DECADÊNCIA
LdeM
Sim, o meu desejo por A. não se oculta. Mas sou discreto. Limito-me a observar (sinto estar levitando, contemplando-a). estamos numa casa de campo, uma festinha continua lá dentro. Aqui, na varanda, só os pirilampos. Ou os faróis de um carro que chega.
Conversamos sobre o tempo, o lugar,o cosmos, a noite. Ela atenta, possivelmente interessada (eu louco para agarra-la, mas hesitante). A. toda de preto, vestes sombrias, longos cabelos negros, pálida, espectral. Eu, não menos vampírico.
Não sei se a conversa ficou meio xarope, mas voltamos ao grupo reunido em poltronas, compartilhando taças de vinho. Entramos. Sinto-me cair das alturas, desperto de meu levitar. A luz mortiça, o ar pesado, a música melódica e opressiva, tudo nos recepciona. Ao redor continuam os flertes discretos, uma ou outra carícia ousada. Gestos lentos, lábios disformes. Ambiente ora rústico, ora high tech.
Murmúrios se diluem na massa juvenil. Alguém atira um sapato sobre a mesinha. Dois copos rolam e deixam uma mancha de cacos. Fragmentos rubros.
Comento que a festa está um tedium vitae, que aquilo tudo está valendo apenas um longo bocejo.
- Vou tirar a roupa.
Escandalizei alguém? Apenas o convidado ao lado. Mas continuo a olhar para a garota que estava comigo, lá na varanda. Sim, a linda A. E continuo a beber. Linda, ela. A A. Mas o jardim, digo, o cheiro do jardim, me atrai. Apenas para descobrir um casal entre as samambaias. Levo comigo uma taça de vinho. “Embriagai-vos!”um convidado surge ao meu lado (é aquele que ficou escandalizado com minha proposta de desnudamento). Lembro a decadência dos costumes. Ele diz que não há decadência alguma, que a humanidade foi sempre assim. Cita um filósofo francês (no original) e desliza as unhas pelo meu antebraço.
Não que eu desconfie das intenções do tal convidado, mas prefiro retornar ao aconchego do útero – a sala de jantar. Volto para a festa. Estou bêbado. Encontro a sala em meia luz, o som mais baixo e arrastado. Alguém imita Elvis. Sombrio.meninas e meninos deitados pelo chão, sobre o carpete, pelas poltronas. Vejo aquela que usurpou meus pensamentos (Julgo que seja ela. Linda., ela. A A.) deslizo sobre aquele corpo desejado, Ela, bêbada, não opõe resistência. Transamos.
É quando percebo ser outra garota. Não a da varanda, mas outra, bela desconhecida. O caso é que a A. se levanta lá do outro sofá e vem pegar a minha mão. Vultos rubros em seu olhar? Meu constrangimento revela-me meu estado de nudez. Mas não posso deixar de admirar o sorriso de gozo nos lábios da adormecida que acabei de possuir.
A garota de varanda, a linda, ela, pretende ser compreensiva. Estamos todos um tanto quanto ébrios. “Embriagai-vos!”. Alguém imita David Bowie. Sombrio. A. parece entender que eu a procurava. Que dei prazer e tive prazer com outra, mas pensando nela. A garota olha-me triste, e beija-me. Tenho sono. Dormimos nos braços um do outro.
Outra noite? Não sei. É madrugada.ando pelas ruas, sozinho. Uma menina de cabelos curtos, vermelhos, e piercings reluzentes, grita numa esquina, “Ei, cabeludo!” Não estou interessado. Não importa quem seja, ou o que ofereça. Sigo meu rumo (falta saber que rumo...) e quase tropeço em um artesão, ali vendendo anéis, braceletes, enfeites para os cabelos, adornos indígenas, enfim, quase vou pisando em sua colorida arte.
Na praça, onde a igreja matriz está isolada do real,por uma bruma de dois séculos, jovens se aglomeram, e os clãs delimitam seus espaços vitais. Alguma exigência de “Lebensraum”? Não se preocupem. Policiais arrogantes e suas viaturas modernas passam de tempo em tempo.
Caso haja pancadaria, tiroteios e agressões, logo cacetes e bombas de efeito moral surgirão na noite. Tiros para o alto. Tumulto. Policiais dispostos ao diálogo. Violência contra a violência.
Mas, na porta da matriz, a paz centenária, e as barracas da quermesse. Restos das bandeirinhas e lascas dos portais de bambu. O asfalto decorado com cruzes, imagens de um cristo sorridente, traços em giz, INRI, JHS, Paz e Fraternidade. Parece uma provocação.
Mas os jovens sombrios estão bebendo e bocejando. Um ou outro se arrisca a ir urinar nos canteiros da igreja. Afinal estão em território livre, mais internacional impossível, aqui a filial da empresa vaticano, cultos catárticos em latim.
Até as blasfêmias estão fora de moda, nada original desde os arroubos byronianos. Sigo para a esquina. Do outro lado, um posto, uma loja de conveniências. Talvez seja conveniente... rapazes deitam mocinhas sobre os capôs dos carros. O lugar é hostil. Todos parecem ser. Desprezado, eu desprezo.
Na área comercial, sob as marquises do Mercado, vejo um grupo compartilhando uma garrafa de conhaque. Ironizam as festas dos cristãos. Um deles se aproxima e pede fogo. Lamento não poder ajuda-lo. Ele resmunga. Traz no olhar paisagens de um vasto cemitério.
- “Embriagai-vos”!
Mas ninguém demonstra conhecer Baudelaire. Até por que nem me concedem atenção. Olham com cobiça a mocinha que passa abraçada ao mocinho de jeans rasgado.
Os caras não respondem. Desconfiam de mim. Como sabem? Procuro ficar à vontade. Pretendo demonstrar meus conhecimentos etílicos, minha enciclopédia musical, procuro mostrar que sou da turma, conheço o underground. Grito até umas blasfêmias. Versos de Dante.
- O cara é profano. Profano! É dos nossos.
Arrisca um do grupo, mais amistoso. Estende o conhaque, enxugando os lábios com as costas da mão. Aquele que pedira um fósforo exibe um arroto formidável.
- Aí, podreira, o cara!
E assim fugimos juntos, sob os portais, cristos e amuletos, entre as vozes entoando John Lennon e as sirenes da polícia.
Set/05
Leonardo de Magalhaens
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