segunda-feira, 27 de agosto de 2012

sobre 'O Processo' - de F. Kafka (P2)



sobre 'O Processo' (Der Process, 1925)
de Franz Kafka (1883-1924)

O Processo enquanto alegoria do julgamento
Parte 2

Adentrando o Processo

Não pretendemos aqui analisar o enredo e suas verossimilhanças. Nem a lógica interna do texto. Apenas suas alegorias para o que o cidadão comum viveu no século 20, a chamada 'Era dos Extremos' (como bem a considerou o historiador britânico Eric Hobsbawn em obra clássica). No mais os títulos dos capítulos resumem o enredo.

Assim, Cap. 1, a detenção. conversa com a Sra. Grubach. depois com a Srta. Bürstner; Cap. 2 , Primeira visita da causa (ou Primeiro Interrogatório); Cap. 3 , sala de sessões vazia. o estudante. As secretarias (ou Repartições); Cap. 4 , a amiga da Srta Bürstner; Cap. 5 , o açoitador; Cap. 6, O Tio. Leni. ; Cap. 7, O advogado. O fabricante. o pintor.; Cap. 8 - O comerciante Block. K. Dispensa os serviços do advogado.; Cap. 9 , Na catedral (onde destaca-se o trecho 'Diante da Lei') e o Cap. 10, o fim (onde K. morre tal qual um cão, em plena vergonha ao perder sua dignidade humana)

Somam-se a estes capítulos outros trechos, cenas cortadas, episódios não totalmente escritos. Não sabemos em que proporção temos diante de nós a obra tão como pensada pelo autor. No máximo, temos a obra tal como M. Brod acha que seria, caso fosse completada.

A obra se inicia com uma frase ao estilo claro e bizarro bem kafkaniano (que é claro, é lógico ao narrar fatos ilógicos),

Alguém devia ter caluniado Joseph K., pois sem que tivesse feito algo de mau, numa dada manhã, foi detido. A cozinheira da Sra. Grubach, sua senhoria, que lhe trazia a cada manhã, às oito horas, o café matinal, não viera. Isso porém nunca acontecera antes.(trad. LdeM)

Jemand mußte Josef K. verleumdet haben, denn ohne daß er etwas Böses getan hätte, wurde er eines Morgens verhaftet. Die Köchin der Frau Grubach, seiner Zimmervermieterin, die ihm jeden Tag gegen acht Uhr früh das Frühstück brachte, kam diesmal nicht. Das war noch niemals geschehen.


Aqui é sensível a questão do cotidiano. Tudo seguia de um modo e de súbito algo imprevisível.Isso porém nunca acontecera antes.Eis que os planos humanos, a nossa amada rotina, podem ser abalados. Uma sequência de eventos pode ser interrompida sem aviso e o indivíduo pode ser lançado na 'anomia'. Como agir? Qual plano B deve-se seguir?

Certamente a nossa identidade é sustentada por uma série de hábitos rotineiros e pelos olhares alheios. Seja a identidade de um funcionário exemplar ou marido fiel, e de súbito o 'olhar' muda: quando se é acusado de roubo, de vazar informações, de aceitar propina, de infidelidade, etc

Vejamos aqui o Sr. Joseph K. ao ser acusado ele é prontamente processado: um olhar alheio sobre Joseph K., e este olhar é alterado, pois K. não é visto mais como o 'bom funcionário', mas como um 'acusado'. Todos ao redor passam a considerar que alguém com um processo nas costas, tal uma sombra ou um fardo, não é uma pessoa confiável. Ou se encontrar com K. pode ser uma forma de se arriscar a uma acusação de 'cumplicidade'.

Pois é possível que o absurdo irrompa no cotidiano, o incomum adentre o mundo do senso comum. Joseph K. tem uma vida ordenada e ordeira, com hora para se levantar, para o desjejum, para uma breve conversa com a senhoria, depois o serviço no banco, um círculo de contatos, com colegas e poucos amigos.

E toda esta rotina é subitamente distorcida por uma acusação sem nexo, pela sombra de um processo. O cotidiano é assim ameaçado pela absurdo: ele é mesmo culpado? Quem terá levantando denúncias infundadas? Quais os meios de defesa? Quem tem o direito de julgá-lo?

Um dos policiais é rigoroso :Abriu-se um inquérito contra o senhor, que será informado de tudo no devido tempo. Estou infringido as ordens, falando-lhe gentilmente.(Das Verfahren ist nun einmal eingeleitet, und Sie werden alles zur richtigen Zeit erfahren. Ich gehe über meinen Auftrag hinaus, wenn ich Ihnen so freundschaftlich zurede.) O outro policial é irônico:Ele reconhece não conhecer a lei, contudo afirma, ao mesmo tempo, ser inocente.(cap 1)(er gibt zu , er kenne das Gesetz nicht, und behauptet gleichzeitig, schuldlos zu sein.)

Entre os invasores, K. se perde em pensamentos, conjecturas, ao ver seu quarto e sua vida invadidos por presenças e forças desconhecidas,

Quem eram aquelas pessoas? Sobre o que falavam? A qual repartição eles pertenciam? K. vivia num Estado de direito, em todo lugar reinava a paz, todas as leis permaneciam em vigor, quem ousava invadir seu próprio domicílio?(Was waren denn das für Menschen? Wovon sprachen sie? Welcher Behörde gehörten sie an? K. lebte doch in einem Rechtsstaat, überall herrschte Friede, alle Gesetze bestanden aufrecht, wer wagte, ihn in seiner Wohnung zu überfallen?)


Joseph K. é 'preso' mas é mantido à solta (para ser julgado pelos outros?) quando todos sabem que ele sofre um processo e passam a julgá-lo como suspeito (e até culpado!) como se a 'opinião pública' ousasse condenar.

Quando Joseph K. tenta encontrar os juízesa esfera do julgamento (e da absolvição ou condenação)sempre encontra outros 'processados' e intermediários (os advogados, os burocratas, até um sacerdote) e nunca uma acusação formal ou audiência com os juízesou tem um contato com os que fazem as leis ou podem interceder (recorre assim aos próximos, p.ex., um pintor, que conhece um jurista, etc)

A impossibilidade de saber qual a acusação leva Joseph K. a outros erros e mal-entendidos, quando passa a aceitar-se enquanto culpadoassim interioriza a culpa que os outros atribuem a ele. Todos passam a aceitar o novo 'culpado' e assim até o mais inocente vai se sentir um 'condenado'. Ele julga a si mesmodeixa-se condenar pelo Super-ego? - com as leis feitas por outros.

Nossa repartição, até onde conheço, e conheço apenas as hierarquias mais baixas, não procuram algo de culpa nas pessoas, mas, antes, como diz a Lei, são atraídas pela culpa e devem enviar-nos os guardas. Eis a Lei. Como poderia haver erro?
-Eu não conheço esta lei, disse K. -Assim é bem pior para o senhor, disse o guarda. -Deve ser algo que existe na cabeça dos senhores, disse K., que queria se insinuar de algum modo no pensamento dos guardas, para incliná-los ao seu favor ou ficar mais estável.
Mas o guarda disse friamente: -Logo o senhor a experimentará. Franz intrometeu-se e disse: -Veja, Wilhelm, ele reconhece não conhecer a lei, contudo afirma, ao mesmo tempo, ser inocente.
-Tens toda a razão, mas não se pode fazer-lhe nada compreensível, disse o outro.

Unsere Behörde, soweit ich sie kenne, und ich kenne nur die niedrigsten Grade, sucht doch nicht etwa die Schuld in der Bevölkerung, sondern wird, wie es im Gesetz heißt, von der Schuld angezogen und muß uns Wächter ausschicken. Das ist Gesetz. Wo gäbe es da einen Irrtum?« »Dieses Gesetz kenne ich nicht«, sagte K. »Desto schlimmer für Sie«, sagte der Wächter. »Es besteht wohl auch nur in Ihren Köpfen«, sagte K., er wollte sich irgendwie in die Gedanken der Wächter einschleichen, sie zu seinen Gunsten wenden oder sich dort einbürgern. Aber der Wächter sagte nur abweisend: »Sie werden es zu fühlen bekommen.« Franz mischte sich ein und sagte: »Sieh, Willem, er gibt zu, er kenne das Gesetz nicht, und behauptet gleichzeitig, schuldlos zu sein.« »Du hast ganz recht, aber ihm kann man nichts begreiflich machen«, sagte der andere.


Sempre a questão da identidade: quem importa aos acusadores que K. seja um procurador de um importante banco? Não interessa a identidade, mas a culpa. Basta que ele seja acusado, assim deve se submeter ao sistema de valores dos acusadores, no Tribunal. Quem determina a soberania do Tribunal senão os acusados que se submetem? Interessante a descrição das atitudes e aparência do juiz,

Bomdisse o juiz de instrução, que folheava o livro e voltou-se num tom firme para K., 'O Sr. é pintor de parede?' 'Não', disse K., 'ao contrário, sou o primeiro procurador de um grande Banco.' A esta resposta seguiu-se, vindo do lado direito, uma gargalhada, que de tão dominante, foi compartilhada por K. As pessoas sentavam-se com as mãos sobre os joelhos e se agitavam como se num crise de tosse. Até nas galerias havia um riso isolado. O todo irritado juiz de instrução, que provavelmente era incapaz de algo contra aqueles da sala, procurava descontar contra a galeria, levantava de um salto, ameaçava, e as suas antes pouco percebidas sobrancelhas juntavam-se espessas, escuras e imensas sobre os seus olhos.(cap. 2)

“„Also,sagte der Untersuchungsrichter, blätterte in dem Heft und wendete sich im Tone einer Feststellung an K.,Sie sind Zimmermaler?“ „Nein,sagte K.,sondern erster Prokurist einer großen Bank.Dieser Antwort folgte bei der rechten Partei unten ein Gelächter, das so herzlich war, daß K. mitlachen mußte. Die Leute stützten sich mit den Händen auf ihre Knie und schüttelten sich wie unter schweren Hustenanfällen. Es lachten sogar einzelne auf der Galerie. Der ganz böse gewordene Untersuchungsrichter, der wahrscheinlich gegen die Leute unten machtlos war, suchte sich an der Galerie zu entschädigen, sprang auf, drohte der Galerie, und seine sonst wenig auffallenden Augenbrauen drängten sich buschig, schwarz und groß über seinen Augen.


Como podem acusar K. se nem o conhecem, a ponto de confundi-lo com um pintor de paredes? Assim K. questiona se pode ser julgado por semelhantes instâncias que desconhecem importantes informaçõestoda a vida de serviços e disciplina do cidadão K. - e ressaltam os erros (será que ele cometeu algum crime?) a ponto de acusá-lo prontamente. O processo existe se K. aceitar tal existência, ao se submeter ao julgamento de semelhante tribunal,

Vossa pergunta, Sr. Juiz de Instrução, se sou pintor de paredesde fato o Sr. não perguntou, mas antes certificou com um mover de cabeçaé característica para todo este processo contra mim. O Sr. poderia objetar que não se trata de qualquer processo, o Sr. tem o seu Direito, então trata-se de um processo se eu o reconhecer como tal. Mas eu o reconheço neste momento, até certa medida, por compaixão. Não se pode imaginar de modo diverso do que compassivo, quando se presta atenção nele. Não digo que é um processo imoral, mas eu gostaria de ter dado ao Sr. esta caracterização para autoconhecimento.(cap. 2)

“„Ihre Frage, Herr Untersuchungsrichter, ob ich Zimmermaler binvielmehr Sie haben gar nicht gefragt, sondern es mir auf den Kopf zugesagtist bezeichnend für die ganze Art des Verfahrens, das gegen mich geführt wird. Sie können einwenden, daß es ja überhaupt kein Verfahren ist, Sie haben sehr Recht, denn es ist ja nur ein Verfahren, wenn ich es als solches anerkenne. Aber ich erkenne es also für den Augenblick jetzt an, aus Mitleid gewissermaßen. Man kann sich nicht anders als mitleidig dazu stellen, wenn man es überhaupt beachten will. Ich sage nicht, daß es ein liederliches Verfahren ist, aber ich möchte Ihnen diese Bezeichnung zur Selbsterkenntnis angeboten haben.“”


Após tentar chegar até as autoridades, após entrevistar-se com outros processados, com amigos de autoridades judiciais, com advogados excêntricos e inúteis, quem pode auxiliar K. ? Após encontrar empresários, artistas, burocratas, amantes de burocratas, mulheres do povo, amantes de advogados, de instância a instância, o quão próximo está K. da resolução de seu processo?

A ideia do processo não o deixava mais. Frequentemente refletia se não seria melhor elaborar a escrita de uma defesa e apresentá-la no tribunal. Ele desejava incluir uma curta biografia e para esclarecer sobre alguns de algum modo importantes acontecimentos, por quais motivos ele tinha agido assim, se repudiava este comportamento num julgamento atual ou aprovava e quais motivos ele podia alegar para isto ou aquilo. As vantagens de tal escrita de defesa, contra uma mera defesa feita geralmente por advogados não dignos de crédito, eram indubitáveis. K. não sabia de todo como atuava o advogado; muito não devia ser, um mês se passara e ele não mais o convocara e também em nenhuma das conversas anteriores K. tivera a impressão de que este homem poderia obter-lhe algo mais.(Cap. 7)

Der Gedanke an den Prozeß verließ ihn nicht mehr. Öfters schon hatte er überlegt, ob es nicht gut wäre, eine Verteidigungsschrift auszuarbeiten und bei Gericht einzureichen. Er wollte darin eine kurze Lebensbeschreibung vorlegen und bei jedem irgendwie wichtigen Ereignis erklären, aus welchen Gründen er so gehandelt hatte, ob diese Handlungsweise nach seinem gegenwärtigen Urteil zu verwerfen oder zu billigen war und welche Gründe er für dieses oder jenes anführen konnte. Die Vorteile einer solchen Verteidigungsschrift gegenüber der bloßen Verteidigung durch den übrigens auch sonst nicht einwandfreien Advokaten waren zweifellos. K. wußte ja gar nicht, was der Advokat unternahm; viel war es jedenfalls nicht, schon einen Monat lang hatte er ihn nicht mehr zu sich berufen und auch bei keiner der frühern Besprechungen hatte K. den Eindruck gehabt, daß dieser Mann viel für ihn erreichen könne.


O drama do protagonista Joseph K. somente é percebido em sua totalidade pela parábola narrada pelo sacerdote no penúltimo capítulo. É como se tivéssemos uma micro-narrativa que elucidasse pontos da narrativa maior, um resumo do enredo dentro do próprio romance. K. vai a uma igreja, onde até o padre o identifica. É de s pensar quantos funcionários tem o tal Tribunal, pois onde quer que K. apareça, ele encontra alguém ligado a esta instância jurídica!

Vejamos a parábola 'Diante da Lei' narrada pelo sacerdote no episódio na Catedral (cap. 9), onde um camponês se apresenta diante de um guardaum porteirodiante da entrada para a Lei, e não consegue ter o acesso ao que julgava o mais acessível. A Lei é como um tesouro acessível a uns poucos privilegiadosparece que o próprio guarda nunca vira a gloriosa Leie o camponês passa a vida diante do guarda-porteiro, a suplicar e incomodar, a oferecer subornos, mas não tem acesso a preciosa Lei. Assim morre o suplicante e a porta é fechada.

O camponês não tinha esperado tais dificuldades, a Lei devia ser sempre acessível a todos, ele pensava, mas ao olhar mais detidamente o guarda-porteiro com seu casaco-de-peles, seu nariz pontudo, a longa, delgada e escura barba ao estilo tártaro, então decididamente ele preferia esperar até que lhe fosse concedida a licença para entrar. O guarda-porteiro deu-lhe um tamborete e permitiu-lhe se sentar ao lado da porta. ele permaneceu durante dias e anos. Ele fazia muitas tentativas para ter acesso e cansava o guarda-porteiro com suas súplicas.(cap.9)

Solche Schwierigkeiten hat der Mann vom Lande nicht erwartet, das Gesetz soll doch jedem und immer zugänglich sein, denkt er, aber als er jetzt den Türhüter in seinem Pelzmantel genauer ansieht, seine große Spitznase, den langen, dünnen, schwarzen, tartarischen Bart, entschließt er sich doch, lieber zu warten, bis er die Erlaubnis zum Eintritt bekommt. Der Türhüter gibt ihm einen Schemel und läßt ihn seitwärts von der Tür sich niedersetzen. Dort sitzt er Tage und Jahre. Er macht viele Versuche eingelassen zu werden und ermüdet den Türhüter durch seine Bitten.


O local penumbroso e pesaroso onde K. ouve tal parábola - numa catedral em quase escuridão, diante de um padre sério e soturno – já é uma premonição do que o espera. Eis uma antevisão de seu calvário (para usarmos imagens religiosas) onde sua condenação não demorará mais. Como pode até um sacerdote estar envolvido com o medonho Tribunal ? Todos estão ligados ao Poder Judicial de algum modo, apenas para julgar Joseph K.

As pessoasalém das instâncias de julgamento - adoram apontar o dedo e nomear o acusado. Ali K. que não suporta mais ser avaliado, medido, ajustado, interrogado, aconselhado, difamado, em suma, acusado e julgado. Mas quem pode acusá-lo? Quem pode julgá-lo? Quem ousa condená-lo? A que poder o famigerado Tribunal acaba por servir? Assim, o processo afigura-se a própria punição quanto se é desvalorizado, diminuído, pela opinião pública, para quem um acusado é um culpado. falta mesmo o golpe do carrasco.



jul/ago/12


Leonardo de Magalhaens



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