quarta-feira, 9 de junho de 2010

ensaio - Kafka, um Artista da Fome e a Crítica




Kafka, um Artista da Fome e a Crítica

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Um exemplo de como a Crítica pode ser subjetiva? Basta
uma leitura das várias críticas sobre as obras do escritor
judeu-tcheco Franz Kafka, que escreveu em alemão,
no início do século 20. Cada crítico vê em Kafka um
aspecto que interessa aos próprios objetivos de suas resenhas.

O judeu vê em Kafka um alegorista judeu, um alemão vê em
Kafka um contador de estórias muito original, mas não
ressalta sua origem marginal (à margem do Reich, claro),
um britânico vai ressaltar o uso da linguagem, as metáforas,
ou seja, mais a forma do texto do que os enredos.

Pessoalmente, não julgo Kafka um grande escritor enquanto
'artífice dalinguagem', uma vez que Kafka não é Proust,
nem Joyce, e muito menos Borges. (Isto acho que o Calvino
já disse...) Agora, em questão de enredo, Kafka é um baú
sem fundo: a cada leitura dos contos e romances, podemos
encontrar alguma coisa, um detalhe, que leituras anteriores
ignoraram.

A linguagem em Kafka não me atrai, não só porque sofri
muito com traduções sofríveis em português (antes ler aquelas
em english...), agora lendo alemão não me surpreendem –
exceto quando a linguagem (o 'tom absurdo' do narrador)
se destaca. Quero dizer, quando o narrador narra absurdos
e absurdos numa linguagem totalmente comum. (Isto o
Murilo Rubião e o García Márquez souberam explorar
muito bem)

Os enredos são verdadeiros labirintos de absurdos, contradições,
detalhes, contra-sensos, digressões, tudo numa linguagem
muito banal, comum, cotidiana, pois Kafka não faz nada do
que fez um Joyce, recriando no idioma o que ele julgava
expressar o enredo. A linguagem simples de Kafka é um
modo de ironizar a realidade absurda dos enredos.

Mas falemos do “Artista da Fome” (Ein Hungerkünstler),
conto de Kafka, publicado em 1922, e que é alvo de infindas
críticas, uma mais absurda que a outra. Subjetivas, alegóricas,
idiossincráticas, desmioladas, o que se possa imaginar.
Cada um vê ali o que quer. Eu vejo outras coisas. O próprio
Kafka talvez ironizasse estes críticos afetados. (Com exceção
do crítico Harold Bloom, que conhece bem a auto-ironia)

Digo ironia, pois Kafka explicita, com seus absurdos, a
própria condição humana, e especificamente do artista.
O artista cuja arte é morrer de fome diante da estupefação
ou indiferença de uma platéia em busca de emoções
e entretenimento. O artista que se mata pela arte e é
depois substituído por um animal enjaulado. Um artista
descartável que nunca será compreendido – ele explicita
sua falta, nunca ter encontrado um 'alimento que ele desejasse
tanto'. Ou seja, a Arte nasce justamente dessa falta, dessa
insatisfação, “prefiro passar fome do que comer qualquer
coisa que não é a COISA que quero comer
”. Daí o artista
ser visto como pouco racional, excêntrico, louco.

O artista (que prefere passar fome do que comer qualquer
coisa) não espera ser compreendido, não espera ser
valorizado, não espera qualquer atenção. Mostra, explicita,
sua arte de passar fome – ali enjaulado, em público –
humilhado e exaltado, sofrendo e se superando, enquanto o
povo passa e segue adiante, sem compreender.

Um músico tocando na praça, um poeta recitando seus
versos num bar, uma estátua humana na feira popular,
são todos exemplos clássicos da excentricidade e da
gratuidade do ser artista – a arte enquanto fim em
si-mesma. O(a) artista somente gostaria de atenção e
reconhecimento. Ele(a) se exibe e se explicita porque
precisa de um outro olhar, sendo o ser social que é.
Por mais que seja egocêntrico(a) e solipsista.

Mas o(a) artista morre por causa de sua própria arte.
Assim os poetas falidos, os atores descartados, os
compositores endividados, as modelos fora de moda,
todos renegados e afastados do 'bom convívio social',
sendo segregado(a) s em bordéis, botecos, casas de
saúde, abrigos para artistas, condomínios, manicômios.
O(a) artista morrem em nome da arte – que significa
muito e tudo, mas apenas para ele(a) mesmo(a).

Franz Kafka jamais poderia ser tão irônico – não mais
que uma piada judaica. E os críticos ficam aí, se
esforçando em interpretações as mais absurdas. Mas,
absurdo por absurdo, prefiro o absurdo do ser artista.
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Março/2009
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Leonardo de Magalhaens
http://meucanoneocidental.blogspot.com


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Mais sobre “Um Artista da Fome
nos links
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(duas traduções in english, recomendáveis)
http://records.viu.ca/~Johnstoi/kafka/hungerartist.htm

http://www.lundwood.u-net.com/ahunga.htm
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(in deutsch – Project Gutenberg)
http://pge.rastko.net/catalog/world/readfile?fk_files=126705
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um ensaio de alunos da Unicamp, recomendável
http://www.unicamp.br/iel/site/alunos/publicacoes/textos/d00002.htm

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