segunda-feira, 21 de junho de 2010

sincroni-cidade (tudo ao mesmo tempo agora)




sincroni-cidade

(tudo ao mesmo tempo agora)



Às 11:59, horário de verão, de uma quarta-feira, quase nublada, um catador de papelão e ferro-velho, moreno, encurvado, arrasta uma carroça imensa, cinco vezes o seu tamanho, carregada de papelão amassado e garrafas de plástico, em plena avenida Bias Fortes com rua Tupis, a cem metros do elevado Castelo Branco, meio ao trânsito contínuo,

enquanto isso, na esquina de rua Curitiba com avenida Amazonas, um cidadão suarento, mesmo correndo, acaba de perder o ônibus,

no mesmo instante, o jovem advogado JC acaba de mudar o câmbio de marcha, ao arrancar num sinal, ao subir a rua da Bahia, ouvindo um reggae universitário, lembrando do Capítulo V do Código de Defesa do Consumidor,

sincronicamente, uma dona de casa, cantarolando um pagode, atravessa a rua Espírito Santo, para o quarteirão da Imprensa Oficial, segurando firme a bolsa de compras, ao ver crianças de rua, com ares suspeitos,

ao mesmo tempo, o escritor LM atravessa a avenida Afonso Pena, diante do Palácio das Artes e do Conservatório de Música, atento ao verdor do Parque Municipal e ao rugir dos motores, em passos apressados rumo ao Edifício Maletta,

enquanto isso, do referido Ed. Maletta acaba de sair o desempregado LX, um tanto desapontado, devido ao fato de não haver encontrado um ex-colega, agora empregado e disposto a indicar-lhe uma possível vaga de serviço na construção civil,

sincronicamente, trocando beijinhos afeituosos, duas adolescentes estudantes concluem o doloroso ritual de despedida, na portaria do shopping center, na ladeira da rua São Paulo, combinando o próximo encontro no msn,

ao mesmo tempo, o corretor de imóveis FS, tendo ao lado a jovem amante CF, adentra o drive in na mesma rua São Paulo, três quarteirões abaixo,

enquanto isso, no alto do edifício defronte, a empregada SS, 25 anos, troca as flores murchas num vaso de flores, exposto na janela do apartamento de sua patroa, a cirurgiã-dentista TS, 36 anos, recém-divorciada do promotor público JF, 52 anos, envolvido em casos extra-conjugais,

ao mesmo tempo, no andar de baixo, a jornalista CBL atende o celular, enquanto corrige um texto, e segue uma amiga no twitter, e troca a estação de rádio, quando imaginava estar abaixando o volume, solta um suspiro,

enquanto isso, no táxi branco do motorista RN, 56 anos, moreno e bem-humorado, ressoam risadas à uma anedota do passageiro, o diretor de teatro ZF, 50 anos, enquanto trafegam na avenida Cristiano Machado, voltando do Aeroporto Internacional Tancredo Neves, em Confins,

ao mesmo tempo, o vereador TJ almoça com um correligionário, que procede às apresentações, estendendo a mão a um diretor técnico de grande empresa de construções na Capital e Região Metropolitana, e todos já sabem que a refeição será regada a vinho e propina,

enquanto isso, na oficina suja, entre a avenida Assis Chateaubriand e a avenida do Contorno, um mecânico discute o preço com um cliente, enquanto troca um pneu furado e alinha as rodas dianteiras,

sincronicamente, uma descarga de sanitário ressoa no toalete masculino no andar de periódicos da Biblioteca Estadual Luiz de Bessa, enquanto a faxineira retira a tampa de frasco de desinfetante aroma lavanda, e um policial fardado atende o celular junto ao bebedouro,

enquanto isso, os televisores do restaurante Carne na Brasa, no Barro Preto, exibem um gol antológico do artilheiro da vez, numa polêmica cobrança de penâlti,

de forma sincrônica, uma guitarra solo de balada hard rock vaza de um sobrado na rua Platina, derramando-se sobre os transeuntes na ladeira de acesso à Estação de Metrô Calafate,

ao mesmo tempo, o Sr. JP, funcionário público aposentado, em seu quarto de pensão, na Lagoinha, completa outra coluna vertical da palavra-cruzada, o sinônimo de 'ávido' com cinco letras, começando com 'v', e ouvindo o sinalzinho eletrônico da Rádio Itatiaia,

no mesmo instante, os ex-namorados CH e AG fingem não se conhecerem, quando se percebem, com mal-estar, na mesma fila no Banco do Brasil, na agência Rio de Janeiro,

enquanto isso, um casal de universitários trocam olhares, beijos e juras de amor, coisas de namoro novo ou idílio de um verão, diante da Faculdade de Farmácia, no Campus UFMG na Pampulha,

ao mesmo tempo, resplandece nos altos céus o Boeing 747 que decolou às 11h50 da pista do Aeroporto da mesmíssima Pampulha, voando nuvens acima, rumo ao Triângulo Mineiro,

enquanto isso, na avenida Santos Dumont, um jovem office-boy é assaltado por um motociclista, que já parece saber que na pasta marrom há, somando notas e cheques, a quantia de mil e quinhentos reais,

ao mesmo tempo, na lanchonete defronte, uma senhora quase se engasga com o pastel de queijo, ao ver, sem o desejar, a cena da abordagem e roubo,

ao mesmo tempo, na outra faixa da mesma avenida, um motorista de carro de vidraçaria vê a mesmíssima cena, um motoqueiro a subtrair a pasta marrom de um boquiaberto office-boy,

em sincronia, um lixeiro recolhe o lixo, em sacolas plásticas pretas, deixado por uma dupla de garis, na rua Timbiras com avenida Olegário Maciel, enquanto um casal atravessa na faixa de pedestre, rumo ao suntuoso templo evangélico, trocando reclamações referentes ao nauseabundo mau-cheiro do caminhão,

ao mesmo tempo, a atriz BP passeia com a poodle Mimi, junto aos ipês da Praça da Liberdade, enquanto recebe o olhar sedutor de um senhor em passo de footing, com ares de recém-aposentado,

enquanto isso, o catador de papelão e ferro-velho, na avenida Bias Fortes com rua Tupis, farejando um modesto bar com P(rato) F(eito), não sabe se poderá almoçar hoje.
.
BH, 10 e 20 fev/10
.
.
Leonardo de Magalhaens
.
.

Nenhum comentário:

Postar um comentário