A questão social nos poemas
de Vinicius de Moraes
e João Cabral de Melo Neto
Abordaremos aqui a presença da 'questão social' na Poética dos seguintes autores do Modernismo brasileiro: Vinicius de Moraes (1913-1980), jornalista, literato, compositor e diplomata, atuando nos anos 40 e 50, principalmente, com a divulgação de poemas (entre os quais os famosos sonetos líricos) e a música popular (bossa nova); e João Cabral de Melo Neto (1920-1999), diplomata e poeta, com grande destaque na dramaturgia, com “Morte e Vida Severina” (1966).
São autores de distintos estilos. Vinicius é um poeta dos sentimentos, com sonetos clássicos e líricos, soando sempre nostálgico, em melódicas assonâncias. Enquanto João Cabral é o poeta de corte áspero, não-lírico, quase racional (ou cartesiano) quanto possível. Mas um enfoque proposto aqui seria o de pensar o tema da 'questão social', da desigualdade social, do drama social brasileiro, nos poemas mais 'políticos' de João Cabral e Vinicius de Moraes. Uma proposta de usar os mesmos métodos dos autores realistas, do século 19, e início do 20, onde a Arte devia apresentar um olhar mais 'realista' sobre a realidade – com temas antes excluídos, como miséria e prostituição - abandonando, assim, os traços idealizantes próprios do estilo romântico.
O método do 'realismo social' foi mais usado – e coptado – pelos autores e críticos do 'Realismo socialista' – entre os quais Gramsci e Lukács – que apreciavam um olhar maior sobre os contextos sociais do que sobre a Linguagem propeiamente dita – enquanto Maiakóvski e Brecht sabiam trabalhar tão bem o texto-contexto. Tanto é a preocupação com o contexto que Lukács apreciava Thomas Mann (de “Os Buddenbrook”) mais do que os contos alegóricos de Kafka (mesmo que façamos leituras políticas de “A Metamorfose”, “O Castelo”, “A Colônia Penal”, “A Muralha da China”, etc)
Podemos usar perfeitamente o 'método' do 'realismo social' (que integra a 'periferia' no centro do Cânone) para lermos presentemente os poemas mais politizados contextualmente. Temos a 'poesia engajada' de Carlos Drummond de Andrade (principalmente em “A Rosa do Povo”), Affonso Romano de Sant'Anna, Ferreira Gullar, de Thiago de Mello, de Moacyr Félix, dentre outros. A poesia engajada que ousa integrar a linguagem poética com a fala dos oprimidos, dos marginalizados, dos dominados pelos sistema de lucro e exploração.
Sobre a 'poesia engajada' no Brasil temos um trecho do texto (disponível online) do crítico Felipe Fortuna,
É preciso recordar que a literatura engajada, àquela época, procurava soluções "populares", que dessem finalidade aos diversos textos, com base tanto na realidade nordestina quanto nas apostilas de Gramsci. Ferreira Gullar escrevia romances de cordel; Moacyr Félix compunha longos cantos e editava cadernos de poesia que registravam o inconformismo com a ditadura militar e o imperialismo norte-americano. Morte e Vida Severina (1955), de João Cabral, conhecia fama cada vez maior - e é, ao que conste, o melhor resultado de literatura engajada que se fez no Brasil.
Há toda uma 'correspondência', um dialogismo entre os poetas João Cabral e Vinicius de Moraes, com amostras de 'aproximação e afastamento', segundo ressaltou o Prof. Roniere em palestra. “Ilustração para a 'Carta aos puros' de Vinicius de Moraes”, “Resposta a Vinicius de Moraes” e “Para Vinicius de Moraes” ( em “Faca só lâmina”, “cuidado com o objeto / com o objeto cuidado”) são poemas de João Cabral que dialogam com poemas de Moraes, tais como “O Poeta”, “Pescador”, “Mensagem à Poesia”, “Retrato, à sua Maneira” (onde chama Cabral de “camarada diamante”) com destaque para a Metalinguagem e para a atividade peculiar do Poeta de dar sentido e de 'ressignificar' o mundo.
De Moraes o poemas que apresentam maior comprometimento com temas sociais são “Elegia Desesperada”, “Mensagem à Poesia”, “Balada dos Mortos dos Campos de Concentração", "A bomba atômica”, “A Rosa de Hiroshima” e “O Operário em Construção”, sempre ao lado de alusões metalinguísticas e lirismos. De início a escrita de Moraes impregnava-se de lirismo, saudosismo e reverência religiosa, que gradativamente transmutavam-se em melodia, boêmia e ironia.
“O Operário em Construção”, ao lado de “Morte e Vida Severina” são dois exemplos evidentes de 'poesia engajada' no sentido de mostrar a Arte preocupada com temas de 'realismo social' – o estilo que é anterior ao Surrealismo, Cubismo, Dadaísmo, estilos modernistas, que não eram considerados anti-burgueses pelos socialistas, mas 'arte burguesa', por ser fruto do 'mundo burguês'! Um erro evidente do 'realismo socialista' (ou 'soviético') que não entendeu as vanguardas artísticas do século 20 – e querendo ser propriamente 'a vanguarda'! - como bem percebeu Peter Weiss, alemão-sueco, autor da peça teatral “Marat/Sade” e do romance “Die Ästhetik des Widerstands”.
Tanto o retirante – vítima do 'êxodo rural' – quanto o operário – vítima da exploração capitalista – são um retrato deste Brasil não-poético que as Elites desejam ocultar. O sertanejo-retirante conta a própria sina – ou a assistimos impotentes em plena leitura de “Vidas Secas” de Graciliano Ramos – para o público de literatos que esquecem as agruras do mundo não-artístico, ou não-burguês. Daí o tom chocante.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Ou então é o operário, que descobre que a sua pobreza é o que cria a riqueza do patrão, em um tal momento de 'epifania' que consegue superar a 'alienação' e ver a totalidade do mundo em formar de 'poesia',
Foi dentro dessa compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
- Exercer a profissão -
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.
Uma poesia que pretende retratar o mundo, ou modificá-lo? Eis o que a 'vanguarda' encontrou em termos de impasse. Pode-se fazer um belo poema sobre operários e até canções de MPB, com forte apelo popular, mas não se alcançar uma superação da ‘alienação’, como é o exemplo da canção “Construção”, de Chico Buarque, que nos jogos de linguagem acaba por deixar em segundo plano a tragédia, a morte gratuita de mais um operário nas grandes metrópoles, “morreu na contramão atrapalhando o tráfego”.
A comparação entre os poetas serve mesmo para realçar o 'retrato' comum que as diferenças de estilo podem eclipsar. Ambos falam da própria poesia, ambos falam de contextos sociais, ambos são diplomatas. Ambos têm um desejo de 'retratar' os lados antilíricos do cotidiano. É assim que atingem experimentalismo e denúncia social. Para João Cabral o importante é a Arte parar de falar do umbigo do próprio autor,
“Esse tipo de poeta individualista apenas dá de si. A outra missão do leitor, no ato literário, a saber, a de colocar indiretamente na criação, é desconhecida ou negada. Este poeta não quer receber nada nem compreende que sua riqueza só pode ter origem na realidade”
Ou seja, a importância dos dados da realidade mais do que subjetividade poética autoral. Um “quadro crítico da realidade” e não visão pessoal do poeta. E ao analisar a própria 'ferramenta' de trabalho – a Linguagem poética – o Poeta usa e abusa de recursos metalinguísticos.
Metalinguagem ao abordar a estrutura, a 'arquitetura' do Poema, seja no esquematismo, seja na 'mania de simetria', seja a poesia feita com 'palavras-coisa' (a Poesia-Práxis seguiu esta trilha...) mas sempre uma 'preocupação com a linguagem, não apenas com o 'eu-lírico' (mais presente no lirismo de V. de Moraes).
Linguagem que pode ser 'pensada' ou 'sentida', 'rítmica' ou até musicada (como são evidentes as composições de Moraes para o movimento musical 'bossa-nova' com Tom Jobim, Toquinho e outros). Linguagem que pode ser 'áspera', com uma declamação não-musical, em tom seco, com menor lirismo, com um conteúdo (e ritmo) de cordel, como é evidente na obra de João Cabral.
Uma poesia de matéria bruta, mas com dilapidação simétrica, eis o objetivo do poeta da “vida severina”, no que se compara com o Graciliano Ramos, do já citado “Vidas Secas”, onde os seres humanos se desumanizam numa natureza árida e agressiva. Retirantes do meio ambiente e retirantes de si-mesmos, as personagens perdem gradativamente a capacidade de comunicação. É a perda da 'subjetividade', tão cara ao homem pós-Iluminismo.
Tanto Moraes quanto Cabral mostram uma preocupação de texto e contexto, no que se igualam a Maiakovski e Brecht, ao utilizarem recursos da linguagem poética para veicularem conteúdos antes considerados 'não-poéticos', a vida sertaneja de um retirante, ou a vida urbana de um operário.
Assim como as pinturas de Millet, Daumier e Courbert, de estilo realista, no século 19, trouxeram as imagens dos camponeses, operários – explorados e miseráveis – aos salões burgueses de Paris, assim os poetas-diplomatas souberam apresentar a “vida severina” e o “operário em construção” aos literatos que vivam em brumas líricas e torres de marfim.
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set/10
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REFERÊNCIAS
MELO NETO, João Cabral. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1999.
_____________. João Cabral de Melo Neto / notas, estudos biográficos, histórico e crítico e exercícios por Samira Youssef Campedelli, Bejamin Abdala Jr.; seleção de textos
por José Fulaneti de Nadai. São Paulo: Abril Educação, 1982. (Literatura comentada)
MORAES, Vinicius de. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004.
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