segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

DECADÊNCIA (conto)

DECADÊNCIA


LdeM


Sim, o meu desejo por A. não se oculta. Mas sou discreto. Limito-me a observar (sinto estar levitando, contemplando-a). estamos numa casa de campo, uma festinha continua lá dentro. Aqui, na varanda, só os pirilampos. Ou os faróis de um carro que chega.

Conversamos sobre o tempo, o lugar,o cosmos, a noite. Ela atenta, possivelmente interessada (eu louco para agarra-la, mas hesitante). A. toda de preto, vestes sombrias, longos cabelos negros, pálida, espectral. Eu, não menos vampírico.

Não sei se a conversa ficou meio xarope, mas voltamos ao grupo reunido em poltronas, compartilhando taças de vinho. Entramos. Sinto-me cair das alturas, desperto de meu levitar. A luz mortiça, o ar pesado, a música melódica e opressiva, tudo nos recepciona. Ao redor continuam os flertes discretos, uma ou outra carícia ousada. Gestos lentos, lábios disformes. Ambiente ora rústico, ora high tech.

Murmúrios se diluem na massa juvenil. Alguém atira um sapato sobre a mesinha. Dois copos rolam e deixam uma mancha de cacos. Fragmentos rubros.

Comento que a festa está um tedium vitae, que aquilo tudo está valendo apenas um longo bocejo.

- Vou tirar a roupa.

Escandalizei alguém? Apenas o convidado ao lado. Mas continuo a olhar para a garota que estava comigo, lá na varanda. Sim, a linda A. E continuo a beber. Linda, ela. A A. Mas o jardim, digo, o cheiro do jardim, me atrai. Apenas para descobrir um casal entre as samambaias. Levo comigo uma taça de vinho. “Embriagai-vos!”um convidado surge ao meu lado (é aquele que ficou escandalizado com minha proposta de desnudamento). Lembro a decadência dos costumes. Ele diz que não há decadência alguma, que a humanidade foi sempre assim. Cita um filósofo francês (no original) e desliza as unhas pelo meu antebraço.

Não que eu desconfie das intenções do tal convidado, mas prefiro retornar ao aconchego do útero – a sala de jantar. Volto para a festa. Estou bêbado. Encontro a sala em meia luz, o som mais baixo e arrastado. Alguém imita Elvis. Sombrio.meninas e meninos deitados pelo chão, sobre o carpete, pelas poltronas. Vejo aquela que usurpou meus pensamentos (Julgo que seja ela. Linda., ela. A A.) deslizo sobre aquele corpo desejado, Ela, bêbada, não opõe resistência. Transamos.

É quando percebo ser outra garota. Não a da varanda, mas outra, bela desconhecida. O caso é que a A. se levanta lá do outro sofá e vem pegar a minha mão. Vultos rubros em seu olhar? Meu constrangimento revela-me meu estado de nudez. Mas não posso deixar de admirar o sorriso de gozo nos lábios da adormecida que acabei de possuir.

A garota de varanda, a linda, ela, pretende ser compreensiva. Estamos todos um tanto quanto ébrios. “Embriagai-vos!”. Alguém imita David Bowie. Sombrio. A. parece entender que eu a procurava. Que dei prazer e tive prazer com outra, mas pensando nela. A garota olha-me triste, e beija-me. Tenho sono. Dormimos nos braços um do outro.


Outra noite? Não sei. É madrugada.ando pelas ruas, sozinho. Uma menina de cabelos curtos, vermelhos, e piercings reluzentes, grita numa esquina, “Ei, cabeludo!” Não estou interessado. Não importa quem seja, ou o que ofereça. Sigo meu rumo (falta saber que rumo...) e quase tropeço em um artesão, ali vendendo anéis, braceletes, enfeites para os cabelos, adornos indígenas, enfim, quase vou pisando em sua colorida arte.

Na praça, onde a igreja matriz está isolada do real,por uma bruma de dois séculos, jovens se aglomeram, e os clãs delimitam seus espaços vitais. Alguma exigência de “Lebensraum”? Não se preocupem. Policiais arrogantes e suas viaturas modernas passam de tempo em tempo.

Caso haja pancadaria, tiroteios e agressões, logo cacetes e bombas de efeito moral surgirão na noite. Tiros para o alto. Tumulto. Policiais dispostos ao diálogo. Violência contra a violência.

Mas, na porta da matriz, a paz centenária, e as barracas da quermesse. Restos das bandeirinhas e lascas dos portais de bambu. O asfalto decorado com cruzes, imagens de um cristo sorridente, traços em giz, INRI, JHS, Paz e Fraternidade. Parece uma provocação.

Mas os jovens sombrios estão bebendo e bocejando. Um ou outro se arrisca a ir urinar nos canteiros da igreja. Afinal estão em território livre, mais internacional impossível, aqui a filial da empresa vaticano, cultos catárticos em latim.

Até as blasfêmias estão fora de moda, nada original desde os arroubos byronianos. Sigo para a esquina. Do outro lado, um posto, uma loja de conveniências. Talvez seja conveniente... rapazes deitam mocinhas sobre os capôs dos carros. O lugar é hostil. Todos parecem ser. Desprezado, eu desprezo.

Na área comercial, sob as marquises do Mercado, vejo um grupo compartilhando uma garrafa de conhaque. Ironizam as festas dos cristãos. Um deles se aproxima e pede fogo. Lamento não poder ajuda-lo. Ele resmunga. Traz no olhar paisagens de um vasto cemitério.

- “Embriagai-vos”!

Mas ninguém demonstra conhecer Baudelaire. Até por que nem me concedem atenção. Olham com cobiça a mocinha que passa abraçada ao mocinho de jeans rasgado.

Os caras não respondem. Desconfiam de mim. Como sabem? Procuro ficar à vontade. Pretendo demonstrar meus conhecimentos etílicos, minha enciclopédia musical, procuro mostrar que sou da turma, conheço o underground. Grito até umas blasfêmias. Versos de Dante.

- O cara é profano. Profano! É dos nossos.

Arrisca um do grupo, mais amistoso. Estende o conhaque, enxugando os lábios com as costas da mão. Aquele que pedira um fósforo exibe um arroto formidável.

- Aí, podreira, o cara!

E assim fugimos juntos, sob os portais, cristos e amuletos, entre as vozes entoando John Lennon e as sirenes da polícia.


Set/05


Leonardo de Magalhaens

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

O NATAL A COCA-COLA COMPROU




O NATAL A COCA-COLA COMPROU

O Natal a Coca-Cola comprou
A Páscoa a Nestlé dominou
O Carnaval a Globo registrou!

Tudo está à venda!
(Estes versos estão à venda)

Todas as emoções à venda!
Papai e mamãe estão à venda!
(A família exposta na vitrina)

A felicidade em suave prestações!
Sua realização pessoal à crédito!
Todas as festas e feriados à venda!

Tudo está à venda!
(Estes versos estão à venda)

À venda todas as promessas de felicidade
Compre sua fé nos sites da Internet
Compre sua paz nas promoções midiáticas
Compre sua liberdade com cheque pré-datado!

A propaganda do novo evangelho,
A auto-ajuda para toda a baixa-estima,
A redenção de toda a ineficiência crônica,
Tudo à venda!

O Guia, o Fuehrer, o Pai dos Pobres,
O Messias dos programas de auditório!

Tudo à venda!
Até este poema!


Dez/08


Leonardo de Magalhaens
também na contraantologia PORTUGUESIA, p. 299

sábado, 19 de dezembro de 2009

conto fruto dos excessos de leituras de best-sellers...





EXCESSO DE LEITURA DOS BEST-SELLERS DO MÊS


Dedicado a Dan Brown


Lembro de fatos relacionados à minha visita ao Louvre, sim, o Museu
do Louvre
, em Paris, sob a sombra da polêmica Pirâmide de vidro,
quando permiti (e até incentivei ) Elisa a fotografar-me junto as
famosas peças da arte arquitetônica francesa, com acentos renascentistas
ou traços modernos (ou pós-modernos, como é o caso da própria
Pirâmide), num entardecer de brumas.

(Em Roma, nos domínios do Vaticano, eis que estou numa missa de
Corpus Christi e perplexo diante da adoração, do fascínio destes
sacerdotes diante de uma imagem – uma estátua! – de um corpo morto.
Coroa de espinhos e filetes de sangue.)

Procuramos ângulos inusitados. A câmera em busca de posições
panorâmicas. Agachado sob as arcadas, ou apontando para a Pirâmide
de vidro,ou focando a entrada do Louvre, imagens são coletadas para
um futuro. Um casal reclinado em sua comodidade, admirando a saúde
e os sorrisos das viagens na juventude. Depois permitimo-nos passear ao
longo das paredes de vidro da Pirâmide, notando lá embaixo, os corredores
e as paredes exibindo as coleções das mais valiosas pinturas do mundo.

(Roma – proclamando minha perplexidade, consigo votos de apoio. A
praça de São Pedro é sacudida por ondas humanas. Adorem o Deus-Vivo,
eu grito. Esqueçam o Deus-Menino, o Deus-Sacrificado! Ninguém se
interessa por um Deus de vitórias? Sou agora acusado, diante dos pilares
do templo e sob a sagrada sombra da Basílica, de ser um perturbador, ou
mais, um herege. Aquele a corromper os fiéis, a desviar o rebanho!
Esclareço que não me agradam as acusações de iconoclasta, ou pagão,
ou luterano. Alegam, com lentas palavras de fria intolerância, que o Deus
é aquele que se sacrificou pelos homens, vis pecadores. Eu lembro que
Deus é um Deus de Poder, de Glória, não um Deus-Homem-Morto,
sangrando até os dias atuais.)

Sob os arcos, sob a meia-luz do anoitecer parisiense, fotografar um
prédio, com tão vastos detalhes, exige uma dose de profissionalismo
que, infelizmente, nos falta. Aqui, onde o passado e o presente se
encontram,onde contornos floreados se encontram lado a lado com
fibras sintéticas... ah, perdoem-me minha ignorância quanto a detalhes
arquitetônicos...

(Autoridade eclesiásticas, em vestes escarlates, prenunciando o sangue,
olham-me de suas culminâncias com retinas piedosas. Sou obrigado a
novas explicações. Abatem-me sujas imprecações e vazias acusações.
É inútil apresentar claramente minhas idéias, um tanto embaralhadas
após semanas num antro escuro, a pão, bolachas e água morna. Ouço,
às minhas costas (minhas doloridas costas!) as vozes blasfemas de muitos
que se auto-apregoavam meus companheiros. Trata-se de uma armadilha.
Vozes amigas. Vozes inimigas. Traição e perfídia! Torturam-me a alma
além do corpo. Sangram-me a dignidade além dos ossos moídos.
Torturam-me. Sou condenado. Olhos anseiam pelo crepitar das labaredas.)

Abraço Elisa, depois de incluí-la em outras fotos (encontramos um italiano
muito gentil), tendo, ao fundo, a Pirâmide. Abraçados, sorrimos e nos
entregamos à noite.


Abr/06

(Revisado: jun/06)


Por
Leonardo de Magalhaens

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

sobre PETER PAN (ensaio)





sobre “Peter Pan” (ou “Peter and Wendy”, 1911)
do autor escocês Sir James M Barrie (1860-1937)


A Literatura enquanto Fantasia

Parte 3 – Peter Pan


Nas partes anteriores, foi discutido a Fantasia e o
Maravilhoso em “Alice no País das Maravilhas”, quando
fenômeno aceito sem hesitações, como algo 'natural',
também a Fantasia enquanto a realização (ou satisfação)
de um desejo de posse de algo que as personagens
possuem e nem sabem disso, na leitura de “Mágico de
Oz”. Em “Peter Pan” pode se encontrar o desejo de algo
fora, uma vontade acima do dever, a busca de outro (tal
qual na 'fantasia sexual', em busca de um Objeto de
satisfação). Assim é, pois o menino Peter, ou Peter Pan,
tem o arraigado desejo de não crescer, uma vontade
férrea de ser sempre criança.

Ser criança, conservar a infância, não ficar adulto, não
envelhecer. Fisicamente em florescência. Mas, principal-
mente, não ter responsabilidades, não entrar no 'mundo
adulto', não ser 'domesticado'. Uma criança enquanto
ser de impulsos, fartura de energia, olhar de curiosidade,
vontade de potência, egocentrismo inocente, pedantismo
ingênuo.

Ou criança para viver num mundo imaginado, re-criado
ao gosto e (in)conviniência, dado de antemão em sonhos
(e pesadelos), re-estruturado em palavras de contos e
recontos, e pronta para viajar (sim, voando!) para este
mundo imaginado. Um mundo ao qual somente as crianças,
curiosas, inventivas, inocentes, ingênuas, de pensamento
leve, enfim, raríssimas, têm acesso.

A recusa em crescer para continuar vivendo num mundo
de fantasias, eis o resumo de “Peter Pan” O menino que
vive entre fadas, sereias, índios, piratas, numa tal “Terra
do Nunca” (Neverland), feita dos sonhos (e pesadelos) de
todas as crianças. Um mundo feito dos retalhos das
imagens produzidas pelas mentes infantis adormecidas
quando acabam de ouvir 'contos de fadas'.

Não querer crescer? Eis um árduo conflito a permear as
crianças e adultos. Deixar um mundo de potencialidades,
de 'caminhos possíveis', para tornar-se um ser de caminhos
traçados, de responsabilidades e compromissos, de seguir
datas marcadas, etapa por etapa. Quem não consegue,
é reprovado, é marginalizado, é aprisionado, é exilado. E
a criança se rebela: não serei adulto!

Assim é o menino egocêntrico e convencido, o Peter Pan
que aparece (finalmente) para a menina Wendy Darling
e os irmãos John e Miguel, que adormecem ouvindo os
bons e velhos 'contos de fadas', acreditando e esperando,
conservando assim o mundo das fantasias, a “Terra do
Nunca”. Peter logo seduz todos (e primeiramente Wendy)
com planos de voar para a ilha dos sonhos.

Tendo o livro nascido de uma peça teatral (com estreia
em 1904), o aspecto cênico, ou descritivo, é muito mais
evidente. As cenas são ágeis, plenas de imagens e
símbolos que alegram qualquer criança atenta. O desejo
de voar, de chegar a um lugar onde as crianças imperam,
onde têm uma liberdade sem disciplina (nem ordens de
adultos), tudo isso é muito sedutor para qualquer coração
infantil. E o Autor Barrie soube bem narrar esta fábula,
ora na perspectiva das crianças, ora apoiando os adultos
(principalmente os pais das três crianças Darling).

O narrador vez ou outra adentra a narrativa com
digressões com britânica ironia, como por exemplo, ao
descrever a mente infantil

I don't know whether you have ever seen a map of a person's mind.
Doctors sometimes draw maps of other parts of you, and your own map can
become intensely interesting, but catch them trying to draw a map of a
child's mind, which is not only confused, but keeps going round all
the time. There are zigzag lines on it, just like your temperature on a
card, and these are probably roads in the island, for the Neverland is
always more or less an island, with astonishing splashes of colour here
and there, and coral reefs and rakish-looking craft in the offing, and
savages and lonely lairs, and gnomes who are mostly tailors, and caves
through which a river runs, and princes with six elder brothers, and a
hut fast going to decay, and one very small old lady with a hooked nose.
It would be an easy map if that were all, but there is also first day
at school, religion, fathers, the round pond, needle-work, murders,
hangings, verbs that take the dative, chocolate pudding day, getting
into braces, say ninety-nine, three-pence for pulling out your tooth
yourself, and so on, and either these are part of the island or they are
another map showing through, and it is all rather confusing, especially
as nothing will stand still. (p. 5)
fonte: http://www.gutenberg.org/catalog/world/readfile?fk_files=785840&pageno=5
“Não sei se você já viu o mapa da mente de uma pessoa. Os médicos, às vezes, desenham mapas de outras partes suas, e seu próprio mapa pode ser realmente interessante, mas tente surpreendê-los tentando desenhar um mapa da mente de uma criança! Que não apens é confusa, mas também fica girando o tempo todo. Cheia de linhas em zigue-zague, parece mais aquelas linhas de temperarura, e talvez sejam as estradas da ilha, pois a Terra do Nunca é sempre mais ou menos um ilha, com incríveis manchas de cores aqui e ali, e recifes de corais e velhos navios costeando, com selvagens e covis solitários, e gnomos que muitas vezes são alfaiates, e cavernas onde os rios correm, e príncipes com seis irmãos mais velhos, e uma cabana que vai desabando, uma velhota com nariz em forma de gancho.
Seria até um mapa fácil se fosse só isto, mas há também o primeiro dia na escola, religião, os pais, uma piscina, alguns bordados, crimes, forcas, verbos que usam o dativo, os transitivos indiretos, o dia do pudim de chocolate, armação nos dentes, um 'diga-noventa-e-nove' do médico, aquela moedinha para deixar o dente, e por aí vai, e todas estas coisas são parte da ilha ou estão em algum mapa a indicar, e é tudo um tanto complicado, ainda mais porque nada fica sossegado.” (trad. LdeM)

É realmente difícil resistir ao charme prepotente de Peter
Pan que leva tudo na esportiva, sempre sorrindo e
achando tudo muito engraçado! É uma espécie de
diabinho zombeteiro, que nem percebe que 'fazendo
graça' pode estar prejudicando alguém... O narrador deixa
claro que a narrativa não é uma ode louvatória ao
protagonista (ou um dos, afinal o título original é
duplo, “Peter and Wendy”), que tudo giram em torno
dos desejos infantis, e ninguém mais 'infantil' (com sua
personalidade arrogante e egocêntrica) que o tal menino
que se recusa a crescer.

It is humiliating to have to confess that this conceit of Peter was
one of his most fascinating qualities. To put it with brutal
frankness,there never was a cockier boy.
(p.18)

É humilhante ter que confessar que este caráter de Peter era uma
de suas mais fascinantes qulidades. A falar com franqueza, nunca
houve um menino mais convencido.

Os irmãos Darling (e principalmente Wendy) fazem tudo
para agradar o menino brincalhão e mandão, naquela
jornada avoada rumo a Terra-do-Nunca. Lá estão as mil
aventuras escutadas, esperadas, sonhadas, adormecidas,
com fadas, sereias, índios e piratas. Todos num ciclo de
mitos e fábulas que as crianças conhecem muitíssimo
bem! Lá estão os “Meninos Perdidos”(Lost Boys), as
crianças que cairam da cama (ou fugiram de casa) e
vivem na ilha das fantasias infantis, e vivem saudosos
de um bom carinho de mãe (tanto que Wendy vai se
tornar a 'mãezinha' de todos eles...) a lutarem contra
os perigosos piratas, comandados pelo pior de todos
os bucaneiros, o Capitão James Gancho (Hook) - assim
chamado por usar um gancho superafiado no lugar da
mão direita ( cortada por Peter e dada a um medonho
crocodilo, a perserguir, então, em contínuo tic-tac de
relógio, o chefe pirata).

E para que tudo exista, tudo continue a existir, no rodízio
perpétuo de fadas, gnomos, sereias, índios, piratas, é
preciso que as crianças sempre acreditem em fadas, em
fantasias, em outros mundos possíveis.

"No. You see children know such a lot now, they soon don't believe in
fairies, and every time a child says, 'I don't believe in fairies,'
there is a fairy somewhere that falls down dead." (p. 20)

“Não. Você sabe, as crianças sabem um monte de coisas, e logo não
acreditam em fadas, e toda vez em que uma criança diz: não acredito
em fadas! Então em algum lugar uma fada morre.”

O próprio voar livre precisa de crença em fadas, pó de
fadas, além de 'pensamentos amáveis', que sejam assim
leves, airosos; “Você precisa de maravilhosos pensamentos
amáveis
”, Peter explicou, “e eles vão te fazer levitar”
("You just think lovely wonderful thoughts
," Peter explained,
"and they lift you up in the air.",p. 25)
Não poderia ser mais imagética a descrição da Terra do
Nunca (Neverland), a ilha nascida da imaginação infantil,
com sua coleção de mitológicas personagens a dependerem –
para continuarem existindo! - da crença das crianças. Um
'real' imaginário a precisar de um 'imaginário' faz de conta
(make-believe). Os seres fantásticos espelham (sendo 'pro-
jeções') dos anseios infantis, com identidades desejadas,
tanto benévolas quanto perversas. (E até as fadas podem
ser más, ciumentas, como Sininho, a tilintar de ciúmes
quando Peter dá atenção a menina Wendy...) e não sabe s
er mais ou menos boa ou mais ou menos má, mas sendo
boazinha ou perversa por completo.

Aqui não será abordado o enredo (não privaremos
ninguém do prazer da leitura!) mas apenas apontar a
importância da simbologia da Obra, que influenciou
literatos e também psicólogos, pedagógos, que depois
criaram os conceitos de 'síndrome de Peter Pan' ou
'síndrome de Wendy', onde a primeira consiste no recusar-
se a crescer (puer aeternus), ser responsável e indepen-
dente, permanecendo 'socialmente imaturo', e a segunda,
caracterizada pela vontade de apoiar e proteger o outro,
fazer tudo para agradar, ser uma 'mãe e tanto'. Esta
dicotomia Peter e Wendy dá tanto enredo quanto um
encontro entre Sade e Masoch. Desde que as crianças
se retirem da sala.


Nov/09

Leonardo de Magalhaens
http://leoliteratura.zip.net/

sábado, 12 de dezembro de 2009

sobre 500 days of summer (movie)






Sobre o filme “500 days of summer” (USA, 2009)
do diretor Marc Webb

Quando o amor não passa de promessas quebradas

Raramente escrevo crítica sobre filmes, devido ao
pouco conhecimento desta arte visual e sonora. As
únicas críticas que escrevi sobre filmes foram sobre
Hannibal” (e “O Silêncio dos Inocentes”) em 2004,
e sobre “V de Vingança”, em 2006, ambas considerando
o enredo, digo a Narrativa. Afinal, é o que os filmes e
a literatura têm em comum: a Narrativa.

No mais, raramente adentro cinemas. Recebi um
convite, e não podendo negar, sentei-me diante da
telona. Uma dita comédia romântica, ao estilo norte-
americano, com um casal em encontros e desencontros.

Ao assistir o movie, cenas do meu romance (o vivido
e o escrito) vieram-me à mente. (Se eu lançar o meu
romance agora, algum crítico desavisado acusaria
este autor de audacioso plágio...
) Coincidências?
A trilha sonora incrivelmente assemelhada. As baladas
românticas que certamente inspiraram pérolas do rock
estrangeiro e nacional. Uma soundtrack que complementa
a narrativa e demonstra a atmosfera, as entranhas
emocionais dos protagonistas (principalmente do
‘mocinho’). Em pesquisa posterior, descubro que o
diretor é produtor de videoclips, sendo um expert em
música pop. Está explicado.

Realmente, trata-se de desencontros, abismos entre o
esperado e o acontecido (ou a ‘realidade’ e as
‘expectativas’, exibidos em planos paralelos na tela),
uma narrativa contrapondo o ‘estilo romântico’ dele e
o ‘estilo casual’ dela. Ele quer a ‘única’, a ‘certa’, a
‘mulher da vida dele’. Enquanto ela desacredita, e os
demais figurantes vivem ao estilo ‘divertindo-se com
as erradas enquanto não aparece a certa’.

Todos insistem que se ela não quer, então a ‘fila
deve andar’, como se os relacionamentos fossem
mesmo ‘sintomas passageiros’ ou ‘diversões descartáveis’.
Acabou o ‘tesão’ acabou o ‘falling in love’. É um estilo
cínico de narrar uma ‘comédia romântica’ (pelo menos
do modo como este rótulo ressoa...) pois não pode-se
levar à sério os protagonistas (ele: idealista X ela:
pragmática), pois o Narrador (pois há um Narrador!)
descreve as existência como um exímio anti-romântico.
(Ironiza mesmo as ‘expectativas’ do mocinho”)

A trilha sonora emoldura os aspirações e conflitos: amar
é agüentar os caprichos (ou idiossincrasias) do Outro.
É sair do Eu por um momentinho e deixar a porta aberta.
A começar pela banda preferida: ele ouvi um clássico
dos The Smiths no elevador, e ela adora, deixa-se a
cantarolar, e ele nem acredita. ( É a bela canção “There is
a light that never goes out
”)

And if a double-decker bus
Crashes into us
To die by your side
Is such a heavenly way to die

E se um ônibus de dois andares / nos esmagar
Morrer ao teu lado / será um maneira divina de morrer

Vejam a tradução completa em
http://leolyricstraduzidas.blogspot.com/

Ele, que ainda hesitava, se entrega ao que considera
um ‘chamado do destino’. Não sabe o que são
coincidências (aprenderá talvez...), e se a mocinha
adora Smiths e ele também: eis a fatalidade a unir
os corações! O esforço dele será conquistar a mocinha,
e saber se pode embarcar num relacionamento que
seja duradouro (veremos que vai durar quase 500 dias...)

Fábulas românticas à parte (pois o filme vem desconstruir
justamente este romantismo), a vida do mocinho não é
muito, digamos, marcada por qualquer ‘plenitude’. Ele
adora arquitetura, estudou arquitetura, mas vive num
emprego de escritor de frases para cartões. Cartões de
aniversário, de amizade, de namoro, de amor, de
condolências, de Natal, etc. Cria frases que as pessoas
não tem coragem de dizer às outras. Ele mesmo diz isto,
num desabafo diante do chefe e dos colegas – e se demite.

É então que ele começa a viver: ressuscita o desejo de
ser arquiteto (a real vocação) e vai procurar um emprego.
Há reencontros que são piores que a separação: promessas
de reconciliação que acabam magoando mais... Ela se
casou (ela que nem queria ser namorada de alguém...!)
e ele fica a pensar: o que foi que eu errei?

(Aqui há uma diferença básica quanto ao meu romance,
mo qual nada se resolve. A mocinha não casa, o mocinho
não se recupera. As solidões à dois voltam a ser solidões
solitárias mesmo
. ) O diretor deveria então contar porque
o casamento deu certo... Mas é que o diretor não deseja
epílogos tão pessimistas: as coisas são meras peças
de um jogo de coincidências e vão se repetir com
variações mínimas: só que agora a ‘menina dos olhos’
chama-se “Autumn” (Outono) e não “Summer” (Verão).

dez/09


Leonardo de Magalhaens


Um trailler do movie in
http://www.youtube.com/watch?v=PsD0NpFSADM

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

sobre O Mágico de Oz (L. Frank Baum)





sobre O Mágico de Oz (The Wonderful Wizard of Oz, 1900)
do norte-americano L. Frank Baum (1856-1919)


A Literatura enquanto Fantasia e Non-sense

p1 – Alice no País das Maravilhas
p2 – O Mágico de Oz
p3 – Peter Pan


Parte 2


É impressionante que as pessoas atualmente fiquem
deslumbradas com as aventuras mirabolantes do bruxinho
'gente-boa' Harry Porter, ou as aparições (ou não) da terrível
Bluxa de Blair, ou os vampiros juvenis da série Crepúsculo, e
ao mesmo temo esqueçam as fontes de onde transbordaram
estas literaturas de fantasia.

Derivadas do mundo dos sonhos (ou dos pesadelos) as Fantasias
derivam do universo das fábulas, desde a aurora da literatura oral
(aquela narrada de uma geração a outra) e sofreram metamorfoses
com as estórias de suspense e de terror, ou os contos de pseudo-
ciência (ou Ficção Científica, como queiram), usando o mesmo
método e suporte textual: as imagens oníricas.

Os sonhos nada mais são do que desejos. Aceitos ou reprimidos.
O que desejamos ser ou algo que desejamos esconder. Assim
nunca contentes com o que (ou quem!) somos, sempre desejosos
de algo mais, algo diverso. Um mundo outro onde as aspirações
possam se concretizar. Assim a literatura de Fantasia tem o seu
lugar: as nossas projeções e os nossos recalques.

Vivendo das imagens mitológicas do terror e da fantasia, a narrativa
fantástica espera um leitor que leve a estória a um outro nivel de
'verossimilhança': 'esqueça tudo o que você já viu – você vai
conhecer um mundo novo'. Assim, a protagonista cai num buraco e,
pronto!, está num outro-mundo! Ou a casa é levada na ventania,
ou um duende invade o seu quarto – e eis a maravilha: a
personagem transportada para 'outra' realidade.

A perder toda noção de 'real' e 'imaginário', nos jogos textuais
de 'alteridade' (o outro possível que não somos), ou cópias
personificadas do desejo (quem quer voar não admiraria quem
pode voar?) nos seres humanos ou pseudo-humanos (ou quase
humanos) ou ainda zoomórficos (animais que falam, por exemplo)
povoando a nova experiência existencial: a protagonista continua
a ser ela mesma?

De repente, Dorothy, a menininha de “O Mágico de Oz” (1900),
do norte-americano L. Frank Baum, está em seu mundo, lá no
árido Kansas, e no momento seguinte não está! Um ciclone
chega rodopiando e eis que leva a casa até às nuvens! Quando
aterrisa – a casa inteira! - a menina descobre sua localização
num outro mundo – o dos Mortos? De início pode-se até imaginar...
Mas chegam algumas personagens: os Michkins, baixos e
barbudos, com suas roupas azuis, além da Bruxa Boa do
Norte, a agradecer a proeza de Dorothy – ao exterminar a
Bruxa Má do Leste. Que Bruxa Má do Leste?, a menina quer
saber. E eis que ali os sapatos prateados: é que a casa caiu
justamente sobre a tal bruxa malvada!

Dorothy chegou assim num mundo alternado (ou paralelo) ao
Kansas, ao século 19 (ou 20), onde precisa se havitar com o
fenômeno do 'encantamento' (afinal, ela é mais uma das
vítimas do 'desencantamento do mundo'...) A conversa –
cheia de lacunas e lapsos surreais – entre a Dorothy e a
Bruxa Boa do Norte evidenciam esse 'desencantamento
do mundo':

The Witch of the North seemed to think for a time, with her
head bowed and her eyes upon the ground. Then she looked up and
said, "I do not know where Kansas is, for I have never heard that
country mentioned before. But tell me, is it a civilized country?"

"Oh, yes," replied Dorothy.

"Then that accounts for it. In the civilized countries I
believe there are no witches left, nor wizards, nor sorceresses,
nor magicians. But, you see, the Land of Oz has never been
civilized, for we are cut off from all the rest of the world.
Therefore we still have witches and wizards amongst us."

“A Bruxa do Norte ficou pensativa por um momento, com a cabeça
meio inclinada e os olhos fitando o chão. Depois olhou para cima
e disse, 'Não sei onde fica o Kansas, pois nunca ouvi falar deste
país antes. Mas, diga-me, é um país civilizado?

“Ó, sim!

“Então é por isso! Nos países civilizados eu creio que não há mais
bruxas, nem magos, nem feiticeiros, nem mágicos. Mas, eu acho que
a Terra de Oz nunca foi civilizada, pois estamos separados do resto
do mundo. Assim, nós ainda temos bruxas e magos entre nós.”

(trad. LdeM)

A primeira preocupação de Dorothy é voltar para casa.
Mesmo que curiosa quanto aquele mundo estranho, a
menina não vai jamais desistir do retorno para a aridez
do Kansas, lá onde está o mundo tal como ela conhece,
Não há um lugar igual a nossa casa!” (“There is no
place like home!
”) Verdadeiro lema que ela ostenta
durante toda a jornada, seguindo a Estrada de ladrilhos
dourados, rumo a Cidade das Esmeraldas, onde está
o grande e poderoso Mágico de Oz.

Nesta jornada – cheia de perigos para uma menininha de
ingenuidade rural, centro-norte-americana – Dorothy vai
encontrar outras criaturas em busca de algo mais,
ansiosas por algo que julgam não ter, sempre
confiantes no poder do Grande Oz em satisfazer seus
desejos. (A figura do Mágico de Oz é uma figura do
Grande Pai, o grande provedor, que está na base dos
sentimentos que nutrimos por um Ente Supremo, que
a religião denomina “Deus”)

O Espantalho quer um cérebro para preencher sua
cabeça cheia de palha (por mais que ele prove, para si
mesmo e para os outros, que tem boas ideias), enquanto
o Lenhador de Lata deseja um coração (por mais que
ele prove ter bons sentimentos e muita determinação).
Já o Leão Covarde quer um pouco de Coragem, para
abafar o seu medo (como se os outros não sentissem
medo, e como se ele não demonstrasse, em tantas
ocasiões, uma coragem providencial), como uma coroa
em sua cabeça de Rei dos Animais.

Nenhum dos viajantes está contente consigo mesmo –
querem algo que julgam não possuir. Somente a Posse
de algo externo poderá satisfazê-los. A cada estágio
da jornada, cada um apresenta (e atua com) o melhor
de si-mesmos, suas habilidades e potencialidades, e
acabam por superar os obstáculos. Mas não percebem,
e precisam da figura do Grande Oz para evidenciar
estas conquistas. (Que não depende da Mágica, mas do
esforço de cada um.)

As aventuras são aquelas das fábulas, com duendes
e flores gigantescas, árvores que movem os galhos,
macacos alados, etc, e cada criança (e também cada
adulto) encontra ali as suas fantasias e sonhos (como
bem retrata o filme de 1939, com Judy Garland, cheio
de inocência e encanto infantil) numa projeção de
personagens ora boas ora malvadas, dependendo de
seus interesses. Ainda bem que no Mundo de Oz há
um equilíbrio. Existem duas bruxas boas (a do Norte
e a do Sul) e duas bruxas malvadas (a do Leste e a do
Oeste), enquanto o Grande Oz busca garantir a sua
hegemonia. (Ele precisa parecer sempre Muito Poderoso
ou ao menos Mais Poderoso que as Bruxas)

Mas no fim de tantas peripécias (as quais não descreverei
para não matar o prazer da leitura) encontram este
Grande Oz que também tem lá suas limitações (tanto
que exige que Dorothy e os amigos destruam a Bruxa
Malvada do Oeste – missão que a menina cumpre
apesar de tudo), a ponto de ser 'desmascarado' como
um impostor! Atrás das cortinas a um velhinho
manipulando o cenário! E ele é do país de Dorothy (de
Omaha, Nebraska, em interessante 'preâmbulo' da
fama deste nome, pois quando da invasão da Normandia,
no “Dia D”, 6 de junho de 1944, a praia onde os norte-
americanos mais sofreram baixas chamava-se, em
código, justamente Omaha!) e deseja voltar para o
seu lar.

O ex-Grande Oz ainda consegue modos criativos (como
mau mágico que ele é”) para agradar aos amigos de
Dorothy, que percebem que já possuem dentro deles
mesmos o que tanto procuram fora! Ao Espantalho, o
mágico presenteia um cérebro de farelo, cheio de
alfinetes e agulhas. O Lenhador de Lata recebe um
coração estufado com serragem envolto em fina seda.
Já o Leão Covarde (que mostrou muito bem não ser
nada covarde!) ganha uma beberragem qualquer,
quando o mágico diz que a coragem deve estar dentro
dele! Assim o ex-Grande Oz entrega a cada um o que
eles julgavam necessitar – mas e como vai solucionar
o problema da menina Dorothy?

Se eles chegaram voando, também poderão regressar
ao cruzarem os ares! E o mágico constrói um balão,
com a ajuda de Dorothy, para que possam voltar para
o mundo do Centro-Oeste norte-americano. Mas, no
último momento, Dorothy não alcança o balão – e
este, carregando o solitário mágico, desaparece meio
às nuvens! Quem poderá então ajudar a pobre Dorothy?

A menina segue em nova peregrinação, exposta àos
novos perigos e desafios, mas ainda esperançosa, rumo
a Bruxa Boa do Sul, da terra dos Quadlings, os baixos
e gorduchos, que se vestem de tons rubros. A Bruxa
Boa, chamada Glinda, quando finalmente recepciona
os recém-chegados, fica realmente admirada! A menina
quer voltar para casa? Mas, vejam só, ela usa os
sapatos prateados, que são mágicos! E qual o poder
deles? Levar você para onde você quiser! Até para o
tal Kansas! Ora, ora! E Dorothy tinha ao alcance da
mão (ou dos pés...) o poder de voltar para casa e
não sabia!

Mas se Dorothy soubesse do poder dos sapatos prateados,
ela teria voltado logo no capítulo dois, e o Espantalho
continuaria o inteligente sem cérebro, o Lenhador, o
bondoso sem coração, e o Leão, o covarde mais
corajoso que já existiu! – e não haveria a narrativa, o
livro “The Wonderful Wizard of Oz” de um autor chamado
L. FrankBaum, que todos os leitores admiram e guardam
como uma parte admirável de seus sonhos de crianças (e
quiçá de toda a vida!)

Wizard of Oz – original
in
http://publicliterature.org/books/wizard_of_oz/xad.php

e tb. Edição ilustrada
em
http://www.archive.org/stream/wonderfulwizardo00baumiala#page/n0/mode/2up

sobre o filme Mágico de Oz (1939) em
http://pt.wikipedia.org/wiki/The_Wizard_of_Oz_%281939)


nov/09

por Leonardo de Magalhaens

domingo, 6 de dezembro de 2009

45 Mercy Street / Anne Sexton





ANNE SEXTON


45 MERCY STREET

Rua Piedade, n. 45


Em meu sonho,
furando dentro da medula
de todo o meu osso,
meu sonho real,
eu perambulava pela Beacon Hill
procurando uma placa de rua –
chamada Mercy Street.
Não era lá.

Eu tentei a Back Bay.
Não era lá.
Não era lá.
E ainda sabia o número.
Rua Mercy, 45.
Eu conhecia a janela de vidro manchado
da sala-de-estar,
os três níveis da casa
com os andares de pisos de madeira.
Eu conhecia os móveis e
a mãe, a avó, a bisavó,
os criados.
Eu conhecia o armário de Spode
o barco de gelo, a prata sólida,
onde a manteiga repousa em asseados tabuleiros
iguais a estranhos dentes de gigante
em uma grande mesa de mogno.
Eu conhecia bem.
Não era lá.

Para onde você foi?
Rua Mercy, 45,
com a bisavó
ajoelhada em seu corpete de osso-de-baleia
e rezando gentilmente mas fervorosamente
para lavar bacias,
às cinco da manhã
ao meio-dia
cochilando em sua cadeira-de-balanço,
o avô tirando um cochilo na copa,
a avó empurrando a sineta para a criada escada abaixo,
e Nana balançando Mãe com uma flor exagerada
em sua testa a cobrir os cachos (do cabelo)
de quando ela era boa e quando ela era...
E onde ela foi gerada e numa geração
o(a) terceiro(a) que ela vai gerar,
eu,
com a semente do estranho florescendo
numa flor chamada Horrenda.

Eu caminho num vestido amarelo
e um livro de bolso branco estufado com cigarros,
bastante pílulas, minha carteira, minhas chaves,
e sendo vinte e oito, ou era quarenta e cinco?
Eu ando. Eu ando.
Eu seguro fósforos nas placas da rua
até escurecer,
tão escuro quanto os mortos rijos
e eu tenho perdido meu Ford verde,
minha casa nos subúrbios,
duas pequenas crianças
sugadas como pólen pela abelha em mim
e um marido
que tem enxugado seus olhos
de forma a não me ver às avessas
e vou caminhando e procurando
e não é um sonho
apenas minha vida oleosa
onde as pessoas são álibis
e a rua é infindável para uma
vida inteira.

Derrubar as sombras –
não me importo!
tranque a porta, piedade,
apague o número,
arranque a placa da rua,
o que pode interessar,
o que pode interessa para este patim barato
quem deseja possuir o passado
que foi embora num barco morto
e deixou-me apenas com um papel?

Não era lá.

Eu abri meu livro de bolso,
como ma mulher faz,
e fisguei pra lá e pra cá
entre os dólares e o batom.
E retirei, um a um
e atirei todos nas placas da rua,
e atirei meu livro de bolso
no Charles River.
Em seguida descartei o sonho
e o joguei contra o muro de cimento
do mal-feito calendário
Eu vivo,
minha vida,
e arrastando cadernos de notas.

Anne Sexton

(trad. Livre by Leonardo de Magalhaens)


Original poem in

http://www.poemhunter.com/poem/45-mercy-street/

more about Anne Sexton
http://en.wikipedia.org/wiki/Anne_Sexton


para ouvir a Mercy Street de Peter Gabriel
http://www.youtube.com/watch?v=KN6mJH_0-KY
http://www.youtube.com/watch?v=5Y5KELHc0Hw&feature=related

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

leitura de Alice no País das Maravilhas




sobre a obra Alice no País das Maravilhas
(Alice's Adventures in Wonderland, 1865)
do inglês Lewis Carroll (Charles Dodgson, 1832-98)

A Literatura enquanto Fantasia e Non-sense

Parte 1 – Alice no País das Maravilhas
Parte 2 – O Mágico de Oz
Parte 3 – Peter Pan

Parte 1

Uma das mais fascinantes experiências é a de compartilhar o olhar infantil. Como uma criança vê o mundo, como apreende os dados da nossa 'realidade' social, política, histórica, ao conquistar uma base linguística, desenvolver a audição e a fala (pois para se falar bem é preciso ouvir bem...) e tornar-se mais um(a) cidadã(o), imerso em uma cultura/civilização.

Os impulsos mentais que a civilização reprime acabam por voltar, quase sempre, em conteúdos que a extravasam dos sonhos aos devaneios, às projeções de situações e locais e personagens que não existem, mas têm um 'potencial' de existência. Existência num mundo paralelo, acima ou abaixo da realidade. Assim, um Inferno ou um Paraíso, um Futuro ou um Universo Paralelo. O Mundo Subterrâneo ou a Terra Média (aquela do Tolkien). Em suma, um profundo situar-se que a repressão – 'príncipio da realidade' – não conseguiu destruir. É o domínio do 'princípio do prazer'.

Estando as crianças ainda no início do processo de 'adequação' (aquele denominado 'socialização'), ainda não suficientemente 'reprimidas', mantêm abertas as portas da imaginação, para mundos outros, realidades outras, dentro do âmbito do desejo e da realização pessoal. Ali não há lugar para normas, regras, sentidos, conveniências, estatutos, ordenamentos, leis físicas. Tudo é possível, e nada causa estranhamento. É o ambiente do snon-sense, com uma coerência toda peculiar. Um mundo a despertar a curiosidade a cada instante.

A criança precisa ser o tempo toda incentivada, caso contrário a atenção se dispersa, ou então o ânimo adormece, levando a um sonho cheio de aventuras, aquelas que a 'realidade' nega. Assim acontece com a pequena Alice que, entediada com o livro da irmã, vai adormecendo, adormecendo... até que vê um coelho branco. Não um coelho branco qualquer, mas um coelho branco a olhar o relógio (aqueles clássicos relógios ingleses!) a preocupar-se com um certo atraso! “I shall be too late!”

Sempre preocupado, ansioso e obsequioso, o Coelho Branco vai despertar a atenção da menina Alice, logo a perseguir a apressada criatura até o fundo de um longo túnel (onde ela cai em câmera lenta!), caindo no País das Maravilhas. Onde o que ela beber ou comer tem o poder se aumentar o diminuir o tamanho! Onde as criaturas falam e se comportam como humanos! Onde até as cartas de baralho têm vida e atuam numa estranha monarquia! (espaço ideal para algumas paródias da vida aristocrática britânica!)

Aumentando e diminuindo, aflita e perplexa, curiosa e agitada, a pequena Alice de repente encontra-se numa sala de portas minúsculas, ou chorando a perda de uma chave, encolhendo a ponto de quase afogar-se nas próprias lágrimas!, perseguindo o Coelho Branco até a casa deste, mas ela acaba crescendo tanto que fica 'entalada' e não pode sair. Mil aventuras para uma menina que antes morria de tédio no mundo dos adultos.

As estranhas metamorfoses e as estranhas criaturas fazem com que Alice comece a questionar quem é e o que acontece, como se sua 'identidade' somente agora fosse colocada em evidencia – para se esfumaçar com o sem-sentido (non sense) ao redor. Afinal, o que ela vivia no mundo adulto (lá na 'realidade') não faz sentido aqui no País das Maravilhas! Assim o encontro com a Lagarta, aquela a fumar um narguilé em cima de um cogumelo, meio dopada e meio enigmática, apresenta à Alice uma oportunidade de ainda dizer 'quem' ela é. Mas não é – agora – fácil responder a questão (antes tão simples!) proposta pela Lagarta, “Quem é você?” E enquanto Alice não se decidir (afinal o que ela é agora? Tão pequena quanto uma lagarta espichada sobre um chapéu de cogumelo!) a Lagarta não vai se importar muito com aquela presença de mini-criança.

“‘I—I hardly know, sir, just at present— at least I know who I was when I got up this morning, but I think I must have been changed several times since then.’

‘What do you mean by that?’ said the Caterpillar sternly. ‘Explain yourself!’
‘I can’t explain myself, I’m afraid, sir’ said Alice, ‘because I’m not myself, you see.’
“Difícil saber, senhora, pois agora – realmente eu sabia quem era hoje de manhã, mas acho que tenho mudado muito desde então.”

“O que quer dizer com isso?” disse a Lagarta, séria. “Explique-se”

“Receio que não possa me explicar, senhora” disse Alice, “pois não sou eu mesma, veja você!”


As dúvidas de Alice quanto a sua identidade mostram o início dos questionamentos infantis: quem sou eu? Onde vivo? Quem são meus pais? O que todo mundo espera de mim? O que devo responder? O que preciso fazer para ser aceito(a)? Quem devo obedecer? Qual o sentido do mundo? Qual o sentido da minha existência? E a Lagarta não é exatamente o ser mais adequado para responder! Até porque a própria Lagarta via passar pelo estágio de larva, antes de desabrochar como uma nova criatura – a borboleta.

Assim entra em cena uma figura que deseja achar uma 'moral' para tudo: a Duquesa. Que logo veremos a buscar agradar a menina Alice, em busca de aprovação. O que muito incomoda a protagonista, que fareja ali um pouco de oportunismo e bajulação. A Duquesa surge no mesmo estágio onde apresenta-se o gato do sorriso, a aparecer e desaparecer nos momentos mais convenientes e impróprios, sempre com um sorriso enigmático, pedindo uma decifração. O Gato de Cheshire é a esfinge-fantasia que se julga o louco a observar os outros loucos. (“ Somos todos malucos aqui. Sou sou maluco. Você é maluca.” pois “se não fosse maluca não teria vindo para cá”) O único que poderia indicar um caminho – caso Alice soubesse para onde vai.

Come, it’s pleased so far,’ thought Alice, and she went on. ‘Would you tell me, please, which way I ought to go from here?’
‘That depends a good deal on where you want to get to,’ said the Cat.
‘I don’t much care where—’ said Alice.
‘Then it doesn’t matter which way you go,’ said the Cat.
‘—so long as I get somewhere,’ Alice added as an explanation.
‘Oh, you’re sure to do that,’ said the Cat, ‘if you only walk long enough.’

“Chegue perto, poderia, por favor, dizer-me qual o caminho para sair daqui?
“Depende muito de para aonde você deseja ir”
“Eu não sei bem para aonde...
“Então não importa muito qual caminho você vai seguir.
“... desde que eu chegue a algum lugar.
“Ó, sim, esteja certa disso, você vai chegar desde que caminhe o bastante.”

Todos este diálogos são novidade para Alice, aquela que não encontrava ninguém interessante no 'mundo real', onde não passava se mais uma criança. Aqui – na Wonderland – ela é a única menina, a crescer e diminuir, a conhecer os seres mais estranhos, ainda mais os que surgem no capítulo seguinte, aquele da mesa de chá (Tea-Party). Lá estão o Chapeleiro Louco, a Lebre de Março e a Marmota Dorminhoca (Dormouse), numa mapla mesa, bebendo chá o tempo todo, trocando de lugar, para não precisar lavar a louça, e então pouco à vontade quando chega a menina Alice, que deseja um lugar à mesa. Ambas as partes não chegam a qualquer consenso e os diálogos que se seguem são obras-primas da falta-de-sentido, cheio de trocadilhos, paródias, enigmas matemáticos, 'pegadinhas' de professor de lógica (o que caracteriza bem o Autor, um matemático)

Aliás, os enigmas matemáticos e de lógica surgem aqui e acolá por todo o texto. Nada é gratuito. “Alice no País das Maravilhas” é uma obra de passagens secretas e senhas e contra-senhas, onde um leitor bem atento vai colher pérolas da invenção literária, não apenas de personagens e situações. Mesmo na falta-de-lógica existe uma 'lógica', mesmo para mostrar a incoerência há uma 'coerência'. Não trata-se de uma crítica gratuita, de uma 'carnavalização' do mundo adulto, mas de apresentar a 'visão da criança' diante do mundo adulto – que (olhando-se bem) é irracional e hipócrita.

Todas as 'reuniões sociais' são ironizadas em “Alice”, pois evidenciam como as 'máscaras sociais' se apresentam. A Rainha de Copas (the Queen of Hearts) é a figura principal no capítulo seguinte, onde os nobres são meras 'cartas de baralho' que andam e falam pomposamente, sem tolerar 'vozes dissonantes', senão os monarcas “mandam cortar as cabeças”, desfilando rumo a um bizarro jogo de croquet, onde os tacos são flamingos, as bolinhas são ouriços, e os arcos eram os soldados-cartas encurvados! (Alice pensa: “and then,’ thought she, ‘what would become of me? They’re dreadfully fond of beheading people here; the great wonder is, that there’s any one left alive!’”, traduzindo: 'E então', ela pensou, 'o que será de mim? Eles adoram mandar cortar as cabeças por aqui; o que é de se espantar é que ainda exista alguém vivo!”) Ou seja, quem não se adequa é logo excluído – por mero capricho do soberano!

Nesta cena outras personagens reaparecem (o tão servil Coelho Branco, a Duquesa pronta a bajular, o enigmático Gato de Cheshire, sempre sorridente) e outras surgem, o Grifo, figura esdrúxula e mitológica, a conduzir a Alice aos rochedo à beira-mar, onde está a Falsa Tartaruga, a lamentar a perda do passado e a relembrar a 'dança das lagostas', algo bem infantil (como lembrar as 'cirandas, cirandinhas' do mundo de outrora...), pois a Tartaruga sabe que o seu destino final é virar mesmo uma sopa! Tudo isso até a que a Majestade caprichosa dá um alarme: o roubo das tortas!

A cena seguinte é então uma paródia de uma cena que os anglo-saxões adoram – o tribunal. Ali estão a maioria das personagens para investigar (será mesmo?) e culpar/condenar (quem mesmo?) o autor do terrível furto – o abominável roubo dos bens dos soberanos! (Como se os monarcas não vivem no luxo e na luxúria justamente por roubar explorar o povo, que vive na miséria!) A crítica aqui está todo envolta em sutilezas, trocadilhos, quebra-cabeças, fantasias, atos absurdos, onde a ironia faz rir ao mostrar o quanto a vida pode ser sem-sentido! (o 'mundo do absurdo' que Kafka, Beckett e Ionesco logo mostrariam no século 20) Cada personagem mostra seu real caráter – ora bajulando, ora implorando por piedade, ora fingindo indiferença, etc – mas apenas Alice se espanta com o ridículo de tudo (aquele tribunal), com seu olhar de criança ainda não 'adaptada' (isto é, ainda não enquadrada no 'modus vivendi'...)

Um capricho do monarca é acatado como autoridade, assim como toda voz 'não-autorizada' é silenciada. Em todo tribunal só existem mesmo um (literalmente!) jogo de cartas marcadas! Tanto que o Rei já quer começar pelo Veredicto! - é o coelho Branco que precisa lembrar ao Monarca que antes se processa todo um ritual processual com testemunhas, promotoria, defesa, jurados, etc (Onde a autoridade compartilhada ou dada por concenso, como argumentam Rousseau e Hobbes?, mas sim uma imposição do Soberano, personificação da suposta Nobreza da Monarquia) É o depoimento de Alice – uma menina que não é daquele 'mundo' – que acaba por romper toda a tragi-comédia. Não somente por que ela não acredita na justiça do tribunal (que não passa de uma literal 'farsa') mas também porque ela novamente volta a crescer.

‘What do you know about this business?’ the King said to Alice.
‘Nothing,’ said Alice.
‘Nothing whatever?’ persisted the King.
‘Nothing whatever,’ said Alice.
‘That’s very important,’ the King said, turning to the jury.

“O que você sabe sobre o caso?
“Nada.
“Nada mesmo?
“Nada mesmo.
“Eis algo muito importante!”

É como se o fato de Alice não saber já fosse representativo – e incriminador. Culpada por não conhecer as regras... E o Rei logo inventa leis para justificar a exclusão da incômoda testemunha. Assim também uma suposta carta do réu – o Valete de Copas, acusado de roubar as tortas da Rainha de Copas – não escrita por ele (por mais que ele negue, apens se incrimina mais aos olhos dos monarcas...) mas usada como prova, não importa que 'sentido' isso faça (aliás, 'sentido' é o que o Leitor menos encontra aqui!)

Obviamente que o julgamento vira um 'castelo de cartas' a desabar, quando Alice se revolta com tanto non-sense e se levanta, já grandinha, meio ao tumulto das cartas. Alice então desperta – são apenas folhas que caem da árvore, sob a qual ela se deitou, no colo da irmã, ainda a ler um livro. Tudo não passou – então – de um sonho estranho? Que o leitor ouse então desvendar – e responder – a lógica ilógica do Autor neste País das Maravilhas.

Nov/09

Leonardo de Magalhaens

http://leoliteratura.zip.net