sobre o CD “Musicacha/ Cachaprego” (2010)
de Gilberto Mauro / Wilmar Silva
de Gilberto Mauro / Wilmar Silva
Quando a Poesia se liberta do papel
Quando CACHAPREGO, a obra protopoética, visceral, agroLírica do
poeta e ator Wilmar Silva, foi lançada em 2004, nos jardins internos
do Palácio das Artes /BH, poucos se atreveram a desbravar esta selva de
signos no cipoal hermético.
Este crítico confessa que – humilhado, assustado – deixou o volume
(presenteado pelo próprio poeta!) resguardado no olvido da estante pelo
período cósmico de três translações. A leitura de CACHAPREGO somente
foi ousada em 2007, após o lançamento da obra-prima Estilhaços no Lago
de Púrpura (obra que consumou a sedução).
Afinal, CACHAPREGO não é leitura 'popular', não é tampouco 'hermética'.
Não. A Obra – não poema, não uma fragmentação de poema – mas uma
Escrita = Oralidade sem outro parâmetro que a Ruptura com o 'estado de
dicionário', o pensar gramatical que 'engessa' a fala poética. Trata-se mais
de uma 'subversão' rumo a uma reconstrução, a exigir do Leitor a pulsão
que moveu o Autor: a OUSADIA.
A incapacidade de Leitura não é apenas fruto (ou erva daninha) da ausência
de decodificação (num país de analfabetos totais e funcionais) mas princi-
-palmente do desinteresse, da falta de força de vontade, da esgotada ousadia
de ler. A leitura não extamente como 'informar-se' sobre o mundo OU
'fantasiar' sobre um mundo outro. Leitura como forma de 'deglutir e digerir'
a Escrita e absorvê-la no cerne vital de quem lê. A Leitura é participativa –
re-cria a Escrita, re-vivifica o/a Autor/a.
Há toda uma 'indústria cultural' montada em torno da leitura – best-sellers
em megastores, bookstores e bienais – mas ainda maior é a indústria
montada em torno do não-gostar-de-ler, com milionárias campanhas para
cinema, ou TV, ou shows musicais (de preferência, bandas gringas). Para
que ler o livro, se você pode ver o filme? (Quem não conhece a Alice-que-
-correu-atrás-do-coelho-apressado basta ir ver o novo filme do Tim Burton...)
Livro é outra mercadoria? Mas, e o 'conteúdo' do livro? O Conteúdo não
é 'algo' à venda – o conteúdo (o enredo, como queiram) é fruto de uma
interação entre a Escrita e a Leitura (ou mais fisicamente, entre o/a Autor/a
e o/a Leitor/a) através do ato de despertar as ideias do estado de dicionário,
do conjunto de caracteres numa folha impressa. Assim, repito, a Leitura é
o outro-lado da Escrita. Moedas têm cara e coroa, coins have heads and tails,
o Livro tem Autor e Leitor. (Um nome científico? Pois bem, 'Simbiose'.)
Ok, agora para aqueles que não ousam se aproximar de certos livros – ou
porque não 'têm tempo' (time is money!) - a indústria cultural já solucionou
o problema (que nós mesmos criamos) com a figura do áudio-livro, audiobook,
livros para ouvir, em MP-3 etc. É mais fácil e cômodo ouvir “Guerra e Paz”
do que sentar para ler mais de mil páginas.
E para quem não ousava se aproximar – ou se entregar – a força agroLírica
de CACHAPREGO, não há mais desculpas. Recentemente lançado – no
evento literário VERÃO POESIA, em fevereiro deste ano, no Palácio das
Artes, BH, o CD Musicacha Cachaprego, com composição/ produção
musical de Gilberto Mauro e voz/ interpretação de Wilmar Silva.
Não há mais desculpas, caro Leitor, cara Leitora. “É só se não quiser”. O
lance está todo 'mastigado', é só engolir. Como assim? Se você não gosta
de livro (oh mein Gott!) pode ouvir os trechos em redemoinhos em arrepios
no seu moderno CD player.
E Musicacha merece elogios – como raramente tenho oportunidade de elogiar.
[Não que eu esteja poupando elogios para investir na minha velhice, mas é
que vou elogiar o quê?] Aqui Musicacha se destaca como um empreendimento
artístico de rara beleza, a ousar resurgimento da fala poética além do texto
em papel. Não é apenas um poeta a declamar poemas (coisa aliás um tanto
quanto comum), mas uma Poesia que volta a ser o que sempre foi – Música.
Se o texto 'engessa' a expressão poética, a declamação, a atuação da fala faz
reviver o ciclone lírico em toda a sua plenitude. De forma que – pra mim –
' poesia sonora', 'Biopoesia', 'poesia biosonora' é tudo pleonasmo. Poesia é o
som das palavras – não caracteres numa página de livro. [Poesia 'visual'?
Um momento. Não trataremos aqui de artes plásticas...]
Nesse sentido pode se aceitar a provocação de Wilmar Silva - “poesia não é
literatura” - no propósito de ver a Poesia ALÉM da forma literária, a considerar-
-se sua forma-mor, a Escrita. A ser revisada, publicada, resenhada. A Poesia
é para ser 'explicada' mas avaliada pelos órgãos dos sentidos em toda a
plenitude (nome técnico: Sinestesia)
Wilmar Silva (que julgamos conhecer) apresentou-me a figura ímpar de
Gilberto Mauro, numa mesa de café, enquanto debatíamos o sentido da
existência e os ditos 'experimentalismos' que assombram o mundo da música
(principalmente o 'pop'), enquanto Gilberto rememora lances de sua leitura
(ou audição) de mundo, nas ondas de influências de prog rock, soundtracks
de filmes clássicos, Mancini, Legrand, Morricone, diálogos com o
Clube da Esquina, Kraftwerk, etc para trabalhar justamente este 'resgate'
da Sinestesia. Assim, não sendo 'poema' mas 'proto-poema', não sendo
'obra' mas ruptura', CACHAPREGO foi fagocitado em ritual antropofágico
até gerar este Musicacha.
Trata-se de uma 'outra oportunidade' dada à obra de WS, para abrir 'novas
frentes', e conquistar os leitores a procura de um Autor. É possibilitar um
acesso à musicalidade dos longos versos ásperos emaranhados de
CACHAPREGO. Selva que Gilberto desbravou, segundo diz, ao buscar
“um acesso ao poema” antes “de fazer a música”. Música aqui além de
conceitos. Estamos a falar aqui de 'ambiências sonoras', 'atmosferas acústicas',
'efeitos sonoros', samplers, colagens, edições, vozes e vozes sobrepostas.
“Eu só escarevo quando esqueço que escarevo...” uma voz que ecoa a si mesma
tal um corte áspero a retalhar um cortejo fúnebre, o poeta exaltado atentando
contra o tom melancólico de um violino sampleado. Ou a voz ecoando
redizendo ora pausada ora frenética, ao som do que seria uma toada de viola
caipira, cada sílaba “rolada a céu aberto”, onde os efeitos de vozes sobrepostas –
os poemas foram gravados até dez vezes! com 'ritmos' e 'interpretações' diversas! -
-criam um algo de 'esquizofrênico', de 'bipolaridade', onde vozes recobrem a voz
até com a própria voz invertida! Ressoando num fundo de caverna (aqui seria
o B.G.), a desafiar, “e você que diz esconder mil medusas na pele”, a golpear
com a aridez de cada sílaba.
Efeitos que soam psicodélicos viajantes sonoridades de Emerson Lake & Palmer
Pink Floyd Yes, Alan Parsons Project na vastidão de um campo aberto, um
símbolo do idílico e do bucólico, onde a voz caipira de WS ressoa como um
estranho Arcadista ou pré-Romântico a entoar imagens poéticas enquanto
vem e vai a capinar o chão de pó e pedra, “uma mistura de enxadadinha que
trabalha bem”, que vem e vai a reverberar reverberando.
Turbilhão de voz/es que se confudem num piano jazz ora degustando o
clássico ora se arranhando no áspero, na poeira levantada por “cavlaos
selvagens que indóceis e indomáveis” atravessando a planície pedregosa,
a estepe tempestuosa do poema (ou 'não-soneto'), costurando as imagens tecidas
meio aos insetos esvoaçantes e vozes avoantes, tudo pronunciado por uma eco-
reverberante “umabocacarnuda” a gênese da própria fala.
“Eu que venho sorvendo os floemas de meus poemas” a voz a rasgar a
distorção, ou invadir a percussão áspera a la Uakti, a la Babilak Bah, não
exatamente uma “orquestra de enxadas”, mas – segundo o Músico – o bater
de um colher num corpo de botijão – a trilha sonora ideal para uma voz
exaltada revoltada revoltosa a desabafar “é minha ador que habita eme meu
peitoi e só eu hei delevar adiante” na figura do poeta que tal um cristo sofre
solitariamente a sua crucificação. A sina sofrida do poeta serve assim aos
propósitos de instrução (e entretenimento) da massa de leitores.
Um delírio sensual, de sexo selvagem percorre a enxurrada de sílabas
silabações numa atmosfera de piano elétrico onde o lirismo abafa o eu-que-
-fala, não mais uma interpretação mas a confissão da máscara, “a origem do
xamam que diz sexo em minhas orelhas” onde o ritual recria o místico e o
sexo é lembrado como o que sempre foi: origem da vida.
“sou este cio que vem do véu de relvas” quando após o gozo voltamos ao tom
algo melancólico do início – num movimento de ária – onde a 'depressão
pós-coito' deixa os finalmente de 'não mais desejos', 'no more desires', a
melancolia Romântica a percorrer as geografias do ser amado, idealizado ou
possuído, para perder o fôlego faltante resfolegante do eu na selva de sinestesias
'floresta de símbolos' onde “íris que irizem peixes e pirilâmpados iluzminem eus”.
Tão-somente 10 faixas, 22:14'', mas a trilha sonora de uma existência inteira,
a companhia certeira para uma noite de solidão, um interlocutor a monologar
nossas próprias inquietações, uma voz plural de Eus cambiantes que fluem
com o discurso assim pianos dissonantes em sinfonias bucólicas ou árias rurais,
pastorais de “uma ovelha longe das ovelhas” (ELP)
Assim é Musicacha, um 'trabalho instigante' para “entrar nos poros”,
sem 'experimentalismos' (ainda que o Artista se confesse experimental)
mas 'concretizações' a ousar e assumir a 'ruptura' com a mesmice e
avançar rumo a reCriação – que é o antídoto para a Repetição.
Gilberto Mauro pode ter a certeza de 'estar fazendo a coisa certa'.
E Wilmar Silva, a oportunidade de ser redimido e apreciado pelas
'massas'. E os leitores, bem, quanto aos leitores, digo, Ouçam o Musicacha.
Façam-me o favor!
Abr/10
Leonardo de Magalhaens
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