr.; seleção de textos
por José Fulaneti de Nadai. São Paulo: Abril Educação, 1982. (Literatura comentada)
MENEZES, Roniere Silva. O Traço, a Letra e a Bossa: Arte e Diplomacia em Rosa, Cabral e Vinicius. 2008. (Disponível online em http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/handle/1843/ECAP-7G5F7L)
MORAES, Vinicius de. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004.
WIKIPEDIA. “Pintura do Realismo”. Disponível online em http://pt.wikipedia.org/wiki/Pintura_do_realismo
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sábado, 13 de novembro de 2010

Ode ao burguês - de Mário de Andrade





Mário de Andrade

Ode ao burguês


Eu insulto o burguês! O burguês-níquel,
o burguês-burguês!
A digestão bem-feita de São Paulo!
O homem-curva! o homem-nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!
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Eu insulto as aristocracias cautelosas!
Os barões lampiões! os condes Joões! os duques zurros!
que vivem dentro de muros sem pulos;
e gemem sangues de alguns mil-réis fracos
para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
e tocam os "Printemps" com as unhas!
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Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará Sol? Choverá? Arlequinal!
Mas à chuva dos rosais
o èxtase fará sempre Sol!
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Morte à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais!
Morte ao burguês-mensal!
ao burguês-cinema! ao burguês-tílburi!
Padaria Suissa! Morte viva ao Adriano!
"–Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
–Um colar... –Conto e quinhentos!!!
Mas nós morremos de fome!"
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Come! Come-te a ti mesmo, oh gelatina pasma!
Oh! purée de batatas morais!
Oh! cabelos nas ventas! oh! carecas!
Ódio aos temperamentos regulares!
Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados!
Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
sempiternamente as mesmices convencionais!
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
Dois a dois! Primeira posição! Marcha!
Todos para a Central do meu rancor inebriante
Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
Morte ao burguês de giolhos,
cheirando religião e que não crê em Deus!
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Ódio fundamento, sem perdão!
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Fora! Fu! Fora o bom burgês!...


In: Paulicéia desvairada (1922)
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quarta-feira, 10 de novembro de 2010

sobre DOM CASMURRO - de Machado de Assis








Sobre “Dom Casmurro” (1899)
romance de Machado de Assis (1839-1908)
escritor brasileiro



A máscara personal do Autor


Destaca-se na prosa da segunda metade do século 19 uma tendência a fundamentar uma estilística que superasse os formatos do romance romântico, já ultrapassado. Muitos criticavam o uso de formatos importados, advindos da literatura europeia. Contudo, muitos reagiram ao romance romântico com outras formas importadas.

A Crítica passou a considerar um novo estilo em contraponto ao estilo romântico, e denominou Realismo a este modo mais 'realista' de enfocar os modos e tipos sociais, mostrados de forma deveras subjetivista em autores como Macedo e Alencar. Muito do Realismo brasileiro era influenciado pelos autores tais como Eça de Queirós (Portugal) e Balzac, Flaubert e Maupassant (França), mas com uma tematização da 'cor local' – era importante inserir cenas da vida nacional dentro da prosa, contos ou romance.

Dentro do Realismo outros autores tenderam mais do que a 'fotografar' a realidade, mas quiseram explicar, de forma cientificista, isto é, de acordo com as teorias científica, positivistas que vicejavam na época – algo de darwinismo, psiquiatria, etc – que daria uma faceta 'séria' ao escritor e obra – queria uma prosa mais do que 'entretenimento' e mais como denúncia.

Assim – baseado em técnicas de um Zola, autor francês – um autor implantou entre nós o Naturalismo. Trata-se da obra de Aluízio de Azevedo, celebrizado basicamente por três obras 'naturalistas' - “O Mulato”, “O Homem” e “O Cortiço”. Nestas obras a ênfase nem é tanta nos indivíduos – mas nos condicionamentos de meio e raça. No que há pouco espaço para os psicologismos de um Stendhal ou de um Flaubert. Predomina um tom antropológico, onde os indivíduos não superam a condição de animais.


Pois bem, ainda dentro do Realismo, mas não encubado no Naturalismo, surgiria um autor – advindo de orlas românticas – outro autor que continuaria (de certa forma) a excepcionalidade de um Manuel Antônio de Almeida (que o assinava “O Brasileiro”), autor do insuperável “Memórias de um Sargento de Milícias” (1852-53), obra de tradição pícara de fundo hispânico, mas nacionalíssima. Conservando um riso de mofa e um tom cínico, Brás Cubas surgiria para assombrar os leitores de Machado de Assis.


A Crítica aplaude “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881) como um marco do Realismo – ainda que passe longe de um Flaubert ou de um Maupasssant, e se aproxime mais de um Swift, um Sterne, um Voltaire ou um Dickens – pois supera o formato romântico ao 'desconstruir' as categorias exaltadas pelos românticos. Daí continuaria a entender o Realismo em reação ao Romantismo.


Ora, Machado de Assis fez mais. Não apenas foi iconoclasta, não apenas ficou na ironia, resolveu criar a partir da fauna de tipos e caricaturas o que transbordava de mesquinhez e banalidade na sociedade brasileira. Os proprietários, os parasitas, os funcionários, os serviçais, os escravos. Fez, entre nós, o que Gógol fizera na Rússia, o que Balzac fizera na França, o que Dickens fizera na Inglaterra. Com cerca de quarenta anos de atraso, concebeu uma galeria de personagens ao mesmo tempo brasileiras e universais.


Não falaremos aqui de “Memórias Póstumas” ou de “Quincas Borba” - obras umbilicamente ligadas pela ironia e pelo capricho – onde o cômico se entrelaça ao trágico. Mas abordaremos uma obra que se inclui em outro ciclo – o de maturidade , onde é o melancólico que se sobrepõe ao cínico. Falamos de “Dom Casmurro”, “Esaú e Jacó” e “Memorial de Aires”. Nossa ênfase aqui é “Dom Casmurro”.

Trata-se de um romance com narração em 1ª pessoa, onde Bento de Albuquerque Santiago, ou Bentinho, o chamado Dom Casmurro, reconstrói a vida com Capitolina, ou Capitu, através da escrita – cerca de 40 anos depois... “Um dia, há bastantes anos lembrou-me reproduzir no engenho Novo a casa em que me criei na antiga Rua de Matacavalos, dando-lhe o mesmo aspecto e economia que daquela outra, que desapareceu.”

Parece mais uma sessão de análise – compararemos com “São Bernardo” e “Angústia” de Graciliano Ramos e “Grande Sertão: Veredas” de Guimarães Rosa, ou as memórias desenfreadas de um Marcel Proust ou de um Pedro Nava. Uma voz que tenta reelaborar o 'passado' pela estilística de uma obra escrita. Escreve para melhor se entender – e se justificar. Num duplo plano, há um Narrador que se vê no mundo de outrora, onde foi uma Personagem. Há um Eu-de-hoje a falar de um Eu-de-ontem.

Que seja. Falemos das Personagens, sobre as quais há toda uma teoria - vide os compêndios de Teoria da Narrativa. Lá as personagens podem ser divididas basicamente em três tipos, a saber, indivíduos – tipos – caricaturas. De uma maior grau de individuação até uma fórmula genérica que leva ao riso.

Podemos dizer que tanto Bentinho quanto Capitu sejam indivíduos, enquanto outros – José Dias, Tio Cosme, prima Justina – se figuram bem como... figurantes. Dona Glória, por exercer uma hegemonia sobre a família, fica numa posição intermediária. Podemos dizer que Capitu se destaca como protagonista – dominadora – pessoa, isto é, a narrativa gira em torno dela; ela domina o Narrador-personagem; e depois que fechamos o livro é a única personagem que enxergamos enquanto 'pessoa', verossímil e quase tocável. É inesquecível.

Mas – detalhe não tão detalhe assim - Capitu é vista pela perspectiva de Bentinho (não há aqui um Narrador neutro – 3ª pessoa), portanto se o leitor confiar em Bentinho então poderá concluir que Capitu foi infiel. Se não confiar em Bentinho poderá considerar que é tudo fantasia de um ciumento, ou sequer chegar a qualquer certeza, pois não há certeza de qualquer informação fornecida pelo Narrador suspeito. É melhor fechar o livro. Afinal, ler é um pacto do Leitor com o Narrador/Autor.



Relações entre Autor, Narrador e Personagens


O Narrador-Personagem Bentinho é um ressentido, enquanto personagem foi um ingênuo, ao ser dominado pela mãe, pela família e pelas manobras de Capitu. Ele se sentia aprisionado e quem ama mais é quem sofre mais. Semelhante a Brás Cubas – com as cínicas 'memórias póstumas' – Bentinho nunca é totalmente confiável – ainda que seja menos cínico, e mais trágico.

Vejamos o que diz Roberto Schwarz em “Um Mestre na Periferia do Capitalismo” (2000), cujo título da obra lembra muito o daquele livro de W. Benjamin sobre o poeta simbolista francês, “Charles Baudelaire – Um Lírico no apogeu do Capitalismo” (“Charles Baudelaire, ein Lyriker im Zeitalter des Hochkapitalismus”), mas tendo em distinção a condição periférica do escritor brasileiro, ao comparar o tipo de narrador no modo discursivo – ironizar o capricho, o caráter volúvel dos proprietários cultos que narram seus dramas – assim o cínico Brás Cubas, assim o amargurado Bentinho.

Assim, a forma ostensiva das Memórias é delineada pelo movimento, ou melhor, pela futilidade do narrador; já no plano latente o feitiço vira contra o feiticeiro, e a massa das circunstâncias – desvalorizadas embora – torna-se determinante. A relevância delas por definição escapa à voz narrativa, a qual por isto mesmo fica desacreditada. Daí a presença poderosa e difusa da matéria social, sem contorno fixado, a existência que pesa e influi mas não se vê refletida numa formulação. Trata-se, noutras palavras, de um livro escrito contra o seu pseudo-autor. A estrutura é a mesma de Dom Casmurro: a denúncia de um protótipo e pró-homem das classes dominantes é empreendida na forma perversa da auto-exposição 'involuntária', ou seja, da primeira pessoa do singular usada com intenção distanciada e inimiga (comumente reservada à terceira). A chave deste procedimento está na insuficiência calculada dos pontos de vista do narrador em relação aos materiais que ele mesmo apresenta.” (p. 82)


Em relações entre personagens e autor são tema do capítulo “O Autor e a Personagem” de “Estética da Criação Verbal” do crítico russo Bakhtin. Onde encontramos interessantes afirmações.

“A luta do artista por uma imagem definida da personagem é, em grau considerável, uma luta dele consigo mesmo” (p. 4) e “O autor nos conta essa história centrada em ideias apenas na obra de arte, não na confissão de autor – se esta existe -, não em suas declarações acerca do processo de sua criação;” (p. 5)


Pensamos em Tolstoi e Dostoiévski, lidos por Bakhtin, o quanto há de cada autor nas personagens. O crítico russo faz questão de diferenciar Autor das Personagens, até de Narrador. Estão em planos distintos. Afinal, não é o autor-pessoa, com base biográfica, que se expressa na obra, mas um “autor-criador”, só compreensível a partir da Obra. Lembramos de alguns escritores. Se Flaubert dizia que “Madame Bovary sou eu”, em declarada identificação, poderíamos encontrar algum traço de Tolstoi em Anna Karenina? Ou algo de Dostoiévski em Raskolnikov? - só para ficarmos entre as personagens mais conhecidas.

“O autor vivencia a vida da personagem em categorias axiológicas inteiramente diversas daquelas em que vivencia sua própria vida e a vida de outras pessoas – que com ele participam do acontecimento ético aberto e singular da existência -, apreende-a em um contexto axiológico inteiramente distinto.” (p. 13)


Na verdade, não havendo uma 'perspectiva' do Autor, pode-se considerar uma pluralidade de perspectivas – cada personagem simbolizando um modo de ver, numa posição social diferente, numa localização geográfica ou histórica diversa. O autor então pode – no máximo – escolher uma ou duas personagens para expressar a opinião do Autor-pessoa dentro do drama. No mais, atua como 'regente', ao manter a orquestra de perspectivas num “discurso polifônico”.

Em “Bel-Ami”, por exemplo, muitos críticos identificam o Autor Maupassant na personagem do poeta Norbert de Varenne, de um lirismo amargurado diante da finitude da vida, pois o autor encontrava-se doente e consciente da morte próxima. Assim, outros tantos críticos identificam na personagem Conselheiro Aires – de “Esaú e Jacó” e “Memorial de Aires” - o próprio autor Machado de Assis, que envelhecia, mais melancólico do que cínico, a resignar-se à viuvez, e a morte iminente.

Ainda segundo Bakhtin, a identificação com personagens seria mais fácil para o leitor menos crítico, pronto a se identificar com as personagens – leitoras que se imaginam Madames Bovarys, ou leitores que se imaginam o sedutor Bel-Ami. Eis um trecho do capítulo II, A Forma Espacial da Personagem,

“Às vezes, quando pessoas sem cultura leem sem arte um romance, a percepção artística é substituída pelo sonho, não por um sonho livre e sim predeterminado pelo romance, um sonho passivo, e o leitor se compenetra da personagem central, abstrai-se de todos os elementos que lhe dão acabamento, antes de tudo da imagem externa, e vivencia a vida dessa personagem como se ele mesmo fosse o herói dessa vida.” (p. 27)


Em que medida o Narrador expressa as perspectivas do Autor? Se o Narrador não é o Autor, então quem é o Autor. Quem é Machado de Assis? Um liberal anti-monarquista? Um intelectual solitário? Um pensador a la Ivan Karamázov? Dono de um 'ceticismo ilustrado'? Um cínico? Um debochado? Um adepto do 'darwinismo social'? Um adepto da teoria do 'rodízio das Elites'?

Quando o Autor resolve criticar a burguesia de dentro das fileiras burguesas – pois Brás Cubas, Bentinho-Dom Casmurro, o Conselheiro Aires são personagens do mundo burguês, da classe dos proprietários ou funcionários, burocratas de destaque – quando há esta crítica ela parte de um não-burguês? De um anti-burguês? De um socialista? Ele zomba da burguesia para que esta se reforme? É mais uma crítica liberal ao pseudo-liberalismo?

Machado de Assis nada tem de 'revolucionário'. Assim também não era revolucionário um Swift, que era crítico – e cínico – mas não 'iconoclasta'. E assim também um Voltaire, iluminista, crítico, mas dificilmente se aliaria a um Marat, ou a um Robespierre, dentre outros 'ativistas'.

Mais anti-burguês seria um Lima Barreto, também de origem modesta, pobre. Mas diferente de Machado, o Barreto não conseguiu ascensão social, nem conseguiu 'apurar o estilo'. Ele ainda ficou no desabafo – com o ácidos romances “Recordações do Escrivão Isaias Caminha” (1909) e “Triste Fim de Policarpo Quaresma”(1915) – onde mostra os obstáculos para aqueles que desejam 'ascensão social', principalmente devido aos preconceitos de classe e cor. Tanto Machado quanto Barreto eram mulatos e sabiam o quanto o preconceito era arraigado numa cultura escravocrata – sobre a qual o decreto da Princesa Isabel foi uma mera pincelada de verniz, pois os negros foram libertados de uma escravidão e escravizados em outros modos de exploração.

As críticas de Machado de Assis se apresentam mais contra as ideias de fora que não 'fazem sentido' entre nós. Liberalismo, Iluminismo, Positivismo o que tudo isso significa na cultura brasileira? Assim como Hoffmann, o romântico alemão, ironiza o Iluminismo anglo-franco na Alemanha semi-feudal, onde os 'déspotas esclarecidos' desejavam implantar uma cultura iluminista por meio de decretos-lei. Assim como o eslavófilo Dostoiévski lamenta a invasão das ideias europeias no espírito russo. Fora do 'ambiente' original, as ideias não passam de discursos, de retórica, “o movimento das Luzes” vira ideologia – afinal, o que é as Luzes? O que seria num país semi-feudal, de exploração primitiva, que ainda 'importaria' um capitalismo liberal (com a proclamada 'democracia liberal') como uma forma alienígena (estrangeira) de pensamento e ação? Qual seria o 'modo de vida' brasileiro – sem a importação de ideias europeias?


Estrutura e Temática da Obra

Sabendo que o Narrador Bentinho não se identifica com o Autor Machado de Assis, resta-nos analisar a estrutura do romance no que apresenta de original na temática 'adultério' – tão explorada por vários autores, dentre eles os clássicos Stendhal, Flaubert, Balzac, Maupassant, Eça de Queirós – no que tem se inusitado, ou seja, não previsto. Pois o adultério nunca é apresentado, mas sempre sugerido, se houve mesmo adultério este se encontra nas 'entrelinhas'.

Citaremos agora um interessante trecho a abordar a Obra em si, contido no ensaio de Barreto Filho em “A Literatura no Brasil”, vol. 4, sob organização de Afrânio Coutinho, onde tece comentários sobre a obra Dom Casmurro,

“O livro é feito de pequenas cenas e incidentes, uma urdidura cerrada, obedecendo muito à estrutura de uma peça teatral, na entrada e saída das personagens, nos diálogos curtos e breves. Mas seria uma peça à qual se incorporou o trabalho dos bastidores, e as indicações da movimentação cênica. Isso lhe dá um aspecto único. É um gênero novo, estritamente machadiano.” (p. 165)


e

O domínio dos processos artísticos chegou nesse livro, a uma alta classe, de modo que eles não perturbam a pureza da narração, como acontece em Brás Cubas. A verdadeira história é um veio oculto, que vai correndo fora da nossa percepção imediata, mas em contato estreito com os nossos pressentimentos. (...)”

Além, a questão do destino – as personagens não são livres, são lançadas em situações-limite, decisões pelas quais não se responsabilizam,

A força inapelável que maneja as criaturas já se chama aqui o destino, e é a mesma das tragédias antigas. É ela que os combina segundo leis que não nos é dado conhecer, e a sua presença é suficientemente forte nesse livro, para lhe dar o caráter de uma pequena tragédia, que não chega à grandeza porque foge ao plano dos sublime e da exemplaridade moral. Foi a cota de sacrifício ao Naturalismo que Machado de Assis teve de pagar, essa diminuição da natureza humana, que não lhe permitia concebê-la em momentos e atitudes de grandeza, a não ser em algumas situações do Quincas Borba.” (p. 166)

Na própria narrativa o destino é lembrado enquanto objeto de reflexão do Narrador, que vê a própria estória como uma encenação num palco,“O destino não é só dramaturgo, é também o seu próprio contra-regra, isto é, designa a entrada dos personagens em cena, dá-lhes as cartas e outros objetos, e tiro.”

“Nem eu, nem tu, nem ela, nem qualquer outra pessoa desta história poderia responder mais, tão certo é que o destino, como todos os dramaturgos, não anuncia as peripécias nem o desfecho. Eles chegam a seu tempo, até que o pano cai, apagam-se as luzes e os espectadores vão dormir.” (cap. LXXII)


A tragédia está em que a Capitu possível adúltera é aquela mesma que compartilhou a paixão de adolescente, em promessas de amor eterno. Como poderia a heroína da estória se tornar a vilã? Pois “se te lembras da Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca.”, diz Bentinho no capítulo final. A jovenzinha que nos seduziu a narrativa toda – ao seduzir o narrador nos deixamos seduzir por indução – poderá nada mais ser que uma mulher infiel que traiu o marido com o melhor amigo dele?

Parece que Barreto Filho confiou na narrativa de Bentinho, pois acredita que Capitu realmente foi uma mulher infiel.

“Essa infidelidade excede o conflito moral que os romances exploram no adultério. O livro não tem semelhante vulgaridade. É uma falha mais radical, uma traição à infância, uma negação da poesia da vida, tanto mais dura, quanto se tem a impressão de que tinha que ser assim. É essa a conclusão do escritor, a moralidade da história, se assim podemos dizer, pois tudo bem considerado, a Capitu de agora já estava toda inteira na doce companheira da meninice, que riscava a carvão, para entrelaçá-los eternamente, os nomes de ambos, no muro do quintal.
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Muito se tem discutido sobre essa crueldade machadiana. Tem-se indagado por que teria ele resolvido transformar o idílio da infância numa infidelidade revoltante. A resposta está um pouco naquele programa traçado anteriormente no conto “Lágrimas de Xerxes”. A realidade da vida lhe parecia tão absurda e decepcionante, que o homem não tem o direito de colocar em coisa alguma um sentimento de triunfo, porque “toda epifania receberá essa nota de sarcasmo”, a fim de que o homem não ponha a sua complacência em nenhuma realidade, pois no fundo das coisas se encontra uma infidelidade radical: a incapacidade delas em saturar a aspiração de absoluto do coração humano. Infiel é a vida. Capitu é a imagem da vida
.” (p. 167)


Mas quem nos diz que Capitu traiu? Ora, Bentinho. Ou a versão dele. Então, para chegar a conclusão de que houve infidelidade basta confiar no narrador. Mas pode-se acreditar em quem, de modo ressentido, se julga traído? Ele pode inconscientemente manipular todos os eventos de forma retroativa de modo a extrair a interpretação de que a mulher foi traidora! Não há provas materiais – a mais forte é a semelhança do menino Ezequiel com o amigo Ezequiel Escobar. Mas pode não passar de impressão – ou de paranóia – do narrador. Não há a confissão da mãe, a acusada Capitu.

Quanto a Capitu – diminutivo carinhoso de Capitolina - nela temos a mesmo sedução dúbia de uma Catherine Earnshaw (“Morro dos Ventos Uivantes”, Emily Brontë), de uma Nastácia Filíppovna (“O Idiota”, Dostoiévski) ou de uma Anna Karenina (do romance de Tolstoi), assim de modo marcante se tornando a protagonista de fato do romance.

A presença das mulheres – as heroínas – ou vilãs – são mais 'convincentes' que as masculinas, mais caracterizadas como 'tipos' (o burguês, o burocrata, o mendigo, o comerciante, etc) ou 'caricaturas' (o hipócrita, o louco, o sovina, etc). A personalidade textual é aquela que não exige verossimilhança, mas consistência na estrutura do romance. Não se trata de 'alguém' mas de um ser textual que ultrapassa o papel e se materializa em nossos sentimentos de Leitor.

Em “Memórias Póstumas” temos a singela Eugênia, em contraponto a infiel Virgília. Em “Quincas Borba” temos a sedutora Sofia, que enlouquece literalmente o pobre Rubião. Em “Dom Casmurro” a dominadora mãe D. Glória e a dúbia Capitu, que nunca conheceremos realmente. Em “Esaú e Jacó” temos a Flora, que será objeto de desejo e competição entre os gêmeos Paulo e Pedro. E, por fim, a Fidélia de “Memorial de Aires”. São todas as memoráveis, enquanto as personagens masculinas são esquecidas, com raras exceções, por exemplo, o mesquinho Cotrim (Memórias Póstumas), o mendigo-filósofo Quincas Borba (criador do 'Humanitas'), e o mestre da intriga José Dias (Dom Casmurro).



Recursos da Metalinguagem / Intertextualidade


O Narrador – e assim o Autor – não hesita em demonstrar sua erudição, suas tantas leituras de uma vida de pensamento e reclusão. Uma vida de leituras, de dramas e peças de teatro, toda uma 'digestão' da cultura ocidental – sobretudo a europeia. Depois ele adentra a própria cultura nacional, a brasileira. Cita outros autores brasileiros da época, tais como José de Alencar e Álvares de Azevedo.

Outro referencial é o bardo britânico William Shakespeare (principalmente Othelo e Macbeth) – o ícone do “Cânone Ocidental” segundo o scholar Harold Bloom. Há uma citação de Macbeth, a tragédia do rei usurpador escocês,


“Ainda agora sou capaz de jurar que a voz era da fada; naturalmente as fadas, expulsas dos contos e dos versos, meteram-se no coração da gente e falam de dentro para fora. Esta, por exemplo, muita vez a ouvi clara e distinta. Há de ser prima das feiticeiras da Escócia: “Tu serás rei, Macbeth!”. “tu serás feliz, Bentinho!” [...]” (cap. C)

Na galeria de influências estão com destaque os bardos Dante e Camões, além dos clássicos gregos e romanos – por exemplo, Homero, Sêneca, etc.

Por exemplo, no capítulo CXXV, subitamente, encontramos Homero - “Príamo julga-se o mais infeliz dos homens por beijar a mão daquele que lhe matou o filho. Homero é que relata isto, e é um bom autor, não obstante contá-lo em verso, mas há narrações exatas em verso, e até mau verso. Compara tu a situação de Príamo com a minha;” - quando o Dom Casmurro faz um discurso de despedida no funeral de Escobar, que pode não passar de uma amigo-traidor.

Em outro momento, Bentinho vai ao teatro ver justamente uma peça teatral clássica com o tema do adultério - “Othelo” - que apresenta na verdade um ciumento obsessivo, pois na verdade Desdêmona era sincera e fiel.

“Jantei fora. De noite fui ao teatro. Representava-se justamente Otelo, que eu não vira nem lera nunca; sabia apenas o assunto, e estimei a coincidência. Vi as grandes raivas do mouro, por causa de um lenço – um simples lenço! - e aqui dou matéria à meditação dos psicólogos deste e de outros continentes, pois não me pude furtar à observação de que um lenço bastou a acender os ciúmes de Otelo e compor a mais sublime tragédia deste mundo.” (Cap. CXXXV)

Bentinho hesita entre envenenar-se ou vingar-se de Capitu – ela mereceria o mesmo destino da shakesperiana Desdêmona? Mas e se Capitu fosse tão inocente quanto a heroína do drama? De repente, Bentinho pode estar imaginando coisas.

Mas não. Ele quer provas. Mas quais? Um retrato serve. No capítulo CXXXIX – A Fotografia – composto de apenas um parágrafo, temos o que ele considera uma prova, para então decidir por uma solução – deixar a mulher que não foi dele, com o filho que não é dele.

“Palavra que estive a pique de crer que era vítima de uma grande ilusão, uma fantasmagoria de alucinado; mas a entrada repentina de Ezequiel, gritando: -”Mamãe! Mamãe! É hora da missa!” restituiu-me à consciência da realidade. Capitu e eu, involuntariamente, olhamos para a fotografia de Escobar, e depois um para o outro. Desta vez a confusão dela fez-se confissão pura. Este era aquele; havia por força alguma fotografia de Escobar pequeno que seria o nosso pequeno Ezequiel. De boca, porém, não confessou nada; repetiu as últimas palavras, puxou do filho e saíram para a missa.”

Por mais que não tenha certeza – se a traição é real ou imaginária – a vida sentimental de Bentinho foi abalada. Provas nem são necessárias se o ciumento já se atormenta. Ele nem precisa de algo palpável. Basta IMAGINAR a traição para que haja sofrimento. Um sofrer que pode destruir o ser e todos ao redor. Daí o Bentinho tornar-se o Dom Casmurro, solitário, retirado, amargurado com uma vida que desmoronou – o amor de juventude que não foi eterno. A mulher e o filho – que não são dele – ficam na Europa, ele continua a morar no rio de Janeiro. Tempos depois, após a morte de Capitolina, o filho retorna – sempre a tratá-lo de 'pai' – e Bentinho é até amável, cordial, não quer atormentar o rapaz que é um Escobar com “sotaque afrancesado”.

O estudante viaja pelo mundo antigo – Mediterrâneo, Grécia, Egito, Palestina – e morre durante a viagem. É assim que Bento de Albuquerque, o Bentinho, encontra o seu fim na solidão. Encontra outras 'caprichosas' para ligações amorosas, mas sem continuidade. Viveu – e vai morrer - sem deixar um filho que sobreviva a ele. Aliás, praticamente a mesma condição de Brás Cubas, que declara, no final de tudo, “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.”


Influências / Adaptações

O escritor mineiro Fernando Sabino (1923-2004) escreveu uma possível versão de Dom Casmurro, com uma narração em 3ª pessoa ( “Amor de Capitu”, foi publicada pela Editora Ática em 1998), onde procura-se superar o narrador dúbio da ficção machadiana. Não adiantaremos detalhes desta versão, que vale a leitura.

Uma minissérie televisiva foi produzida e veiculada pela TV Globo, em 2008, com o nome da protagonista, “Capitu”, com um arranjo de ópera-bufa e excessiva dramatização como se Dom Casmurro fosse um “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, o que não é. O filme “Memórias Póstumas” (2001) do diretor André Klotzel faz todo um sentido pela veia satírica, tragicômica. “Dom Casmurro” é mais triste do que satírico, mais amargo do que cínico.

Na versão global, criou-se uma 'caricatura' (aquela do debochado e satírico) do estilo machadiano que na verdade só serve ao “Memórias Póstumas” - sendo que as obras finais (“Dom Casmurro”, “Esaú e Jacó” e “Memorial de Aires” retornam ao tom sentimental de antes – na fase romântica – acrescentado um tom melancólico. Afinal, o Autor envelhecia, via-se viúvo, contemplava a morte próxima.



Out/10


Leonardo de Magalhaens




REFERÊNCIAS


ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Ática, 1983.
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BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 4ª ed.
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BENJAMIN, Walter. O Narrador. Observações sobre a Obra de Nikolai Leskov In: Obras Escolhidas. Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1987. 3ª ed.
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COUTINHO, Afrânio. (org.) A Literatura no Brasil. Volume IV – A Era Realista / Era de Transição. São Paulo: Global, 2004.
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SANTOS, Luís Alberto Brandão e OLIVEIRA, Silvana Pessoa de. Sujeito, tempo e espaço ficcionais. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
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SCHWARZ, Roberto. Um mestre na Periferia do Capitalismo. São Paulo: Ed. 34, 2000.



Pesquisa
on-line

links sobre a figura do Narrador (em Bakhtin, em W. Benjamin)


http://www.artigosonline.com.br/o-narrador-como-regente-o-papel-do-narrador-no-romance-de-dostoievski/

http://recantodasletras.uol.com.br/cronicas/102959

http://www.letras.ufrj.br/ciencialit/garrafa12/robertadacosta_autor.html
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sábado, 6 de novembro de 2010

A uma mendiga ruiva (Baudelaire)





Charles Baudelaire

Flores do Mal

(Quadros Parisienses)

A Uma Mendiga Ruiva

Branca de cabelos ruivos,
Cujos furos do vestido
Deixam ver a pobreza
E a beleza,
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Para mim, poeta pobre,
Teu jovem corpo doente,
Tão farto de sardas,
Tem sua doçura.
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Andas mais elegante
Que rainha de romance
Seus coturnos de veludo
Teus grossos tamancos.
.

Em vez de trapos curtos,
Qu'um soberbo traje de côrte
Vista longas dobras trêmulas
Até os teus pés;
.

Em vez de meias poídas,
Que para os olhares vis
Sobre tua perna reluza
Um punhal de ouro;
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Que os nós mal apertados
Desvelem ao nosso pecar
Teus belos seios, radiosos
Tais duas pupilas;
.

E para te desnudar
Teus braços se fazem prestes
E sacodem assim teimosos
Os dedos travessos,
.

Pérolas as mais belas
Sonetos do mestre Belleau
Pois teus galantes cativos
Sempre ofereçam,
.

Cortejo de rimadores
Te dediquem seus primores
E contemplem tua sandália
Sobre o degrau,
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Amantes ao acaso, pagens,
Senhores e vários Ronsard
Espiando para o prazer
Teu fresco reduto!
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E contarás em teu leito
Mais beijos do que lírios
E deixarás sob tuas leis
Mais que um Valois!
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- Contudo, vais esmolando
Algum velho trapo caído
Na soleira de um Véfour
Rua à fora;
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Vais espiando de soslaio
As jóias de bijouteria
As quais não posso, perdoa!
Te oferecer.
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Vem então sem enfeites,
Perfume, pérolas, diamante,
Em tua magra nudez,
Ó belezura!
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Trad. livre: Leonardo de Magalhaens
http://meucanoneocidental.blogspot.com
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Fleurs du Mal

Tableaux Parisiens

LXXXVIII
À une Mendiante rousse

Blanche fille aux cheveux roux,
Dont la robe par ses trous
Laisse voir la pauvreté
Et la beauté,
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Pour moi, poète chétif,
Ton jeune corps maladif,
Plein de taches de rousseur,
À sa douceur.
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Tu portes plus galamment
Qu'une reine de roman
Ses cothurnes de velours
Tes sabots lourds.
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Au lieu d'un haillon trop court,
Qu'un superbe habit de cour
Traîne à plis bruyants et longs
Sur tes talons;
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En place de bas troués
Que pour les yeux des roués
Sur ta jambe un poignard d'or
Reluise encor;
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Que des noeuds mal attachés
Dévoilent pour nos péchés
Tes deux beaux seins, radieux
Comme des yeux;
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Que pour te déshabiller
Tes bras se fassent prier
Et chassent à coups mutins
Les doigts lutins,
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Perles de la plus belle eau,
Sonnets de maître Belleau
Par tes galants mis aux fers
Sans cesse offerts,
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Valetaille de rimeurs
Te dédiant leurs primeurs
Et contemplant ton soulier
Sous l'escalier,
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Maint page épris du hasard,
Maint seigneur et maint Ronsard
Epieraient pour le déduit
Ton frais réduit!
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Tu compterais dans tes lits
Plus de baisers que de lis
Et rangerais sous tes lois
Plus d'un Valois!
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— Cependant tu vas gueusant
Quelque vieux débris gisant
Au seuil de quelque Véfour
De carrefour;
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Tu vas lorgnant en dessous
Des bijoux de vingt-neuf sous
Dont je ne puis, oh! Pardon!
Te faire don.
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Va donc, sans autre ornement,
Parfum, perles, diamant,
Que ta maigre nudité,
Ô ma beauté!
.
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Charles Baudelaire
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segunda-feira, 1 de novembro de 2010

o mundo se di vi de em

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O mundo se di vi de
em
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Saibamos bem e não nos esqueçamos
em nossas vidas de retinas fatigadas
que
o mundo se divide
em
em ser e ter
em ricos e pobres
em dominados e dominantes
em brancos e pretos
em brancos e nem tão brancos
em bruxos e 'trouxas'
em civis e militares
em marxistas e alienados
em freudianos e neuróticos
em apolíneos e dionisíacos
em liberais e trabalhistas
em evolucionistas e criacionistas
em voluntaristas e ressentidos
em apocalípticos e integrados
em normais e pervertidos
em cabeludos e calvos
em cabeludos e nem tanto assim
em pessoas e personas
em defensivos e ofensivos
em burgueses e socialistas
em 'tories' e 'whigs'
em democratas e fascistas
em democratas e demagogos
em dependentes e autônomos
em empregados e profissionais liberais
em patrões e assalariados
em executivos e proletários
em imperialistas e colonizados
em ditadores e dissidentes
em igualitários e hierárquicos
em observadores e participantes
em aptos e incompetentes
em narradores e personagens
em rockeiros e clássicos
em erudito e popular
em reacionários e revolucionários
em egoístas e altruístas
em miseráveis e remediados
em humilhados e ofendidos
em milionários e mendigos
em médicos e pacientes
em médicos e monstros
em sérios e flâneurs
em solenes e palhaços
em lúcidos e drogados
em clérigos e laicos
em classicistas e românticos
em românticos e realistas
em místicos e científicos
em rurais e urbanos
em espertos e otários
em doidos e caretas
em legalistas e golpistas
em honestos e corruptos
em racionais e surrealistas
em simplórios e complexados
em tímidos e despudorados
em gênios e medíocres
em vítimas e vampiros
em ogros e elfos
em anjos e demônios
em fadas e feiticeiros
em belos e malditos
em machos e frouxos
em putas e santas
em judeus e nazistas
em socráticos e sofistas
em terrestres e alienígenas
em cinéfilos e bibliófilos
em intuitivos e técnicos
em fanáticos e céticos
em justos e ímpios
em pais e filhos
em crentes e católicos
em feios e bonitos
em bonitos e nem tanto assim
em autores e leitores
em leitores e analfabetos
em analfabetos e analfabetos funcionais
em estatistas e anarquistas
em mencheviques e bolcheviques
em extrovertidos e introvertidos
em homossexuais e heterossexuais
em bissexuais e abstêmios
em pervertidos e nem tanto assim
em destros e canhotos
em talentosos e idiotas
em folgados e acanhados
em sanguíneos e melancólicos
em brigões e covardes
em gatinhas e megeras
em professores e alunos
em vendedores e clientes
em críticos e artistas
em policiais e bandidos
em protagonistas e antagonistas
em detetives e gênios do crime
em intocáveis e poderosos chefões
em experts e leigos
em bons e maus
em santos e pecadores
em sagrados e profanos
em locutores e ouvintes
em telejornalistas e telespectadores
em políticos e eleitores
em aprovados e eliminados
em ganhadores e perdedores
em sádicos e masoquistas
em síndicos e moradores
em israelenses e palestinos
em brasileiros e argentinos
em americanos e terroristas
em amigos e inimigos
em nós e eles
em tucanos e petistas.
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27.10.10
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