segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Vamp Tale - O Homem Caolho (LdeM)




O Homem Caolho

A tempestade vem castigar a orla marítima, ameaçando uma aldeia de pescadores, sob a luz do farol bruxuleando na noite avançada. Arrogantes, por entre os arrecifes, as ondas ameaçam os litorais, ofertando à aldeia uma atmosfera úmida e salgada.

Os dois vultos, sob o abrigo dos galpões, ali no cais, observam a borrasca, que vem agitar os seus sobretudos. Um tremor a transmitir-se dos clamores rudes dos trovões até as faces rígidas, e pálidas.

O que se chamara Wendy Stake, traços de maturidade e experiência, num corpo saído da adolescência, se abriga melhor, nas vestes acolchoadas, contra o vento insinuante.

Ao seu lado, o outrora Cyril Walpole, estende os olhares até a manta alvacenta onde o firmamento tempestuoso encontra a massa das águas oceânicas.

Ambos em resguardado silêncio, presos a seus próprios fragmentos de recordações. Enquanto o vento dança e rodopia, difundindo gotículas e sal marinho, os dois vultos, imagem decadente de corpos vivos, podem vislumbrar nas águas turbulentas a metáfora de suas desgraçadas existências.

Outrora homens ligados, e dependentes. Hoje, restos de peregrinações incertas e inúteis. O antigo Sr. Stake, comerciante, mercador, voz ativa no Conselho de sua importante cidade, portuária e administrativa. O antigo senhor Walpole, acionista majoritário de uma companhia de navegação, dono de estaleiros, batizara muitos navios, que singraram audaciosamente os mares durante a última Grande Guerra.

Porém suas existências sob os nomes civis são névoa tênue, que emergem dos profundos abismos da fatalidade em momentos de insondável contemplação. Ondas açoitando um litoral indefeso - eis um cenário propício!


Slug, ou Lesma, como agora é invocado o antigo Sr. Walpole, devido a seus movimentos de apurada lentidão, vê na fúria das ondas o espumar da resistência de suas vítimas. Ou o borbulhar do sangue no corpo amedrontado. Ou o esguinchar da vida na carícia do beijo fatal.

Agasalhado, Stake é ainda incapaz de vencer a frieza que o envolve. Um frio desde dentro. Ele que aceitara sua horrenda condição e para a qual convidara um candidato a elo na sua corrente de rivais. Ele estendera a mão, ainda que rude, ao poderoso Walpole, ou Slug, convidando-o para uma bem diversa existência de competição e caça. A sobrevivência predatória no jardim selvagem sem deuses.

Súditos de Sua Majestade, imaginavam as Ilhas além-mar, os prados verdejantes e as Terras Altas, os castelos e as lendas as quais davam abrigo. Ambos viam na superfície da água a mão a receber a espada do antigo rei bretão.

E meio século de errância! E onde o Sr. Stake, herdeiro, voz persuasiva, bem-sucedido, jovem esposo? Onde seu sonho? The House of Commons? E onde o Sr. Walpole, construtor de navios e de um império? O pai de cinco existências caído nas malhas da teia de um jovem enlouquecido?

Ambos haviam desaparecido a bordo de um transatlântico, enquanto temiam os submarinos alemães. Corpos jamais encontrados, diziam as manchetes. Mas ninguém notara que um deles já estava morto, meses antes.

Mas não se jogaram ao mar. A vítima fora ocultada, em torpor, meio aos caixotes, nos decks inferiores. No cais da cidade mediterrânea a carga foi desembarcada normalmente.

Sim, quantas lembranças! Mas agora não apenas as ondas eufóricas atraem a atenção dos vultos de sobretudo. Observam que numa esquina está um sujeito. Aparentemente também a observar o mar. E há muito a se observar! Barcos são invadidos, virados. Velas são rasgadas, casebres destelhados. A avenida litorânea tomada pelas águas.

O cidadão atento às convulsões da tormenta, e os vultos atentos ao mínimo gesto do cidadão. Sim, observam-no cuidadosamente. O sujeito parece olhar meio de lado, assim inclinado para a direita. Em dados momentos até parece que é o sujeito que observa os vultos.

Este mútuo interesse incomoda os seres de ar tão sombrio, que abandonam a contemplação da tempestade, e adentram as ruas enlameadas da cidade portuária.

Porém, nas trevas densas, os pálidos vultos sentem a companhia. Na escuridão um único olho brilha. Um homem se aproxima. Não se incomoda com os sinistros. Até parece segui-los! Será o sujeito do cais?

Seguindo para Oeste, antes do amanhecer estão em Le Havre. De onde, no entardecer do segundo dia, saíra um navio para a Escandinávia, com parada em Rotterdam. Eis a conexão que trouxera os vultos ao litoral norte, tão próxima de casa. a antiga casa, o único lugar, o último lugar ao qual puderam considerar um lar.

Stake lança um olhar ao seu amante de gestos lentos. Slug seguia em passadas ritmadas, sem sobressaltos. Ambos em silêncio. Stake atento aquele que poderia ser seu pai, mas no entanto, no mundo sombrio, é o seu filho. Como ousaria abandonar Walpole na morte? Ainda aquela admiração adolescente?

Stake imerso em seu manto de ternura, Slug em seu silêncio lento e pegajoso, e as pegadas de um terceiro ecoam nas paredes lodosas. A presença do curioso incomoda, a situação é toda muito peculiar.

O homem está próximo. Em sua face um olho atento, intimidante, enquanto o outro jaz inerte, a órbita num corte grotesco. Um ciclope?

Uma voz sóbria e profunda:

- Senhores, espero que nesta escuridão possa lhes servir, como guia, o meu único olho.

Os vultos entendem. Sim, o "homem caolho", One-eyed Man. A advertência de Montauban. Sobre o homem cegado por uma estaca, quando tentava cravá-la em um dos nossos. Agora, seu ódio guia-o por décadas, ou serão séculos?, dentro da noite, caçando impiedosamente. Sua vingança espelhada em seu único olho de ciclope!

Stake segura o braço de Walpole, agora à espera da fatalidade. Ambos sabem que acabam de encontrar o fim. O fim, realmente. Nada de lutas, resistências vãs.

E sabem que assim, em tal atordoamento, facilitam o trabalho do homem de um olho só.

Na escuridão um único olho brilha.

Agora o jovem pai procura o velho filho e no silêncio do gesto se despedem. Ansiosos, aguardam, enfim, a segunda morte.


Jul/01/Jan/05


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