sexta-feira, 22 de outubro de 2010

sobre "As Dores de Indaiá nas Memórias de Tapuia"




Sobre “As Dores de Indaiá nas Memórias de Tapuia
(BH, Rede Catitu Cultural, 2010)
do poeta Marco Llobus (BH / MG)

Revivendo a infância na fala poética

“Poesia, a minha velha amiga
eu entrego-lhe tudo
a que os outros não dão importância nenhuma
...”
(Mário Quintana)
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Hoje eu atingi o reino das imagens, o reino da / despalavra.
/ Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidades
/ humanas.” (“Despalavra
”)
(Manoel de Barros)
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A Crítica

A presença da Crítica literária se evidencia não apenas em leituras e julgamentos, mas no reconhecimento de que a Obra mereça ser lida e julgada. Obras existem que apenas devem ser destinadas à lixeira. Sem piedade. Se a Crítica dedica um momento de atenção a algum escrito – no sentido de ler com atenção, não apenas folhear, mas LER – é porque algo mais é notado pelo 'olhar de lince' do Leitor chato.

Afinal, quem é o crítico? O crítico é um Leitor chato. Chato no sentido de obstinado, persistente. Cuidadoso em examinar linhas e devassar entrelinhas – mas é também um curioso – e assim cada livro é devorado com voracidade – e visto como desafio – 'decifra-me ou te devoro'.

Quando a Crítica vem à lume, espera-se que ao menos seja lida como uma 'leitura atenta' – não A leitura da Obra, pois cada Crítico poderá pessoalmente apontar detalhes que demonstram idiossincrasias do olhar crítico. O nível de cultura em um Crítico determina muitas vezes a 'profundidade' de sua leitura.

Tal um Tradutor que precisa saber das mil citações & referências de Proust – leitor ávido da tradição literária francesa! - e das milhares de releituras & paródias de J. Joyce – leitor fanático das tradições literárias europeias - para melhor traduzir as obras-labirintos, o Crítico precisa ler as influências – conscientes ou não – ou a 'angústia da influência' – que vicejam na Obra lida obstinadamente.

A Obra

A expectativa do lançamento do primeiro livro do poeta Marco Llobus, um poeta que sempre produziu, e sempre mencionou a existência de uma vasta lavra de versos (beirando a 700 poemas segundo ele mesmo revelou) então quando poderíamos ler os poemas tão prometidos?

Sob o luar inspirador no Centro Cultural da Lagoa do Nado veio ao mundo o “As Dores de Indaiá nas Memórias de Tapuia”, o primeiro rebento do Poeta que viceja nas margens, que não é apenas 'marginal', mas interiorano, no sentido de espontâneo, de livre das convenções urbanas.

Conserva um ouvido apurado para a fala popular – a importância da melopeia - ' a melodia dos versos' (conceito usado por Ezra Pound) aqui bem lembrada na apresentação de Gabriel Bicalho, que destaca “um dedo de prosa e porteiras abertas a um mundão inteiro de pura poesia!”

O Autor Marco Llobus preserva – mesmo a morar em cidade grande, metrópole – ainda dentro de si uma alma interiorana – não exatamente 'caipira', que tem um tom 'depreciativo' – uma sensibilidade para as coisas pequenas – tal um Manoel de Barros – e para coisas simples, cotidianas – tal um Mário Quintana.

O Olhar do Poeta

Assim o poeta é espontâneo E perfeccionista: a poesia enquanto 'pérola'. A destilação, decantação, seleção da vivência para se extrair uma gota de poesia.

Por trás da simplicidade, um recorte do cotidiano, ou uma lembrança dos tempos de infância – aliás, parece-me que o maior sofrimento de Marco Llobus é assumir o 'fim da infância' – o sentimento de “childhood's end” tão presente em poemas românticos ingleses (Blake, Shelley, Byron, até um David Gilmour - Pink Floyd - atualmente) .

A idealização da infância no modo de re-evocar os 'felizes momentos de outrora' – também presente nos poetas brasileiros, vide o romântico Casimiro de Abreu, com “Meus oito anos”,

Oh! Que saudades que tenho/da aurora da minha vida,/ da minha infância querida/que os anos não trazem mais!/ Que amor, que sonhos, que flores,/ naquelas tardes fagueiras,/ à sombra das bananeiras,/ debaixo dos laranjais!”

Assim, na poética de Marco Llobus o 'prosaico e o irônico' – presente em Manuel Bandeira e Mário Quintana – é cercado de moldura afetiva – com as lembranças, re-evocações de lembranças. As coisas são carregadas de afeições, que se manifestam na saudade do tempo passado, como diz o poema de Quintana,

Os antigos retratos de parede
não conseguem ficar longo tempo abstratos”
(“Os Retratos”)

Memórias de infância estão tecidas com uma negação do adulto. Como uma tentativa de resgate do ser interiorano ainda preservado no 'passado idílico' – assim é em muitos momentos a escrita de Guimarães Rosa (nas páginas de “Campo Geral” onde aparece o menino Miguilim) ou na obra do poeta Antônio Souza (lido em ensaio anterior), autor de “Flores no Pote”.

As paisagens,os locais são descritos com afetividade, pois estão carregadas de sentimento – a saudade diante da infância perdida, conservada na memória,

olho pelo “olho mágico”
da porta do tempo
o desfile de imagens
de algumas histórias
que ascendem às velas
ds minhas memórias”

(p. 14)

O que o Autor quer preservar é o 'olhar de crianças' – um olhar de Alberto Caeiro, o singelo heterônimo de Fernando Pessoa, com um olho aberto para a “eterna novidade do mundo”, a notar em cada recanto um 'mistério' a despertar curiosidade (enquanto o adulto teima em julgar-se sabedor de tudo...), a cada etapa da vida,

o mundo, respira
derramando mistérios em cada despedida

(p. 18)

Mas o Poeta sabe que por mais que revivifique a infância através da palavra, o tempo de outrora é sempre fugidio, que a palavra não pode conter o acontecido,

vê? O caminhão de leite?
Passageiro...
quase parece
que não existe”

(p. 83)

Quando o passado passa é como se auto-anulasse. O que sobra é um registro de alegria e dor na faculdade da memória. Caso contrário renasceríamos a cada dia, formaríamos um novo 'eu' a cada momento, re-criando e re-novando em constante ausência de um ontem.

Por mais que ousemos escrever, é sempre uma experiência algo frustrante, incompleta. Não dizemos nunca o que ansiamos tanto em dizer. É o sentimento que Quintana assim expressa,

Cada palavra é uma borboleta morta espetada na página:
Por isso a palavra escrita é sempre triste...”
(“Tristeza de Escrever
”)

Ao voltar o olhar para si mesmo – não para o passado ou a paisagem – o eu-lírico se percebe um sujeito no mundo. Uma singularidade a indagar sobre a identidade que alcança em 'estar-aí' (segundo o Dasein, de Heidegger), consigo mesmo e com os 'outros' 'eus',

aonde...
mastro solitário
destas mares de montanhas
navegam “eus” e todo o mundo
?”
(p. 40)

Esse “eus” já mostra uma pluralidade de sujeito num só 'eu-lírico' que entra em contradição com o 'solitário' – como estar sozinho se o sujeito se sente 'muitos'? Como se sentir solitário se o Poeta se divide no ser que sentiu e o ser que expressa o que sentiu?

O Poeta se diz solitário – como vimos – mas também sabe que em si há todo o “sentimento do mundo” (também a la Drummond),

o mundo todo
todo mundo
cabe em tapuia

(p. 69)

Em seu mundo de infância encontra uma representação de um universo que ele mesmo povoa – vivências, leituras, viagens - tudo adentra e co-habita em Tapuia, onde se situa a fazenda onde cresceu o Poeta, na região próxima à Dores de Indaiá – aqui a Macondo (um microcosmo) do Autor. Pois o quintal pode ser o 'umbigo do mundo', o centro da galáxia.
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O Poeta e a Linguagem

Aprendemos com Mallarmé que poesia é 'feita de palavras, não com ideias', e com Octavio Paz que afirma não ter a poesia um 'conteúdo', mas é ela-mesma o conteúdo, e aqui Llobus trabalha com palavras, não com conceitos a partir das palavras – a metafísica aqui é da própria palavra (por que usar a palavra Y e não a palavra X ?)

A ênfase na palavra constitui a estrutura do verso – daí a poesia ser intraduzível (“poesia é aquilo que se perde na tradução”, dizia Robert Frost) e para tentar traduzir poesia, o poeta-tradutor – ou tradutor-poeta – interpreta 'conceitos' a partir de palavras, e transplanta para outras palavras, em outro idioma.

Ao lidar com palavras para evocar lembranças – resgate da 'infância perdida' – o Poeta se vê entre a labuta física na lavra no campo e a “luta com as palavras”(1) na lavra dos versos,

Os jargões são em timbre de enxadas
lamentos regidos no sulco da terra
[...]
labuta suores e signos
há fartura nos dias

(p. 17)

(1) de Carlos Drummond de Andrade, “O lutador

O Poeta precisa se apropriar das palavras através de ligações – metáforas, metonímias, analogias - , através de ressignificações – a feitura de um 'vocabulário peculiar', próprio à expressão poética. A 'enxada' é uma parte do trabalho, mas que passa a significar todo o 'esforço'.

O eu-lírico pretende reencantar o mundo presente pela evocação do mundo de outrora, e assim resgata o vocabulário de criança interiorana, de fala espontânea, tal qual aquele Miguilim, da obra de Guimarães Rosa, que se espelha pela fala sem 'retorsões', a comunicar um vivência plena de 'mistérios',

mesmo não vendo... passa,
parecendo que não percebe nada
mais tudo se percebe
aí... tum... foi tanta coisa.”
(p. 82)

e

um destino
que segue o ritmo
de algum mistério,
travestido de ideia”
(p. 85)

O conceito é abstrato até o momento em que a Poesia o re-insere no mundo na forma de coisa – ou metáfora da coisa. Uma imagem (aqui poética ) diz mais do que mil conceituações. Sabemos que 'saudade' é dificilmente conceituada, delimitada num conceito. Mas ao ler um poema, parece que conseguimos 'compreendê-la',

vive no silêncio de todas as coisas
que se apagam na vigília,
transformando-se
na eterna
saudade
da vida”

(p. 89)

e

picumã defumado
é ninho de tempo
decora teia, fogão...
e os “ói” de saudade"
(p. 64)

Assim todo conceito – entidade abstrata – é materializada em versos que são recodificados pelo/a leitor/a em sentimento – nova abstração, onde há uma modificação se há percepção do 'insight' que motiva a Escrita, motivação do sujeito, daí 'subjetiva'.

É isso que Quintana queria dizer ao fazer 'desmaterializações' – pois sua mágica era 'poetar', colocar o sujeito nas coisas, fazer 'subjetivação',

Há os que fazem materializações...
Grande coisa! Eu faço desmaterializações.
Subjetivações de objetos.
Inclusive sorrisos, [...]”
(“Operação Alma
”)

Resumindo: há a Coisa, há uma Palavra, há UMA palavra cativada pelo Poeta, que a ressignifica e atira novamente ao ouvinte/leitor que a re-codifica enquanto subjetivação da subjetivação do Poeta. Toda a Cultura se move assim: as Coisas sempre significam OUTRAS Coisas.

Por que? Porque além das Coisas, temos os Sujeitos que se comunicam. Enchemos o mundo de Coisas metafóricas, ressignificadas, vivente, pulsantes, em suma, refletindo o que sentimos.

Em alguns momentos, Marco Llobus entra em conflitos com as palavras, adentra aventuras linguísticas, daquelas que afetam o poeta das 'coisas mínimas' o sempre inclassificável Manoel de Barros, “Tentei uma aventura linguística. / Queria propor o enlace de um peixe com uma lata. / uma lata é uma lata é uma lata. / Busquei contiguidades verbais.” (“O Casamento”)

Temos aqui a mesma questão da linguagem que é referencial no pensador francês Michel Foucault, autor de “As Palavras e as Coisas” (1966) onde procura entender quais as relações existentes entre os entes e as palavras que os representam – os signos. O que há na palavra 'mesa' que remete ao objeto 'mesa' – de quatro ou três ou uma perna, que serve para escrever, ou para amparar objetos, etc.

Justamente a indagação presente na poética de Manoel de Barros, “As coisas todas inanimadas. / Água não era ainda a palavra água. / pedra não era ainda a palavra pedra. / E tal. / As palavras eram livres de gramáticas e / podiam ficar em qualquer posição.” (in: “Poemas Rupestres”)

É perceptível a condição do Poeta enquanto ser de palavras - “Vão dizer que não existo propriamente dito. / que sou um ente de sílabas. / Vão dizer que eu tenho vocação pra ninguém.” (“O Poeta”, M de Barros) - Daí o Poeta precisar se 'fazer vivo' nas palavras – se apoderar das palavras – domar as palavras - “em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer / nascimentos - / O verbo tem que pegar delírio.” (in “O Livro das Ignorãças”)

A palavra vem depois das coisas – vem com o olhar humano que NOMINA o mundo - “O mundo não foi feito em alfabetos. Senão que primeiro em água e luz. Depois árvore. Depois lagartixas. Apareceu um homem na beira do rio. [...]” (também em “Livro das Ignorãças”) Vivendo entre as Coisas e os Conceitos, o contato do Poeta com a palavra é sempre com estranhamento – onde as palavras não são evidentes – são 'desvios' em relação às coisas,

Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas / leituras não era a beleza das frases, mas a doença / delas.” e “Pois é nos desvios que encontra as melhores / surpresas e os ariticuns maduros. / Há que apenas saber errar bem o seu idioma.”

É assim, portanto, que o poeta aprende uma “agramática”, a demonstrar o real deslocamento do poeta interiorano diante do 'progresso tecnológico', como também é sensível na poética do poeta popular, o cearense Patativa do Assaré, “Meu peito ainda parpita / Cheio de rescordação / Dessas historia bonita / Que contava o Botijão. / Mas hoje, nas farinhada, / Nem histora, nem toada, / Nem mêrmo advinhação, / tudo é tristeza e deslêxo, / E eu, seu moço, só me quêxo / do diabo das invenção.” (“O puxadô de roda”)

Assim não é gratuita a Linguagem com sotaque caipira do eu-lírico que re-vive a fala do sertão, do 'interior das gerais',

assobio,
sem alarde,
prumodi das concordância.
... a casa sente
sem susto
e sabe
i eu... que vou vortando”

(p.36)

Indiferente à gramática normativa, a fala espontânea é um símbolo do resgate – não é mais o eu-de-hoje quem fala, é a criança que anda de pé descalço na beira do açude, no meio do capim, onde “o orvalho frio, / pinica/ molha // i é bão (p. 62)

Só mesmo esta fala sem-amarras pode voar tal uma pipa até os céus, na bela imagem de um dos poemas que merecem admiração pela simplicidade e pela evocação de imagens, de assombro para o incalto Ícaro que ousou desafiar o calor do sol, na mitologia grega,

papagaio amarelo
de brinco e argolas,
bambu, seda,
goma de “porvilho”
carretel e linha
leva sorrisos,
recados
para ícaro”

(p. 70)

É assim que vemos a poesia – aqui simples e direta – condensar imagens em poucos versos e deixar-nos livres para imaginar. Vejamos como a simplicidade expressiva de Marco Llobus se mostrará nas próximas obras já prometidas aos curiosos leitores.


28set10



Por leonardo de magalhaens
http://meucanoneocidental.blogspot.com/
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Um comentário:

  1. meu nome "palavra" sou "eu"?

    meu irmão, as veiz parece que a pena nos pega. e a palavra deixa de ser estrada, para se tornar o caminhante. enciumada, rouba nos o (chão). ( - palavra perigosa e que dá cria é o “nada”... ) ...
    então... (outra palavra sem razão),

    descolibri,
    uma valsa entre vazios,
    e é aqui
    que fico.

    Para o bandeirante
    M.Llobus

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