sábado, 27 de agosto de 2011

sobre EGO EXCENTRICO - de Makely Ka









sobre a obra EGO EXCÊNTRICO
(Selo Editorial, 2003)
do poeta e músico Makely Ka


O ego-centrismo do poeta é mera ilusão


Parte 1



O poeta enquanto uma figura anti-convencional já é convencional. Espera-se que o poeta seja um cidadão estranho, excêntrico, que ande trajado de forma esquisita, que diga coisas fora de órbita, que deixe marcas de dedos e versos em fina cristaleira de certa festa de família, onde todos se esforçam para serem bem exóticos, e saírem nas capas de zines neo-anarquistas com direito a foto 3X 4 no fichários das mocinhas rebeldes de piercing e MP3 a tiracolo.


Ou seja, a poesia enquanto transgressão já é do establishment. Quando o poeta acha que está sendo surreal, aparece um tipo com tatoo na ponta do nariz e um pedaço de madeira do tamanho de uma rolha na orelha. O poeta fica ali sendo o mais careta, o mais retardado de toda a festa, aquele que deu uma escapada até a biblioteca da família para ver se encontrava uma antologia poética do Leminski.


Sabendo-se mais um na multidão, o poeta precisa inventar o super-eu (quando não o próprio Übermensch), o ego-cêntrico ponto de referência de sua pálida existência meio as multidões de (des)iguais que povoam as ruas de fuligens. Precisa achar que somente ele viu algo que ninguém viu outrora, algo inalcançável ao mais comum dos mortais, o cidadão-comum, o habitante vegetativo de nossas cidades hodiernas. Sim, aquele ser que come, bebe, defeca, reproduz-se, constrói casas (ou 'castelos' com verba pública), e depois morre, e espera ter direito a um túmulo com epitáfio compensador.


O poeta tem náuseas de imaginar-se comparado com o cidadão-comum, por isso inventa sua 'torre de marfim', por isso se isola, por isso é excêntrico, por isso se afoga no cotidiano, de repente nem sabe como sacar dinheiro no caixa eletrônico e precisa da ajuda de uma funcionária (isso vive acontecendo...), e assim precisa recorrer a uma cidadã-comum, que trabalha a espera das 17 horas para embarcar no ônibus para a periferia.


Assim, o ego do poeta, por genérico, do artista, é uma fabricação do ser que se imagina superior, que se imagina com a verdade, é uma mera ilusão, uma ficção que serve de 'defesa psíquica', um doentio processo de complexo de superioridade a nascer de um complexo de inferioridade, tipo um 'mecanismo de compensação' (sejamos bem psicologicamente dizendo exatos e científicos, quando não acadêmicos), tipo quando não se consegue conquistar aquela mocinha, e vai escrever um soneto perfeito, ou quanto não consegue convencer meia dúzia de revoltados a fazerem a esperada Revolução, e vai para casa escrever um Manifesto lírico e cheio de auto-indulgências.


Esse prólogo todo é para tentar (finalmente?) digerir a leitura da obra EGO EXCÊNTRICO que muito me proporcionou indigestão e insônia, desde quando a abri em 2004, por dádiva do autor, o poeta e músico (mais reconhecido como músico do que como poeta, segundo alguns) Makely Ka, artista erudito e marginal, deslocado e integrado, algo apocalíptico e didático. Quem vê acha que é um mendigo, mas o poeta e músico é professor de Filosofia. Impressão que sempre me desconcertou.


Esbanjando auto-conhecimento, algo irônico, algo cínico, o autor mostra um desnudamento desde a capa, com seu belo e onipresente umbigo, oniscentrado e decorado de pêlos, num volume que em passo de caranguejo vai andando para trás, tipo aqueles mangás japoneses, ou livros em hebraico. O livro é para se ler assim, backwards geral, no compasso da desconstrução, a meros dez minutos do fim deste ensaio. Com o umbigo na capa logo sabemos do que se trata, qual a intenção (ou tensão) que fica disso, “que significa isso, que signo que fica disso?”, onde o poeta fala de si mesmo em 3ª pessoa, ora singular, ora plural, ora publicando classificados à procura de (des)semelhantes.


Deixei para escrever e publicar esta crítica-ensaio agora, não porque o livro seja menos importante, mas devido ao fato de ser o mais exigente, em termos de texto e contexto. O poeta não está brincando e muito menos o crítico. O autor exige um leitor com estômago (e umbigo saliente) para uma troca de mensagens um tanto quanto indigestas, e quem não quiser, “pode sair pela porta que está aberta”, pois “aqui ninguém é obrigado a ficar”.



Parte 2


Desde o início o autor está sobrando, de tanto falar nele mesmo, ele só fala do EGO, da imago/imagem nos espelhos dos olhares, o Eu que sempre existe para os outros, até quando estamos entre quatro paredes, diante do espelho, transando consigo mesmo no escuro. O próprio pensamento em um Eu a conversar com Outro, uma linha escrita já espera um leitor. O autor, depois da escrita, é total descartável. O autor sobra, realmente.



o autor não possui caráter nem escrúpulos
o autor plagiou seus próprios poemas
o autor é uma farsa do poeta
o autor não compareceu ao lançamento
de seu próprio livro


o que já soa como uma paródia de “o poeta é um fingidor”, verso clássico de Fernando Pessoa, quando o autor ego-excêntrico declama que “agora vou mentir / tudo o que sinto / fingir vai ser a verdade / do que minto”, mesmo que alguns se incomodem, se sintam ofendidos, enganados, comprando gato por lebre, no livre mercado dos bens de consumo lírico, na feira da indústria cultural. O poeta vem desafiar, sendo o “grande iluminado”, com o seu velho probleminha do ego inflado, pois “é que nunca fui mesmo muito modesto / sou é um tanto quanto desbocado / porque sou poeta / falo o que tem de ser falado” .


Tendo a verdade no bolso e debaixo do colchão, poeta sai declamando seu universo, com o poder que nem o Rei Sol, Louis XIV teve (aquele que dizia “O Estado sou eu, L'État c'est moi”), com a beleza egocêntrica que nem narciso, afogando em si mesmo, “agora que sol / eu mesmo / nos olhos o brilho de narciso / sou único”, como a apoteose da auto-ilusão do poeta de julgar além-do-ser-social, além do construto espaço-temporal, além da socialização-primária-secundária, educacional-didática-prisional, que todo ser social, todo cidadão, registrado ou não, laureado ou não, está submetido.


Sua profissão? Ser poeta? O que faz o poeta? Cultiva erva... daninha, “poemas brotam / como erva daninha", nos jardins do pensamento, do sentimento, da revolta, enquanto torce o nariz para a crítica, “para amargar um poema bastam alguns críticos dementes”, como se toda crítica fosse perseguição, coisa repressora, censura ditatorial. Esquece que o crítico é o leitor-mor,o leitor par excellence, que debruça-se sobre texto e contexto e tenta visualizar (senão vivenciar) o estilo e os delírios do autor.


Pois o autor precisa de um leitor? Não? Despejando-se pelos classificados, como mostram os recortes de jornais de 2003, onde o poeta em busca de alguém mais, tece uma ironia com o próprio fazer poético. Ou se tornando 'desqualificado', ousando algo de Concretismo, de Cubismo, sendo 'incompreensível para as massas', tal como a acusação que selou o destino de Maiakóvski, ou o desvario de um Apollinaire, o futurismo apressadinho de um Marinetti, com a exploração de sonoridades, dos fonemas, dos russo-poloneses e afins, “uns dias leminski, outros maiakovski”, sempre com brechas para o poeta-provocador (nunca abraçando o leitor como faz um Whitman), “escarro meus versos sobre vocês / homens de alumínio / meu intuito é oxidar / suas conjunções perfeitas”.


Está claro que o autor não quer simpatia (se sentiria ofendido tal um Nietzsche!), não quer empatia (seu super-Ego não suportaria!), o autor quer se desnudar, porém insistindo em cuspir nos olhos do leitor voyeur, em poemas-dramas, em clima noir, de filme B, em quase-haicais na penumbra, invocando espíritos de Mishima, Georg Trakl, Emily Cioran, Álvaro de Campos, Isidore Ducasse (aka. Conde de Lautréamont), F. Kafka, Borges, Augusto dos Anjos, só para tecer versos 'de amargar', em poemas irônicos e eróticos, em insinuações de entrelinhas, sugestões, sinestesias,


Assunto seu silêncio vasto
no ato mínimo dos lábios
presto muita atenção
ao movimento vago de suas mãos


Sem perder o sarcasmo com seus “haicais e hentais”, deixando claro que “os poetas são inacessíveis / sensíveis / sensatos”, incapazes de traduzirem e serem traduzidos (sabendo-se que 'tradutori, traditori'), meros Traditores, traidores-autores, falsificando a vida com o instrumento maquiavélico da literatura (“a literatura estragou tuas melhores horas de amor”, escreveu Drummond), por isso o autor logo esclarece,


literatura o caralho / eu faço poesia / porra!
mas teme estar errado, mas o que importa,
ai me disseram / mas isso assim não é poesia
eu disse / foda-se



Parte 3


Sabendo que antes,nos tempos de outrora, música e poesia eram uma coisa só, não apenas irmãs xipófagas, e que uma posterior distinção música e poesia é pura ficção didática (como bem perceberam os simbolistas,com o mote “a música antes de tudo”, De la musique avant tout chose), o poeta e sobremaneira músico Makely Ka alia novamente olhos e ouvidos, nas “canções de ouvir com os olhos”, uma trilha sonora de poemas sonoros, muitos já musicados (com instrumentos, quero dizer) por Kristoff Silva, Envil fx, Pablo Castro, Renato Vilaça, nas vozes de Maísa Moura e Alda Rezende, novos nomes referenciais da refinada MPB aqui da terra do Clube da Esquina.


Contudo, volta-se o excesso de metalinguagem, onde o poeta sempre se legitima (ou procura se legitimar) em provocações, o que soa constantemente pedante, uma vez que o poema se legitima por si mesmo, dispensa panfletagens e grafitagens.

minha rima é ritmada
meu discurso é frontal
a poesia é uma porrada
e a anarquia total

e ainda o ego excêntrico 'mandando bala' nos desavisados, 'mandando bronca' nos incautos leitores (os mesmos que devem roubar o livro caso o encontrem numa megastore - será que as Americanas venderiam o livro?), num desnudamento de Eus que perde toda aquela singela espontaneidade do Whitman, ou a fotocópia desfocada dos poetas beatniks, meros imitadores do profeta de Paumanok.


meu umbigo egoísta
gosta de tudo que pisca
...
quanto mais eu me imito
mais a mim eu me assemelho


além de uma aceitação da pluralidade cultural, da diversidade de povos, que pouco transcende os mil rótulos classificatórios da 'racionalidade instrumental' na 'indústria cultural' (Adorno),

há muitos eus dentro de mim
uns judeus outros palestinos
caldeus e nordestinos
...
dentro do ovário eu fui vários
óvulos em códigos binários
gerando livros ordinários
na órbita dos meus eus imaginários


acima não mencionamos os poetas beatniks gratuitamente, estes poetas desvairados on the road, que mui influenciaram o autor, quando nos deparamos com uma confábula surreal, inspirada em The Fable of Final Hour ( “A Fábula da Hora final”) do poeta norte-americano Dan Propper, aqui denominada UMA CONFÁBULA, que confessa claramente a paródia/plágio,


a dois minutos dos últimos acontecimentos, o escritor norte-americano dan propper
declarou à folha de são paulo ter sido copiado e deturpado por poetas mineiros
irresponsáveis. A despeito do protexto (sic!) de seus editores, fez questão de deixar
claro que era totalmente favorável a esse tipo de iniciativa;


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o poema de Dan Propper em tradução, vejam aqui
http://devolucoes.com.br/wp-content/uploads/2010/11/a-fabula-da-hora-final.pdf
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Iniciativa na qual me incluo quando escrevi paródias de textos Fernando Pessoa (Ode Triunfal e Saudação a Walt Whitman), Vinicius de Moraes (O Dia da Criação) e Allen Ginsberg (Howl /O Uivo), onde a paródia serve como expressão e tributo as leituras de acabam por inchar nossos cérebros juvenis, exigindo imediata extra-vasão, pois enquanto “as cisternas contem, as fontes transbordam” (Blake), e tradução-paródia é sempre mais que uma apropriação do estilo, é a re-criação (que ajuda a divulgar o autor original, claro) Quantos não passaram a conhecer Whitman (eu mesmo confesso) na leitura dos poetas beatniks? E agora quantos não vão conhecer o Propper através dessa releitura do Makely?


Assim, somente para tentar concluir (pois a obra é vasta) destaco outra gaveta no corpo da magnum opus, onde em “poemas em voz alta” domina aquele esperado poeta verborrágico e transgressor, cuspindo na 'platéia' (que diz “não vou discutir com você, cara”)


se escrevo é porque preciso
ninguém tem nada com isso
quase tudo é de improviso
isso é o mais importante


esclarecendo que não faz versos gratuitos, “Não faço versos por acaso”, “A poesia cobra seu preço / não vem de graça / exige esforço”, valorizando para melhor 'vender o peixe', mas ao mesmo tempo em indagações, o que significa que leva a platéia em consideração!, “A poesia serve pra quê? Alguém aqui pode me dizer?”, somente para responder,


Não disseram que a poesia alimenta a alma do homem?
A propósito a quanto tempo você não come?


E muita gente por aí sem comer (nos três sentidos!) que desconhece o que seja poesia, e muita perplexa vai ficar quando com essa obra se deparar! Não é um texto difícil, às vezes até musical, mas muito árido, golpeando no baixo ventre, em direta de direita no plexo solar, marretando quem lê, com a delicadeza de uma luva de ferro, desentranhando desassossegos em desabafos ritmados e rimados, em muita crítica, porém sem soluções. Em Ego Excêntrico, o autor Makely Ka quer mesmo é desabafar.


Ainda bem que a obra é maior que o autor, sim, depois de pintar, escrever, compor, esculpir, o pintor, escritor, músico, escultor, é descartável. Podem ir para as Bahamas e deixar por conta da indústria cultural. A obra sobreviverá se assim merecer (ou se assim for lucrativo para alguns) e gerações futuras serão obrigadas a tomar conhecimento (nem que seja para o currículo escolar ou prova de vestibular). Mas quando, infelizmente, não há muito que se dizer sobre a obra, quando a obra não diz de si mesma, quando não há mais a obra, então se fala muito do artista.


Mais sobre a obra do Makely Ka



Jan/fev/09

revsd: ago/11




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segunda-feira, 22 de agosto de 2011

2 poemas de Emerson Mário Destefani










Êxodo


Como levar aquilo que não existe mais?



Os verdejantes cafezais abotoados de rosetas brancas
As perobas fantasmas
As onças extintas
O alarido dos últimos pássaros que habitavam as brenhas
Como levar a textura rubra da argila?




No caminhão colocou duas velhas camas,
uma mala de sacos, suas ferramentas,
uma prateleira de tábuas,
cadeiras alquebradas e um fogão carvoento
Diluídas em meio aos utensílios
colocou suas exíguas esperanças,
sua família, o cão e a mula,
sua raiva, seu desencanto




Antes de partir
Sufocou um soluço
Pela dureza da constituição de homem rude
Forjado na terra
Filho do chão, grão de solo




Como levar o que não existe mais?







Emerson Mário Destefani




...





Heroísmo




Nossos heróis não têm punho de ferro nem peito de aço
Não lançam fogo pelas mãos nem raios pelos olhos
Não flutuam, não voam, não escalam edifícios!
Nossos heróis não ficam invisíveis nem são eternos
Não são metálicos, fluidos ou atômicos!
Não atravessam paredes nem adivinham o futuro
Não viajam no tempo nem são invencíveis!
Não têm a força de um tanque nem o poder de um foguete
Nem podem destruir cem inimigos com um único golpe!
Não... Não temos heróis assim!



Nossos heróis precisam comer, beber, respirar e dormir.
Nossos heróis estão nas fábricas torneando peças
Montando carros, computadores, sofás e geladeiras!
Estão no volante de um trator, num balcão, nas oficinas e
armazéns!
São lavradores, enfermeiros, coveiros, professores e estudantes!
Nossos heróis cortam cana, recolhem lixo, assentam tijolos, lavam roupas!
Vendem alface, fazem pão, riem, choram, votam e são assaltados.
Nossos heróis pagam impostos, ficam doentes e perdem o emprego!
Mas continuam de maneira visceral a criar, com seu
heroísmo, para este país,
Nossos futuros heróis!




Emerson Mário Destefani

(Maringá/PR)



Fonte: embalagem PÃO E POESIA






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seleção: LdeM


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domingo, 14 de agosto de 2011

sobre Selva Selvaggia - de Ronaldo Werneck









Sobre Selva Selvaggia (1976; 2005)
do poeta Ronaldo Werneck


Um Roteiro explícito do Poeta enquanto Leitor


A Crítica


A questão do texto e contexto


Uma coisa é o texto, a coisa, o produto; outra é o contexto, as condições de produção da coisa, a saber, onde foi produzida? Quem produziu? Com qual propósito? Afinal, a Arte não surge do nada.

O contexto seria a moldura do texto, o que está fora, ao redor do texto. Enquadra e dá sentido global – mas não determinante. Pois pessoas de outra época e outro lugar podem ler a obra, ainda que produzindo novas interpretações.

As Viagens de Gulliver” no século 20 tem uma leitura diversa daquela do século 18, outra época, outros costumes. O autor, imerso em sua própria época, desejava ironizar, satirizar personagens que são hoje desconhecidas. A Obra é a mesma – e não é. Recebe outro olhar – devido ao fato de haver outros leitores. Daí o terceiro item – além do Texto e do Contexto – temos a Recepção, a plateia diante da obra-de-arte.


Os Novos Críticos se preocupavam com o texto, numa leitura imersa em parâmetros textuais, sem dispensarem atenção aos eventos da época e dados biográficos do/a autor/a.


No campo oposto, os Novos Historicistas insistem na fórmula texto E contexto, que toda obra de arte tem um lugar e um tempo, não pode ser vista de modo isolado.


Quanto a importância do Leitor, daqueles que vão receber a obra – e interagir com a mesma – em qualquer época ou lugar, daquele que recebe a mensagem, tal importância é o centro dos estudos da Estética da Recepção, que focaliza a Leitura, como um aspecto construtivo-interpretativo, onde o leitor colabora ativamente para 'revivificar' a obra. Sem o leitor, um livro é apenas um livro empoeirado na estante.

A interação entre os três pilares – Texto, Contexto, Leitura – onde o Autor seria aqui o ser que em dado contexto que materializa o texto, daí dizerem que houve uma 'morte do autor' – surge a Obra re-presentificada a cada olhar. A cada contexto do Leitor a interagir com o texto-contexto do Autor surge uma 'nova' Obra que a 'mesma' Obra. É o milagre da Literatura: afinal, existem tantos “Viagens de Gulliver” quanto leitores de “Viagens de Gulliver”.


A Obra

Contexto

O contexto de “Selva Selvaggia” é aquele dos anos 1970. O livro de Ronaldo Werneck, mineiro de Cataguases, “lembrai-vos dos Ases de Cataguases”, é de 1976, portanto 35 anos no passado. Da mesma época de CDA com trocadilhos irônico-amargos; dos poemas-jogos-de-palavras de Affonso Ávila; dos poemas-manifestos de Affonso Romano de Sant'Anna. E época de muita metalinguagem.


Vejamos outras obras da mesma época. O “Poema Sujo” (1976), de Ferreira Gullar, é muito datado. Temos que pensar a obra numa determinada época. O que acontece com “A Rosa do Povo” (1945) de Carlos Drummond de Andrade, cujos poemas têm por moldura os eventos do Estado Novo inseridos na Segunda Guerra Mundial. De Affonso Ávila temos duas obras importantes dos anos 1970, “Código Nacional de Trânsito” (1972) e “Discurso da Difamação do Poeta” (1978), sendo este mais metalinguístico e irônico, e aquele mais contextual, o 'conserve-se à direita' do regime militar.


conserve-se à direita

converse às direitas

como os cegos à direita

com o verso às direitas

como servo à direita

com os seus às direitas

como os sérios à direita

com o sexo às direitas

confesse-se à direita

com os céus às direitas


Fechando os anos 1970 temos “Que País é Este?” (1980), de Affonso Romano de Sant'Anna, como uma digestão dos acontecimentos trágicos e irônicos da Ditadura Militar e da abertura política para a Nova República. Em suma, são obras que dependem de um conhecimento prévio da época – isto é, do Contexto - para serem melhor 'digeridas'.

Diante disso, pensemos: qual o valor de Selva Selvaggia hoje? É obra que depende de um contexto, ou o transcende?

Eu discordo da crítica do crítico e literato Domingos Pellegrini Jr. - a melhor crítica publicada aqui, pois é o único que realmente leu o livro – quando ele ataca os trocadilhos próprios de vanguardas, ou quando despreza Mallarmé na malha de intertextualidade. Nem acho que deva existir coerência interna, um ordenamento, aliás, a poesia não é lugar de ordenamento, mas de expressão livre. (Deixemos os ordenamentos para os burocratas e governantes, que nem isso eles fazem direito.)

Eu concordo com Pellegrini Jr. quando mostra o quanto o poeta se explica, tenta se justificar (será insegurança?), se mostrar conhecedor dos tramites poéticos. Afinal, em 1976, o autor tinha 33 anos, entendemos. Insegurança (se é que havia) que não existe mais.

Há um excesso de metapoema, com excessiva metalinguagem, o que até nem seria culpa do autor, mas do Zeitgeist, o 'espírito da época', que marca o início no Brasil – com dez anos de atraso? - do pós-modernismo: a ânsia de desconstruir, de mostrar os bastidores, quando o poeta exibe as ferramentas de seu ofício, a polir metáforas e azeitar metonímias, a desenferrujar sinestesias. Prato cheio para os poetas-teóricos concretistas.

É o drama risível da voz textual que desvela as tramas do texto, de um texto que se desnuda diante do leitor, coisa que percebemos – e toleramos - desde Mallarmé, o poeta que fala sobre... a poesia!

No mais, eu concordo mais com a 'estética da recepção', uma escola mais centrada no leitor, segundo percebemos nas obras de H. R. Jauss e de W. Iser, alemães que muito devem aos fenomenologistas alemães e franceses (Husserl, Heidegger, Sartre, Merleau-Ponty, etc) nos estudos da percepção, na interação do subjetivo e do objetivo, o mundo interno interagindo com o mundo externo.


Bem, a Estética da Recepção. Os leitores são gregos e são troianos. É impossível agradar a todos. Não se pode servir a dois senhores. O que agrada a X pode não agradar a Y... O que o crítico Pellegrini Jr. lê não é o que o poeta Moacy Cirne lê. O primeiro desconfia do 'formalismo', do concretismo, enquanto o segundo elogia a expressão visual. Mas concretismo não é exatamente um quadro feito com letras, ou cartaz soviético. É outra coisa. Que só os irmãos Campos sabem.


Ou o vício do poeta enquanto leitor. O mesmo vício de Antônio Miranda, que é o mesmo de Roberto Piva, que é o mesmo de Affonso Ávila. Parecem incapazes de escrever uma linha – um verso – sem citar e/ou fazer referência a outro poema de outro poeta (de preferência, famoso). Ótimo, tal intertextualidade mostra leitura, farta leitura. Certo. Mas o que tem o próprio poeta a dizer?


A questão da intertextualidade


Há a citação sutil, digerida, e há a citação marcada, até com 'aspas'. Há o excesso de citação – daí ser difícil ler alguns poemas do mesmo modo que certas 'pérolas' de Marianne Moore e Allen Ginsberg. Autores que demonstram uma leitura farta e onívora – e tudo é despejado na escrita.


Tal leitura e canibalismo – viva a Antropofagia! - em pastiche, em ironia, em homenagem é compreensível e tem ótimos exemplos de sucesso literário. Contudo nada tem de originalidade. Desde que o mundo é mundo os eruditos de citam, se roubam, se deturpam mutuamente, fraternalmente, cinicamente. Não se cria algo novo, exceto uma colcha de retalhos, um poema-frankenstein.


O poeta parece sofrer de uma 'angústia da influência (diagnosticada pelo scholar H. Bloom), aquela síndrome do autor enquanto leitor, que tudo lê e depois tenta digerir as leituras ao produzir mais textos. Já comentamos as obras de Roberto Piva, de Antônio Miranda, de Lecy pereira Souza, dentre outros, todos obcecados, interpenetrados, pela intertextualidade.


E o poeta sabe disso tudo. Ele próprio esclarece que se trata de 'diálogo'. Deve ter lido Bakhtin, com o famigerado 'dialogismo'. Para nós, em bom português, é 'tudo se copia'. E passa longe de ser um fenômeno do nosso Antropofagismo latino tropicalista. Os poemas de Ginsberg são cheios de referências e digressões nada originais que até , em certas edições, são acompanhados de notas explicativas.


Aqui na obra de Ronaldo Werneck as notas explicativas 'de pé de página', 'de rodapé', acabaram por se tornar uma verdadeira obsessão. Ele parece complicar justamente para explicar ao leitor o que se passa, de onde veio o poema, o que ele queria dizer, em suma, ele tenta explicar tudo, a origem das citações, as influências, as dedicatórias, parece o teórico close-reading explicando a gênese textual.


Será a tarefa do poeta explicar os próprios poemas? e o que pretende dizer com cada um deles? Como pode ele controlar a 'recepção' dos leitores com prévias informações? Ou deseja deixar tudo 'claro' para o conforto do leitor?


O caso é que as notas não permitem ao leitor divagar, tentar desvendar o mistério, procurar as fontes, as influências, as obsessões, em suma, o universo de leituras do Autor. De antemão tudo já é explicado, demasiadamente explicado. Com certeza, é culpa dessa obra de agora a revisitar o passado. O excesso de notas não existia na 1ª edição, como se constata.


Quando o romance “Encontro Marcado”, do mineiro Fernando Sabino, foi reeditado nos anos 1980, passou a incluir em anexo – nas páginas finais – dezenas de notas sobre as citações e referências. Um mapa das minas! Outros exemplos de excessos de referências não faltam. Ainda mais em edições críticas. A edição crítica de “Great Gatsby”, de Fitzgerald, com todas as referências é engrossada com um quinto do livro original. Sem falar nas dezenas de livros sobre as referências e estilísticas no labirinto textual do romance “Ulisses” de James Joyce. Ou seja, a literatura que recicla peças literárias.


Convenhamos, a obra poética de RW é volumosa, interessante, divertida, erudita, genial, explicita um bom leitor, mas não é original. Até a disposição dos versos na página em branco – que outros críticos elogiam – nada tem de surpreendente. Até o título 'bem sacado' – o próprio autor revela – é tirado dos versos iniciais da “Divina Comédia”, do italiano Dante, que por sua vez se inspira em obra anterior, escrita no exílio, e nas epístolas de Paulo,



Ah quanto a dir qual era è cosa dura,

esta selva selvaggia e aspra e forte,

che nel pensier rinnova la paura!


O poema na página. Disseminar palavras pela folha? Nenhuma originalidade. A disposição de versos – fragmentados, soltos, dispersos, etc – vem desde Mallarmé, passando por Apollinaire e Maiákovski, e levado ao ápice e auto-fagocitose em peças concretistas. Nos anos 1960 e 1970 temos esse fenômeno nas obras de Ferlinghetti, de Ferreira Gullar, de Affonso Romano de Sant'Anna. No máximo a plena ocupação do 'branco da página' – em linhas dispersas, descendentes ou ascendentes – alivia um pouco o peso do conteúdo.

Ao menos, ler um poema derramado na página não se assemelha a ler uma coluna de jornal impresso. Apenas isso. Quando se lê o poema em voz alta não se lembra de qual 'espacialização' ele ocupava na página.


No mais, os poemas pouco dizem. Mas brincam com as palavras, exibem 'cerebrações' (raros são emocionais, espontâneos), contorções sintáticas e semânticas, mais ao espírito lúdico do que mensageiro. Alguns exemplos de jogos de palavras, ao estilo Affonso Ávila, com deslocamento e/ou corte de palavras, costuras, vocábulos assemelhados por grafia e/ou sonoridade,

“ urro de lucro / jogo do logro … gosto do malogro” (p. 96)

e “soluço / luxo / lixo” ou “pronto / pranto” (p. 328)

ou ainda “macio / cio” ou “norte/ noite/ morte” ou “brilho / trilho”, ainda “narciso / sorriso” (p. 341)

ou 'desconstruindo' as palavras para construir outras, “decifra-me / dessofra-me / dissolva-me” (p. 400)


Aqui a poesia enquanto jogo de palavras, não de ideias? (voltemos à Mallarmé...) Hoje em dia os poetas 'jogam' com as palavras e dizem nada.

Ainda que tenhamos aqui um conteúdo, um 'algo a mais' que o 'jogo de palavras'. Nesta obra – e na poética - de R. Werneck podemos perceber as relações entre Poesia e Cinema. Assim como em outros poetas entrelaçam-se Poesia e Teatro, ou Poesia e Música.

Da linguagem cinematográfica podemos 'adaptar' alguns termos para a própria crítica – cortes, descrições, percursos figurativos, closes e panoramas, mudanças bruscas de perspectivas, conexões explícitas ou nem tanto , alterações da ordem cronológica, com flashbacks, previsões, reversões, etc.



Intertextualidades:
ensaio sobre a poética de Antônio Miranda
http://www.antoniomiranda.com.br/ensaios/sobre_memorias_infames.html

ensaios sobre a poética de Roberto Piva
http://leoleituraescrita.blogspot.com/2011/07/sobre-poetica-de-roberto-piva-ensaio-1.html

http://leoleituraescrita.blogspot.com/2011/08/sobre-poetica-de-roberto-piva-ensaio-2.html




Os poemas


Podemos destacar em Selva Selvaggia 17 poemas. Peças poéticas com notas 9 e 10, segundo os critérios de clareza; compasso forma-conteúdo; superação do contexto, ser assim atemporal e não um produto datado; influência sobre o leitor, a capacidade de afetar/ comover; em suma, a materialização em poema do fenômeno poético.

Na leitura pouco valorizei os poemas metalinguísticos – com raras exceções – por motivos que já apontei em ensaios interiores (e que se resume a indagação: 'será que os poetas não têm outro assunto além da própria poesia?'), mais preocupado com os critérios citados.

Como o livro se estrutura como um plano em sequências, numa fita de cinema, destaquemos alguns poemas em cada sequência.

Na Sequência 1, temos o poema “panem et circenses” (p. 247, p. 28 no livro original de 1976),


palavra pão coti / diano em ano / panaceia cota



bordado em pó e pano / ceia e um só coti / diano em ano ver
só um só me de / forma e fundo / pão e circo


belas imagens de descrição em “canto da concepção” (p. 251), onde a paisagem existe apenas na interiorização do Eu-lírico, o exterior só existente na sensibilidade interior, como percebemos nas obras de Virginia Woolf e Clarice Lispector,

das dunas das brumas”, “súbita noite de estrela e sono”, “a noite se dissolve” (e não dissolve os homens, como diria CDA)


Em “Viagem” (pp. 252-53) encontramos um interessante metapoema, que explora a sonoridade a la simbolismo (“Antes de tudo, a música”, Verlaine),

vai meu poema / ébrio de lama / e flama l'azur



vai meu poema / cresça sobre o esperma
de meu pasmo atônito / branco do lábio encanto
brando em lado espanto


Em “Limericks” – mais explorações com a palavra com propósitos lúdicos, “som / sol”, “boca/ louca”, “dentro / centro”, “voz/verso”, que podemos comparar com “canto da concepção” e “Viagem” sobre os limites do canto do poeta,


ah mas essa glória brilhuzindo / esse gran falar solto na garganta
quando não é hora certa / viu, poeta? /
esse canto entope engasga e não adianta


Vamos para a Sequência 2, onde destacamos “Teares” (p. 256), com suas assonâncias, aliterações, ao lado de metonímias,

como desfilar / desvios dessofrer
esse tênue tecido / em constante fabrico?



o sol torto / o sim corpo / fio-fascínio
sonda / terna tepidez trazida
na crista / da mais alta onda


Na Sequência 3 muita repetição dos mesmos truques e malabarismos que 'deram certo' nos primeiros poemas, mas 'perdem efeito' em outros. Destaque para “círculo” (p. 288),

lentas mordidas / eu relógio tique- / tapeando o tempo


lentas mordidas / e o amor truque-/ truncando o tédio


Na Sequência 4, temos os jogos de palavras 'mais sintéticos' em “a estrada” (p. 292-293), como o belo final,

a estrada o morto a faca o sertão
são palavras planas
habitadas por sol / e solidão


Já na Sequência 5, temos os mesmos métodos, jogos de palavras, palavras dispersas na página, mas sem alcançar os mesmos efeitos de poemas das sequências anteriores. Na Sequência 6 temos o poema “amada: flashback” (p. 320), onde um retrato desperta lembranças tal se fosse uma madeleine num chá de tília, naquele imaginário proustiano, obcecado em resgatar o tempo que se perdeu,



há que pesar o tempo / encontro grave e vago


trazê-lo à luz da alegria / clarão entrevisto / nas frestas da noite
entre ti e tido e tudo


Meio ao jogos de lirismo lúdico, encontramos o sério “aço e estilhaço” (pp. 321-322), com aspereza e sentimento de perda,

“são ásperas as veredas / do amor / pouco a pouco
despedaçadas”

“são ásperas / e o pouco corpo / vencido”

“são ásperas / e o amor / pouco a pouco / despedaçado”


podemos comparar “aço e estilhaço” com “canção do medo” (p. 325), onde o amor = fracasso vem causar medo naquele que quer amar,

como escapar desse amor / como sustar e assustar
o corpo que me aprisiona

de quantos desencontros / forjado foi quest'amore?'

a temática amorosa (ou dos “desencontros do amor”, especifica o autor) é ainda contemplada em “carta” (p. 337), bem no espírito de um Vinicius de Moraes (“que seja infinito enquanto dure”)

como se diz / è finito
sem mais delongas / ou me debilito

sai desse amor / como da batalha

Temos um poema irônico poligrota, “classroom” (p. 323), isto é, sala de aula em inglês,

trocávamos as línguas / lúdico logro
como se trocam as / língua s lúbrico jogo


Na Sequência 7, temos mais poemas de cunho pessoal, o individualismo e o saudosismo do poeta, mas como dizia CDA, “nem me reveles teus sentimentos, o que pensas e sentes, isso ainda não é poesia”, em “Procura da Poesia”. Nesta sequência faltou o cuidado com a linguagem, a arquitetura lírica – assim são poemas que importam apenas a intimidade do poeta, são desabafos (nem todos os poemas são publicáveis, o próprio Drummond sabia disso). Na Sequência 8, há a tentativa de aproximar poema e cinema, mas só fica mesmo na rima.


Já a Sequência 9 é mais interessante. Encontramos Sílvio Silva, “cidadão e poeta”, um ser “discursivo e panfletário”, uma espécie de alter-ego do poeta. É de certa forma um poema datado, tem o contexto dos anos de 1960, 1970, mas é um texto íntegro, intocável. Não concordo com a crítica de Domingos Pellegrini Jr. , aliás aqui crítica mais ideológica do que estética.

Em “sílvio silva selva”(p. 366-369) temos algo de Vinicius de Moraes (do célebre “Operário em construção”) e de Moacyr Félix (o poeta-engajado),

eu sílvio silva / ofereço meu verbo / de sonho e sacrifício



eu sílvio silva / poeta de copacabana / preparo minhas
palavras / como se prepara / uma bandeira

eu sílvio silva / poeta de copacabana
afio meu verbo / como se afia / e se lança
contra o desafio


Nesta linha de poesia engajada, politizada, temos a incisiva “hungry & co.” (pp. 374-376) que pode ser comparada com os poemas de Félix, de Gullar, de Ávila, além do célebre “United Fruit Co.” de Pablo Neruda, a desmascarar o imperialismo ianque a explorar as riquezas sul-americanas. O jogo de 'homem'/'nome'/'fome', além de sua semântica de contrastes, vem a lembrar o “Especulações em torno da palavra homem” de CDA,

de que vale o homem
contra o nome e a fome

de que vale o homem / contra a fome
a fome e seu nome / Money ?


A condição humana no sistema capitalista é evidenciada aqui como num labirinto de miragens, de buscas fetichistas, de alienação que impede a consciência de classe e mantém o sistema remendado ainda de pé, pois o servo não derruba o domínio dos senhores.


O próprio aspecto comercial na relação Autor – Leitor é explicitado pelo Poeta quando – em sua campanha de marketing para o lançamento de Selva Selvaggia – lembra as condições de produção, pois o poema é um produto de noites mal-dormidas, dramas pessoais, crises metafísicas e financeiras, produto este que é comprado pelos leitores, que pagam tão-somente o papel, a tinta, a encadernação e, of course, o marketing.

Na Sequência 10, o poeta deixa o individual e o coletivo e volta ao terreno semiótico, como demonstra “cygni: cosmovisão” (p. 385), com seu atropelo de signos-símbolos a la Mallarmé - “dados lançados / o jogo cósmico” - via Ezra Pound, via irmãos-concretistas Campos,

garimpando galáxias / por esta imensidade
manhãs sóis vidro vida / isomórfica planície cristal

rosácea metamorfose cor / cel forjado na estrela
da antemanhã

aliás leitura de concretismo que se revela no poema baseado na propaganda da Coca-Cola, já leitmotiv para o célebre “Beba Coca Cola” (1957) de Décio Pignatari.


Dois outros poemas se destacam no fim de Selva Selvaggia. Temos “noturno do leme” (pp. 395-398) a comparar-se com “canto da concepção” (p. 251), onde o eu-lírico filtra subjetivamente o mundo exterior, com sua sensibilidade impregnando o retrato, a descrição, em suma, o painel lírico, entre a satisfação e o desejo de consumo,

entre carros namorados
luminosos lambuzando a aurora
entre hot dog e a coca-cola
a bandeira nos controla



tudo é afável
e terrível / até a perspectiva
da aurora / até o hot dog
e a coca-cola


E finalizando – apenas para voltar ao início – com “around the sixties” (pp. 401-403) que reacende a discussão Texto e Contexto. É um poema para ser lido aos som dos Beatles ou aos solos eletro-guitarrísticos de Hendrix, numa viagem no tempo até as décadas de 1960 e 1970.

Tal uma poética beatnik, com referências de época, ao mesmo datado e atemporal como os poemas beatniks da mesma época, estando no tempo e afora do tempo tal qual as canções dos Beatles ou os solos de Hendrix.


Uma teia de citações e referências que vão destes clássicos estrangeiros aos sucessos do Clube da Esquina, de Milton Nascimentos, dos Tropicalistas, de Caetano Veloso, em suma, é preciso saber em qual época foi escrito o poema para podermos nos deliciar plenamente com o texto.


I want to live to dream”, quero viver para sonhar, diz o poeta, ao som de Beatles, antes que o próprio John Lennon, já descrente, viesse a público para declarar que o “sonho acabou”, The dream is over.

Um contexto de repressão política, censura cultural, guerra fria, faz sentido uma série de trocadilhos e intertextos que para nós da Redemocratização soa deslocado ou afetado. Daí precisarmos voltar ao momento da Escrita.

aroma amor romã
ticos de cuba sex libre

A época de liberdade sexual, da revolução (dita) socialista em Cuba, com a ação das guerrilhas dos Castros e Che Guevara, a busca de exteriorização do inconformismo, da rebeldia, que apenas gerou novos itens de consumo – jeans, camisetas com a foto do Che, produtos para jovens 'descolados', etc. Pois o capitalismo é tão esperto que compra até os inimigos, os símbolos da rebeldia são livremente comercializados!

Os poemas se inserem num momento de incoerências, de contradições, com 'os corações e mentes' pressionados entre a liberdade e a censura, entre a libertinagem e a repressão, ousando lutar contra os dogmas capitalistas, na busca de novos estilos de vida, mas incapazes de superar as contradições, demasiadamente burgueses para desapropriarem a família e crentes demais para se livrarem das virtudes cristãs. Logo outra geração adveio para lutar pela inserção no mercado e pelo acúmulo de lucros.

E o poeta? Deve, após tantas lutas, conviver com um mundo, com uma geração, que pouco sabe das vicissitudes e psicodelias de uma época ímpar na história da civilização ocidental que questionou a própria cultura ao preferir uma selvagem contracultura. Enquanto metade do mundo ainda sequer chegou verdadeiramente à proclamada civilização.


Jul/ago/11


Leonardo de Magalhaens

http://meucanoneocidental.blogspot.com/
http://leoliteraturaescrita.blogspot.com/



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segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Café noturno - Nachtcafé - Gottfried Benn









Gottfried Benn

Nachtcafé

Café noturno


Amor e vida das senhoras.
O cello bebe de uma vez veloz. A flauta
arrota fundo nos três compassos: o belo jantar.
O tambor lê o romance policial até o fim.


Dentes verdes, espinhas na cara
acena a uma inflamação nas pálpebras.


Sebo no cabelo
fala de boca aberta com amígdala
Crença Amor Esperança à garganta.


Jovem papeira é bom nariz chato.
Ele paga para ela três cervejas.


Doença de cabelo compra cravos,
a comover queixo-duplo.


Bemol: a 35ª sonata
Dois olhos berram:
Não derrame o sangue de Chopin no salão,
Para depois a ralé andar ao redor!
Chega! Ei, Gigi ! –


A porta se desloca: uma mulher.
Deserto ressecado. Morena cananéia.
Pura. Cavernosa. Um perfume chega junto.
Sutil perfume.
É apenas uma doce curvatura do ar
contra o meu cérebro.


Uma obesidade tropeça em seguida.



Trad. livre: Leonardo de Magalhaens

http://leoliteraturaescrita.blogspot.com





Nachtcafé


Der Frauen Liebe und Leben.

Das Cello trinkt rasch mal. Die Flöte

rülpst tief drei Takte lang: das schöne Abendbrot.

Die Trommel liest den Kriminalroman zu Ende.



Grüne Zähne, Pickel im Gesicht

winkt einer Lidrandentzündung.



Fett im Haar

spricht zu offenem Mund mit Rachenmandel

Glaube Liebe Hoffnung um den Hals.



Junger Kropf ist Sattelnase gut.

Er bezahlt für sie drei Biere.



Bartflechte kauft Nelken,

Doppelkinn zu erweichen.



B-moll: die 35. Sonate

Zwei Augen brüllen auf:

Spritzt nicht das Blut von Chopin in den Saal,

damit das Pack drauf rumlatscht!

Schluß! He, Gigi! -



Die Tür fließt hin: Ein Weib.

Wüste ausgedörrt. Kanaanitisch braun.

Keusch. Höhlenreich. Ein Duft kommt mit.
Kaum Duft.

Es ist nur eine süße Verwölbung der Luft

gegen mein Gehirn.



Eine Fettleibigkeit trippelt hinterher.



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segunda-feira, 1 de agosto de 2011

sobre a poética de Roberto Piva (ensaio 2)









Sobre a Poética de Roberto Piva (ensaio 2)

Roberto Piva (São Paulo, 1937-2010)



Autor e Obra – Texto e Contexto

Intertextualidades


Poesia hermética?

A Poesia se afastou do povo, se tornou uma peça hermética disputada por sábios e contra-sábios, eruditos e marginais, profetas-beat e professores de literatura, que somente se entendiam – e muito pessimamente entre si-mesmos. Então acontecem que a Poesia ficou mesmo um produto afastado, cedendo espaço para a televisão, para o cinema, para as revistas em quadrinho. Poucos jovens se interessavam por poesia, coisa de gente aborrecida ou doidivanas. Os poetas não mais se comunicavam com um público 'não-iniciado', os poetas eram incompetentes em saírem de seus mundinhos de 'vanguardistas'.


Uma prova da incompetência dos poetas? O fracasso em si comunicarem com os leitores. Os poetas olham para o próprio umbigo – ou se encastelam em estilísticas retóricas, acadêmicas, metalinguísticas, nas defesas heróicas de suas magníficas 'vanguardas'. Enquanto isso o espaço é ocupado pelos cantores populares, que seguem o refrão 'o artista tem que ir aonde o povo está' – daí se considerarem 'poetas' os músicos, que são bons 'letristas' tais como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Raul Seixas, Renato Russo, Cazuza, Arnaldo Antunes, Adriana Calcanhoto, Lenine, etc, pois conseguem atrair atenção com um lirismo que falta aos poetas 'oficiais', aqueles que se acumulam nos currículos escolares – já aprovados para o 'cânone' do sistema educacional.


Assim, devido a tal fenômeno, as letras de música são elevadas a categoria de 'poema', pois os poemas ficaram por demais herméticos – até os 'marginais' são muitas vezes incomunicáveis – por demais atulhados de metalinguagem, intertextualidade, daí porque os poemas que se dizem poemas não mais comunicam. O povo se afastou da poesia porque a poesia se afastou do povo – a poesia virou item de currículo escolar, assunto de tese de doutoramento, não de vida, da vida vivida, pois não se vivia a poesia. Exceto alguns profetas vanguardistas. Enquanto isso os jovens cantarolam letras de músicas do artista pop do momento. Os jovens souberam encontrar um substituto acessível na plena ausência da poesia. Culpa dos ditos poetas.


A questão da 'segmentação de mercado'


Hoje em dia temos linhas editoriais – onde livros são mercadorias – dedicada a vários setores do público consumidor. Há uma série de pesquisas de Mercado que indicam faixas etárias, gostos estéticos, ideais políticos, grupos sociais os mais diversos. Algumas editoras – ou selos editoriais – somente publicam autores afro-descendentes, outros só se dedicam ao religiosos, aos evangélicos, aos cultos esotéricos, enquanto outros se ocupam de homossexuais, bissexuais, o chamado público LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros), que atualmente se organiza para exigir direitos iguais (por exemplo, a uniões estáveis de casais de mesmo gênero).


Contudo, ao contrário de sua personalidade homoerótica, o poeta Piva não escreve apenas para o público homoafetivo, não apenas para os marginais e para os 'beatniks'. Não é uma voz exclusivista, mas ao contrário, uma voz para todos – quem tem ouvidos, que ouça.


Mas devido aos ataques dos demais poetas e do desprezo do público, Piva viu-se acuado, perdeu o que lhe sobrava de serenidade para concretizar, melhorar a obra poética. O poeta deixou-se amargurar pela incompreensão geral e não atingiu o nível de libertação que almeja – assim não pode chegar aos níveis de refinamento poético de um Walt Whitman ou um Gary Snyder.


Daí muitos críticos apontarem o ressentimento do homossexual contra o mundo heterossexual. Que a escrita apresentaria uma agressividade homossexual – quase diriam 'heterofóbica'. Mas esquecem que o eu-lírico devolve a agressão que sofreu primeiro, a discriminação de seu modo de afetividade e de vida sexual, julgado como 'perversidade', ou 'pecado'. Como pode um homossexual ser feliz num mundo dominado por heterossexuais perseguidores?


A comparação com Whitman se sustenta. Mas há uma diferença essencial: enquanto Whitman mostra a superação do ressentimento com a aceitação do Outro – afinal, o EU de Song of Myself é um Ser formado em comparação com os Outros, e chega ao ponto de incluir os outros, o EU torna-se múltiplo, “se eu me contradigo? Sim, eu me contradigo. Eu contenho multidões.”, o poeta confessa. Assim, o Eu não entra em confronto com o Outro – o Eu absorve a idiossincrasia do Outro e se fortalece – o canto que seria egoístico em outro poeta, com Whitman torna-se um voz coletiva, um poema plural.


Certamente o Eu egocêntrico da maioria de nós se constrói com a humilhação e o desprezo do Outro – o Eu que não sou o Outro – mas no egocentrismo de Whitman (que adora falar de si-mesmo) há o Eu pluralizado, agigantado a ponto de conter o mundo. Tal poética é admirada e retrabalhada nas obras de outros poetas admiráveis tais como Fernando Pessoa, Lorca, Neruda, Ginsberg, o próprio Piva. São poetas que se acostumaram a ler poetas e assumiram a plena intertextualidade, o diálogo entre poéticas.


Tanto que poetas não homoafetivos leem tranquilamente a obra de Whitman que é homoerótico e levemente bissexual, ou seja, uma sexualidade plena, sem limitações hipócritas do 'normalpata', cheio de neuras quanto a própria sexualidade. Mas poetas homoafetivos são mais destacados quando dialogam, assim Whitman tem como interlocutores as vozes poéticas de Lorca, Ginsberg, Piva, Elizabeth Bishop, para citar os renomados.



Ainda o Eu


Se o Eu-lírico é o Poeta quem fala, enquanto pessoa e enquanto Autor (ser-textual) quem confessa uma dor fictícia ou real, ou finge uma dor que realmente sente, é este Autor que desperta o olhar voyeur dos leitores. O sofrer do poeta é mais interessante, o sofrer do poeta sublimiza o texto. Parece ser assim.


O poeta Paulo Leminski escrevia com ironia amarga, “um homem com uma dor é mais elegante... carrega o peso da dor como se portasse medalhas”, daí o fascínio que a dor autoral desperta. Mas teremos então a ênfase na biografia do Autor ou na Obra em si-mesma?


Parece haver um interesse pelos 'bastidores'. Quem escreveu? Como escreveu? Por que escreveu? Escreveu por que foi traído? Por que foi preso? Por que foi assaltado na avenida Paulista? Por que foi condenado pela Polícia Federal? Por que foi violentada pelo padrasto? Parece que a biografia traz o fascínio – não a Obra.


Ainda mais quando entra em campo as 'minorias'. Se o autor é deficiente, ou se é homossexual, ou se é aidético. Se o autor é esotérico, ou cabalístico. Basta não ser católico, heterossexual, branco ocidental para ser classificado como 'estranho', 'exótico'. O gênero sexual é logo catalogado, classificado. Quem compartilha os lençóis do autor, da autora? É solteiro/a, casado/a, amasiado/a? Viúvo/a, divorciado/a, desquitado/a? Há toda uma curiosidade extra-obra que surpreende – como se o autor fosse celebridade, artista de cinema. Basta escrever um livro.


O autor escreve para se entender e se orgulhar. Certo. Orgulhar de que? Da opção sexual? Se escolhe a sexualidade? Orgulho de ser homem? De ser mulher? Alguém escolheu ser homem ou ser mulher? Não se nasce com determinados órgãos genitais que determinam uma forma educacional e um estilo de vida? Como então isso de escolher? Um homem pode não querer ser homem – e uma mulher pode não querer ser mulher. Ambos pagam um preço – serão exóticos à um padrão de normalidade.


Orgulho de ser o que não se escolheu? Orgulho em ser gay por não ser normal? Um contra-orgulho criado na 'resistência' ao outro – o ser-normal? Mas um gay escolhe ser gay? Não tem uma sexualidade tão determinada quanto um heterossexual? Posso me orgulhar de passar no vestibular ou de ganhado dinheiro, ou ter vencido as 500 milhas de Indianapolis, mas como posso me orgulhar de ter uma certa sexualidade? Nem sei porque tenho tal sexualidade – apenas me conformo com os órgãos genitais que compõem o meu corpo, o qual não escolhi.


Também o psicanalista Sigmund Freud estudava detidamente estes problemas de ordem sexual. O quanto tudo o que sentimos e desejamos é 'inconsciente', é sem escolha. É um delírio íntimo, um pecado acariciado, um fetiche, um desejo inconfessável e impraticável que nos move e não aceitamos isso! O Ego e o Superego lutam sempre contra o Id – nosso delírio inconsciente que busca o prazer. Prazer que julgamos escolher.


Nesta luta do Eu consigo mesmo, entre o impulso íntimo e o dever externo, em plena vida social, o indivíduo batalha em duas frentes – desenvolve um eu diante de um Outro (cada não-Eu e grupos de não-Eus). Assim para melhor definir-se cristão, basta atacar os pagãos, os ateus , os islâmicos. Para se melhor afirmar como atleticano, o Eu ataca os cruzeirenses. Para melhor se posicionar enquanto homem, o Eu ataca o ser feminino em si mesmo e no outro, ataca os homoafetivos. Quando mais inseguro de si-mesmo, mais estará disposto a atacar. O heterossexual seguro de sua própria sexualidade convive bem com homossexuais.


Por outro lado, o Eu não apenas despreza e ataca o outro. Senão a vida seria uma selva darwiniana. O Eu despreza e deseja o Outro, o Eu quer que o Outro aceite o ideal do Eu, o Outro que será um olhar de legitimidade – o Outro é que diz quem Eu sou. O eu deseja algo do Outro – o olhar? o corpo? a glória? - assim como o Homem despreza e deseja a Mulher – ela é não-homem, e dá prazer físico, e assim a Mulher despreza e deseja o Homem – ele é não-mulher, e dá prazer.


O Eu não vive sem Outro. O que seria do cristão sem o não-cristão? O que seria do são-paulino sem o corintiano? O que seria do militarista sem o anarquista? São complementares por mais que se odeiem – afinal, o ódio é apenas o amor com sinal invertido. A não-relação é a indiferença.


Influências / intertextualidades na poética de Roberto Piva


Os poetas malditos (poètes maudits) franceses do século 19, a saber, Baudelaire, Rimbaud, Verlaine, Lautreámont, Corbière. Os poetas malditos do século 20, dentre eles, os poetas Garcia Lorca, Jean Genet, Antonin Artaud, e o cineasta Pier Paolo Pasolini.


É a busca de uma irracionalismo ao 'desregrar todos os sentidos' igual um Rimbaud num 'barco bêbado' de versos, numa fluência livre, as verdadeiras 'palavras em liberdade' como proclamava um neurótico da velocidade Marinetti, sem qualquer contenção racional como labutaria um engenheiro-poeta João Cabral de Melo Neto, ou a palavra-lavra na práxis de um Mário Chamie. Há todo um sensacionismo de um Álvaro de Campos (o heterônimo futurista Fernando Pessoa) numa verborragia de sentimentos desconexos e simultâneos por fluência do poeta Rilke em suas longas elegias, ou os poetas expressionistas com suas descrições cinematográficas de paisagens.


Crítica que relaciona Rimbaud e Piva
http://www.revistazunai.com/ensaios/anderson_fonseca_roberto_piva.htm


Também os Beatniks se insinuam nos textos polifônicos de Piva, com destaque para Kerouac, Ginsberg, Burroughs, Gregory Corso, Gary Snyder, todos estes leitores do poeta-guru Walt Whitman. Outro guru da geração beatnik é Henry David Thoreau (1817-1862), pensador anarquista individualista, autor de “Desobediência Civil”, 1849, e “Walden”, 1854.


Outra influência perceptível é a do heterônimo Álvaro de Campos, persona-lírica, exaltada e prolixa, entre futurista e surrealista, do português Fernando Pessoa, outro leitor entusiasta de Whitman, como percebemos em “Saudação a Walt Whitman.”


As influências brasileiras são os textos dos modernistas Mário de Andrade (autor de “Paulicéia Desvairada”, 1922 ), Jorge de Lima, da primeira fase, antes de “Tempo e Eternidade” (1935) e o Murilo Mendes da fase surrealista (obras “Poemas”, 1929; “Visionário”, 1933)


Os poetas 'beatniks' de São Paulo se assumiam 'antropófagos' - tais como os modernistas Oswald e Mário de Andrade – ao digerirem as poéticas dos autores norte-americanos, assim como os Andrades sugavam as poéticas dos simbolistas, dos surrealistas e dos futuristas franceses. Até porque eis uma vantagem de ser 'colonizado': poder digerir os colonizadores! Nós enquanto colonizados temos acesso às culturas europeia e norte-americana, enquanto os europeus e norte-americanos pouco sabem sobre a nossa cultura.


A mistura de realismo e surrealismo numa linguagem metafísica-metafórica exagerada, chocante, eis algumas similaridades que encontramos entre as poéticas de Piva e Ginsberg. Ambos os poetas falam de fatos e pessoas reais – do convívio ou da memória – em episódios verídicos, até históricos, mas com uma linguagem surrealista. Seria como dizer “Fui abduzido por serafins extraterrestres no quarto andar da Fafich”, o que inclui elementos do mundo ficcional, mitológico, religioso, ao lado de um elemento concreto, existe o 'quarto andar da Fafich', tem endereço, é encontrado no mapa.


Podemos comparar os poemas verborrágicos de Roberto Piva com os poemas verborrágicos de Ginsberg – e até com a prosa exagerada de um James Joyce – uma tentativa de 'esgotar o assunto', de dizer tudo, sem deixar lacunas ao leitor – bem ao contrário da concisão de uma Emily Dickinson e um Paul Celan – pois são verborrágicos porque desejam 'abarcar o mundo', não são seletivos, derramam tudo sobre o papel , isto é, sobre o leitor. Não escrevem poemas, fazem conferências, palestras sobre a náusea existencial.


As marcas intertextuais podem ser explicitadas e listadas. Mas dois exemplos são suficientes. Temos o poema “No Parque do Ibirapuera” (em “Paranoia”, 1963) onde Piva dialoga com Mário de Andrade, no mesmo estilo de “Supermarket in California” onde Ginsberg dialoga com Walt Whitman.


“Eu te imagino perguntando a eles:

onde fica o pavilhão da Bahia?

qual é o preço do amendoim?

é você meu girassol?”

(No Parque Ibirapuera)

I heard you asking questions of each: Who killed the
pork chops? What price bananas? Are you my Angel?”


(A Supermarket in California)


A referência ao girassol (“é você meu girassol?”) evoca também outro poema de Ginsberg, “A Sutra do Girassol”, “Sunflower Sutra”, onde o poeta nos lembra que não somos máquinas cobertas de ferrugem, mas que somos girassóis que esqueceram que são girassóis. O próprio girassol que se confunde com as locomotivas do pátio. Uma metáfora para a desumanização do homem.

O “Não sou piedoso / Nunca poderei ser piedoso” de Piva em “A Piedade” (também de “Paranóia”) pode ser encontrado no paralelo “Todos são sérios menos eu” de Ginsberg em “America”(“Everybody's serious but me.”)

os comunistas são piedosos

os comerciantes são piedosos

só eu não sou piedoso”
(A Piedade)


Businessmen are serious. Movie producers are serious. Everybody's serious but me.”
(America)


Há uma ‘teia de intertextualidade’ onde Ginsberg escreve um poema para Whitman (“Supermarket in California”) enquanto Piva escreve um poema influenciado a um outro poeta, Mário de Andrade (“Parque Ibirapuera”). A “Ode a Fernando Pessoa” lembra a “Ode a Walt Whitman” escrita pelo próprio Fernando Pessoa-Álvaro de Campos para o bardo norte-americano.

Em “Meteoro” (também em “Paranóia”) Piva dialoga com um poema famoso do poeta chileno Pablo Neruda, “Posso escrever os versos mais tristes esta noite”, publicados em “Vinte poemas de amor e uma canção desesperada” de 1924.

Eu direi as palavras mais terríveis esta noite

enquanto os ponteiros se dissolvem

contra o meu poder


(Meteoro)


“Posso escrever os versos mais tristes esta noite.

Eu amei-a e por vezes ela também me amou.

Em noites como esta tive-a em meus braços.”


(Poema 20, Posso escrever os versos mais tristes esta noite)


Notamos num poema como “Meteoro” uma voz lírica que se dirige as outras vozes líricas, a outras almas expressionistas, outros seres atribulados, marginais ou não, canônicos ou não, mas todos afetados pelo mesma inquietude diante da existência, sejam filósofos, poetas, pintores, outros artistas belos e malditos,

no alto da Lapa os mosquitos me sufocam

que me importa saber se as mulheres são

férteis se Deus caiu no mar se

Kierkegaard pede socorro numa montanha

da Dinamarca?



eu urrava meio louco meio estarrado meio fendido

narcóticos santos ó gato azul da minha mente

Oh Antonin Artaud

Oh Garcia Lorca

com seus olhos de aborto reduzidos

a retratos


A poesia com surrealismo embriagado e misantropo de um Lautréamont (Les Chants de Maldoror) ou com a morbidez de um Augusto dos Anjos (ver os quatro poemas 'contidos' “Quatro Poemas Pivianos”), onde as imagens tétricas misantropas do poète maudit se mesclam com as imagens de finitude do ser consciente nos versos sepulcrais do vate brasileiro (o 'poeta necropolitano'?),

Eu era um pouco da tua voz violenta, Maldoror,

quando os cílios do anjo verde enrugavam

as chaminés da rua onde eu caminhava

E via tuas meninas destruídas como rãs por

uma centena de pássaros fortemente de passagem

Ninguém chorava no teu reino, Maldoror, onde o

infinito pousava na palma da minha mão vazia

E meninos prodígios eram seviciados pela Alma

ausente do Criador

(em “Poema Submerso”)


Dêem-me um anestésico. A vida dói e arde.

Não sei controlar meus impulsos demoníacos.

Não acredito em forças de outro mundo.

Sou eu, meus versos e o perigo das frações.


Arranco minhas vísceras poéticas do ostracismo.

Trezentos dias e cinqüenta noites marianas.

O caracol de meus cabelos caídos no chão de espelhos.

O sangue e os olhos transformados em areia cinza.

(em “Quatro Poemas Pivianos”, IV)


Podemos comparar “Paranóia” (1963) com “Pauliceia Desvairada” (1922) A obra de Mário de Andrade, Pauliceia Desvairada, cita e recita cenas e topônimos de São Paulo numa viagem urbana meio delirante meio debochada, com exageradas metáforas e referências ao mundo da moda e do industrialismo, quando as imagens retiradas de líricas românticas soam anacrônicas, sem contexto, como lírios pálidos expostos às fuligens.


São Paulo! comoção da minha vida...

Os meus amores são flores feitas de original...

Arlequinal!... Traje de losangos... Cinza e Ouro...

Luz e bruma... Forno e inverno morno...

Elegâncias sutis sem escândalos, sem ciúmes...

Perfumes de Paria... Arys!

Bofetadas líricas no Trianon... Algodoal!

São Paulo! comoção de minha vida...

Galicismo a berrar nos desertos da América!


No texto de Paranoia, os cenários se correspondem – quatro décadas depois – mas transfiguradas por mais exagero, desespero, alucinação, amargura, deboche e obscenidade. Não há espaço para o lírico que não seja agressão (tanto contra a semântica quanto a moral),


Eu vi uma linda cidade cujo nome esqueci

onde anjos surdos percorrem as madrugadas tingindo seus olhos com

lágrimas invulneráveis

onde crianças católicas oferecem limões para pequenos paquidermes

que saem escondidos das tocas

onde adolescentes maravilhosos fecham seus cérebros para os telhados

estéreis e incendeiam internatos

onde manifestos niilistas distribuindo pensamentos furiosos puxam

a descarga sobre o mundo

onde um anjo de fogo ilumina os cemitérios em festa e a noite caminha

no seu hálito

onde o sono de verão me tomou por louco e decapitei o Outono de sua

última janela

onde o nosso desprezo fez nascer uma lua inesperada no horizonte

branco [...]



Além destes, Piva cita o diálogo com Freud, Rimbaud e Nietzsche, pensadores e iconoclastas da cultura ocidental, que juntamente com Walt Whitman e Hermann Hesse lançaram as sementes do seria a ‘contracultura’ anos 1960 e 1970 no Ocidente.


Eu aprendi com Rimbaud
& Nietszche os meus
toques de Inferno
(Anjos de Freud,
sustentai-me!)
& afirmando isto
através dos quartos sem tetos
& amores azuis
eu corro até a colher de espuma fervente
driblando-me no cemitério
faminto da última FOME
com tumbas & amantes cheios de pétalas
porque o céu foi nossa última chance
esta noite
.




Os Beatnik de São Paulo dos anos 60


A última grande geração de poetas surgidos em São Paulo, que acaba de ganhar um livro. "Os Dentes da Memória - Piva, Willer, Franceschi, Bicelli e uma trajetória paulista de poesia", das jornalistas Renata D'Elia e Camila Hungria, conta as peripécias de Roberto Piva, Claudio Willer, Roberto Bicelli e Antonio Fernando de Franceschi, poetas que incorporaram à lírica paulistana os delírios do surrealismo e trouxeram, através de palestras e traduções, a literatura beat norte-americana até nós. (Apresentado por Claufe Rodrigues).
Fonte: Youtube

videos
http://www.youtube.com/watch?v=PjkC5qr5zgU

.
sobre Claudio Willer
http://www.revista.agulha.nom.br/cw.html
http://www.ucm.es/info/especulo/numero13/c_w_poem.html
http://www.revista.agulha.nom.br/ag35willer.htm
.
sobre Antonio Fernando de Franceschi
http://www.revista.agulha.nom.br/ag44franceschi.htm
http://www1.folha.uol.com.br/folha/livrariadafolha/797605-poemas-de-antonio-fernando-de-franceschi-criam-atmosfera-de-tensao-e-melancolia.shtml


(Em breve ensaio dedicado aos Beatniks de São Paulo)



Os poetas que aceitam a influência de Piva


O poeta Afonso Henrique Neto dono de uma poesia vertiginosa, labiríntica. O poeta segue a tradição de citar poetas, dialogar com outros poetas. Por exemplo, ele dialoga com Lorca em “A Lorca”,

estrelas de sangue e de neve

horizontes descarnados

sol sem luz

torta manhã

nos olhos

(seca romã)

de federico parado

de federico dormido

de federico cuspido

de federico e seu nada
granada

lados feridos


Também dialoga (no poema “Pensando Murilo Mendes”) com outro poeta igualmente referencial para Piva, o mineiro Murilo Mendes, o surrealista que se converteu ao cristianismo,


pensamento a soabrir a pálpebra

para fora da luz

antiuniverso da matéria

sem palavras.

orfeu hidrofeu catastrândula.

entre os mortos

e a congestão nasal

passeia um sacerdote antiquíssimo

e a sábio indiferença

do abismo oval.

tudo enlouqueceu

às vésperas do sonho.


Outros poetas são invocados pela voz lírica de Afonso Henrique, dentre eles o memoralista Pedro Nava e o contista argentino Jorge Luis Borges. Há um farto material em homepages e blogs. Eis alguns links,

poemas
http://palavrarte.sites.uol.com.br/Equipe/equipe_ahgneto_poemas.htm

ver crítica
http://www.jornaldepoesia.jor.br/ag48neto.htm

ver video
http://www.youtube.com/watch?v=to5_jnWtIf8



O poeta Rubens Zárate que publica em revistas literárias. Há um interessante e iconoclasta poema de Zárate chamado delicadamente de “Uma Vita Violenta” onde os poetas são agredidos e violentamente chacinados em tom lírico-expressionista. Na primeira estrofe temos o nome de Roberto Piva, vejamos,


o poeta Gregório de Matos foi xingado pelos eguns das cerimônias selvagens que seus
escravos celebravam na beiradas da Bahia
& o poeta Roberto Piva foi linchado por gangues de carecas munidos de paus & coturnos
sob o olhar dos anjos andróginos do Largo do Arouche


Outros muitos poetas, nacionais e mundiais, são citados, a constar, Gregório de Matos, Gary Snyder, Ginsberg, Hölderlin, Gregoy Corso, Coleridge, Dylan Thomas, Verlaine, Mallarmé, Trakl, Andre Breton, Artaud, Dante, todos com vida trágica, enquanto o poeta Sérgio Bernardo acrescentaria ainda Lorca, morto pelos fascistas espanhóis, e Oscar Wilde, encarcerado devido a sua homoafetividade. Aliás, podem ser acrescentados outros tantos nomes. A vida de poeta é figurada -e vivenciada mesmo - como uma 'vita violenta'.

ver blog
http://nigrasedpulchra.blogspot.com/



Estes ‘seguidores’ – dentre outros que apenas se iniciam na arte poética – mostra que a poética de Piva ainda não engavetada – posto que ainda nem lida nem digerida – mas ressurge como uma flor no asfalto, um farol entre os recifes da mesmice da poesia-que-fala-de-poesia da literatura dita pós-moderna.


Jun/11

Por Leonardo de Magalhaens


http://meucanoneocidental.blogspot.com




Referências


ANDRADE, Mário de Andrade. Paulicéia Desvairada. São Paulo, 1922.

PIVA, Roberto. Paranoia. São Paulo, 1963. São Paulo, Instituto Moreira Salles, 2010. 2ª ed.

________ . Antologia Poética. São Paulo, 1985.



Links para sites pesquisados na internet


Um blog dedicado aos poemas de Roberto Piva
http://robertopiva.blogspot.com/

Artigo sobre Piva em blog
http://simaopessoa.blogspot.com/2007/01/poesia-xamnica-do-beatnik-surrealista.html

Entrevista com Piva
http://www.germinaliteratura.com.br/literatura_out05_robertopiva1.htm


Crítica sobre obra de Piva
http://www.revista.agulha.nom.br/agulha6piva.html
http://daliedaqui.blogspot.com/2008/04/roberto-piva-ode-fernando-pessoa.html
http://www.triplov.com/poesia/roberto_piva/estrangeiro/index.htm


Crítica sobre “Paranoia” (1963, reedições em 2000 e 2010)
http://www.triplov.com/surreal/piva_claudio.html

http://ims.uol.com.br/galeria/robertopiva/robertopiva.html


A obra Paranoia
http://pt.scribd.com/doc/33761501/Roberto-Piva-Paranoia

a autobiografia do Piva
http://www.subcultura.org/component/content/category/89.html


Alguns links para artigos críticos

http://www.revista.agulha.nom.br/ag38piva.htm
http://www.revistazunai.com/ensaios/anderson_fonseca_roberto_piva.htm
http://felipefortuna.com/robertopiva.html
http://www.antoniomiranda.com.br/iberoamerica/brasil/roberto_piva.html
http://sibila.com.br/index.php/critica/419-roberto-piva-entre-o-mito-e-o-merito
http://www.colheradacultural.com.br/content/20091108231742.000.4-N.php
http://www.alexandremarino.com/2010/07/um-poema-de-roberto-piva.html
http://cartilhadepoesia.wordpress.com/2010/08/24/roberto-piva/
http://www.triplov.com/novaserie.revista/numero_02/claudio_willer/index.html
http://www.revistazunai.com/ensaios/chiu_yi_chih_roberto_piva.htm


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