segunda-feira, 26 de outubro de 2009

WALT WHITMAN - A Base de toda Metafísica





WALT WHITMAN


The Base of All Metaphysics

A base de toda Metafísica


E agora, cavalheiros,
eu digo algo para permanecer nas mentes e memórias de vocês,
como princípio e fim de toda metafísica.

(Igual ao professor aos estudantes
ao término seu curso lotado.)

Tendo estudado os novos e os antigos, os sistemas gregos e germânicos,
Tendo estudado e atento a Kant e Fiche e Hegel,
Situado o discurso de Platão, e Sócrates maior que Platão,
E outros maiores que Sócrates buscados e referidos, inclusive o
divino Cristo,
Eu vejo hoje reminiscências daqueles sistemas gregos e germânicos,
Vejo todas as filosofias, templos e dogmas cristãos observo,
E mesmo abaixo de Sócrates eu vejo claramente,
e abaixo do divino Cristo, eu vejo
o puro amor do homem por seu camarada, a atração do amigo pelo amigo,
de uma mulher pelo marido, de filhos pelos pais,
de uma cidade por outra, de uma terra por outra.


Trad. Leonardo de Magalhaens
Jan/08



WALT WHITMAN

The Base of All Metaphysics


And now gentlemen,


A word I give to remain in your memories and minds,


As base and finale too for all metaphysics.




(So to the students the old professor,


At the close of his crowded course.)




Having studied the new and antique, the Greek and Germanic systems,


Kant having studied and stated, Fichte and Schelling and Hegel,


Stated the lore of Plato, and Socrates greater than Plato,


And greater than Socrates sought and stated, Christ divine having studied long,


I see reminiscent to-day those Greek and Germanic systems,


See the philosophies all, Christian churches and tenets see,


Yet underneath Socrates clearly see, and underneath Christ the divine I see,


The dear love of man for his comrade, the attraction of friend to friend,


Of the well-married husband and wife, of children and parents,


Of city for city and land for land.






sábado, 24 de outubro de 2009

A dama da rua Espinosa (conto)



Conto

A Dama da Rua Espinosa

Mezzanotte. Desço na Pedro II, avenida morta. Noite
de sexta-feira, de agitos obscuros. Ao deixar um sarau
de poemas calientes e corpos desnudos, já de todo
indiferente às sombras dos mendigos abrigados sob
casebres de papelão sob a marquise de loja de auto-peças.

Antevejo um vulto que diria feminino, mas cultivei
prudente dúvida, a considerar a fauna de
quase-mulheres que tem habitat natural nas penumbras
da Pedro II, para a inglória do Imperador...

Mas não posso estar enganado! O olhar é de mulher,
de promessas de luxúria! Assim, a querer dizer algo,
oferecer algo, ou a si-mesma. Mas não a mim! Eis
que ouço meus passos furando a rua morta, ladeira
acima, a Espinosa, prevendo a torre da Igreja, o
inebriante aroma de dama-da-noite no jardim do sacristão.
Prevejo o horário futuro, os ponteiros indicando meia-noite,
ou mais, não sei ainda, tudo está ladeira acima, meus
passos nada mais fazem do que me conduzir.

Mas a dama da rua Espinosa não olha para mim! Mas
para o primeiro carro a parar no sinal fechado. Ao volante
um jovem baladeiro, a desfrutar a fortuna familiar, mas não
tão generoso – não paga o preço, “você está doido?”, a
voz feminina me alcança, o carro já se afasta, a mulher
cambaleia. Depois endireita-se e espera o próximo veículo.
Que passa por mim.

Ao volante vejo um senhor careca, sóbrio e sério, que durante
o dia (e o resto da semana) é pai de família ou desquitado,
dono de mercearia ou vendedor de seguros, mas nas noites
de sexta-feira, ele mesmo, ou seu clone, sai de carro a
admirar - e caçar – as damas da noite, ali no sinal da
rua Espinosa, ou outra rua escura qualquer. E ele paga o
preço! Ela contorna o carro e se vai, os faróis se derretem no
escuro.

Quanto a mim, o que fazer além de seguir ladeira acima? A
ouvir meus passos, com ou sem moralismos, a admirar a ousadia
do trabalho, a oferta do próprio corpo!, da dama da noite, aquela
de olhos faiscantes, de pele brilhante e mini-saia que entrou
no carro e agora a se debruçar sobre a calça do senhor velho
proprietário, agora não tão sério assim...

Os olhos cintilantes ali na esquina da Espinosa, a prometer prazer
e coisitas mais, naquela noite de sexta-feira, onde vultos se excitam
e se seduzem, se arrastam para antros de desejos, desde que
alguém pague o preço.

23/24out/09

Leonardo de Magalhaens

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Octavio PAZ - La Poesia / A Poesia



Octavio Paz

La Poesia / A Poesia

Chegas, silenciosa, secreta,
e desperta os furores, os gozos,
e esta angústia
que acende o que toca
e engendra em cada coisa
uma avidez sombria.

O mundo cede e se derrete
como metal ao fogo.
Entre minhas ruínas me levanto,
sozinho, desnudo, despojados,
sobre a rocha imensa do silêncio
como um solitário combatente
contra hostes invisíveis.

Verdade abrasadora,
Para o que me empurras?
Não quero tua verdade,
tua imensa pergunta.
Para o que esta luta estéril?
O homem não é criatura capaz de conter-se,
avidez que somente na sede se sacia,
chama que todos os lábios consome,
espírito que não vive em nenhuma forma
mas faz arder todas as formas.

Sobes desde o mais fundo de mim,
desde o centro inominável de meu ser,
exército, maré.
Cresces, tua sede me afoga,
expulsando, tirânica,
aquilo que não cede
a tua espada frenética.
Já somente tu me habitas,
tu, sem nome, substância furiosa,
avidez subterrânea, delirante.

Teus fantasmas golpeiam o meu peito,
despertas o meu tato,
congelas a minha face,
abres os meus olhos.

Percebo o mundo e te toco,
substância intocável,
unidade de minha alma e de meu corpo,
e contemplo o combate que combato
e minhas bodas de terra.

Imagens opostas nublam os meus olhos,
e as mesmas imagens
outras, mais profundas, estas negam,
ardente balbuciar,
águas que inundam de água mais oculta e densa.
Em suas úmidas trevas vida e morte,
quietude e movimento, são iguais.

Insiste, vencedora,
porque assim sozinho sou porque existes,
e minha boca e minha língua se formaram
para dizer tão somente a tua existência
e tuas sílabas secretas, palavra
impalpável e despótica,
substância de minha alma.

És tão somente um sonho
porém em ti sonha o mundo
e sua mudez fala com as tuas palavras.

Roço ao tocar o teu peito
a fronteira elétrica da vida,
as trevas do sangue
onde pactua a boca cruel e enamorada,
ainda ávida para destruir o que ama
e reviver o que destrói,
com o mundo, impassível
e sempre idêntico a mim mesmo,
porque não se detem em forma alguma
nem se demora sobre o que engendra.

Leva-me, sozinha,
leva-me meios aos sonhos,
leva-me, minha mãe,
despertai-me de todo,
fazei-me sonhar os teus sonhos,
untai os meus olhos com óleo,
para que ao conhecer-te me conheça.

Trad. Leonardo de Magalhaens

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Jorge Luis BORGES - Inscrição em qualquer Sepulcro





Jorge Luis Borges

Inscrição em qualquer sepulcro

Não arrisque o mármore temerário
tagarelas transgressões ao todo-poder do esquecimento,
enumerando todo prolixo
o nome, a opinião, os eventos, a pátria.
Tanto enfeite bem exibido está às escuras
e o mármore não fale do que calam os homens.
O essencial da vida fenecida
- a trêmula esperança,
o milagre implacável da dor e o assombro do gozo -
sempre vai perdurar.
Cegamente reclama duração a alma arbitrária
quando a tem segura em vidas alheias,
quando tu mesmo és a real continuação
dos que não alcançaram o teu tempo
e outros serão (e são) tua imortalidade na terra.

Tradução: Leonardo de Magalhaens



Jorge Luis Borges

INSCRIPCION EN CUALQUIER SEPULCRO
No arriesgue el mármol temerario
gárrulas infracciones al todopoder del olvido,
enumerando con prolijidad
el nombre, la opinión, los acontecimientos, la patria.
Tanto abalorio bien adjudicado está a la tiniebla
y el mármol no hable lo que callan los hombres.
Lo esencial de la vida fenecida
---la trémula esperanza,
el milagro implacable del dolor y el asombro del goce---
siempre perdurará.
Ciegamente reclama duración el alma arbitraria
cuando la tiene asegurada en vidas ajenas,
cuando tú mismo eres la continuación realizada
de quienes no alcanzaron tu tiempo
y otros serán (y son) tu inmortalidad en la tierra.


INSCRIPTION ON ANY TOMBSTONE
translated by Roberta GouldWest Hurley, New York

Let not the brash marble risk
prattling infractions against all-powerful oblivion
tediously commemorating
the name, opinion, events, and country.
Such beads are best ascribed to darkness
and the marble should not say what man forgets.
The essence of the departed life
--tremulous hope, the implacable miracle of pain and the shock of pleasure
will always endure.
The arbitrary soul blindly demands duration
when it has it assured in the lives of others,
when you yourself are the realized continuation
of those who didn't reach your time
and others will be (and are) your immortality on earth.

In: http://www.languageandculture.net/gallery-summer-fall-2008.html

sábado, 17 de outubro de 2009

Cansaço / Cansancio - Oliverio GIRONDO



OLIVERIO GIRONDO

CANSAÇO

Cansado.
Sim!
Cansado
de usar um só baço,
dois lábios,
vinte dedos,
não sei quantas palavras,
não sei quantas lembranças,
grisalhas,
fragmentárias.

Cansado,
muito cansado
deste esqueleto frio,
tão pudico
tão casto,
que quando se desnuda
não saberei se é o mesmo
que usei enquanto vivia.

Cansado.
Sim!
Cansado
por precisar de antenas,
de um olho em cada omoplata
e uma calda autêntica,
alegre
desatada,
e não este rabo hipócrita,
degenerado,
nanico.

Cansado,
sobretudo,
de estar sempre comigo,
de invocar-me a cada dia,
quando termina o sono,
ali, onde me encontre,
com as mesmas narinas
e com as mesmas pernas;
como se não desejasse
esperar a maré-baixa com uma cútis de praia,
Oferecer, ao orvalho, dois seios de magnólia,
acariciar a terra com um ventre de lagarta,
e viver, alguns meses, dentro de uma pedra.


Tradução: Leonardo de Magalhaens
(revisão: Sebastián Moreno)


OLIVERIO GIRONDO

CANSANCIO
Cansado.
¡Sí!
Cansado
de usar un solo bazo,
dos labios,
veinte dedos,
no sé cuántas palabras,
no sé cuantos recuerdos,
grisáceos,
fragmentarios.
Cansado,muy cansado
de este frío esqueleto,
tan púdico,tan casto,
que cuando se desnude
no sabrá si es el mismo
que usé mientras vivía.
Cansado.
¡Sí!
Cansado
por carecer de antenas,
de un ojo en cada omóplato
y de una cola autentica,
alegredesatada,
y no este rabo hipócrita,
degenerado,
enano.

Cansado,
sobre todo,
de estar siempre conmigo,
de hallarme cada día,
cuando termina el sueño,
allí, donde me encuentre,
con las mismas narices
y con las mismas piernas;
como si no deseara
esperar la rompiente con un cutis de playa,
ofrecer, al rocío, dos senos de magnolia,
acariciar la tierra con un vientre de oruga,
y vivir, unos meses, adentro de una piedra.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Pablo Neruda - Oda a la crítica - Ode à Crítica



PABLO NERUDA

Oda a La Crítica

Ode à Crítica

Escrevi cinco versos: um verde,
outro era um pão redondo,
o terceiro uma casa se levantando,
o quarto era um anel
o quinto verso era
curto como um relâmpago
e ao escrevê-lo
me deixou na razão sua queimadura.

E bem, os homens, as mulheres,
vieram e tomaram
a simples matéria,
fibra, vento, fulgor, barro, madeira,
e com tão pouca coisa
construíram
paredes, pisos, sonhos.
Numa linha da minha poesia
secaram roupa ao vento.
Comeram as minhas palavras,
guardaram-nas
junto a cabeceira,
viveram com um verso,
com a luz que saiu do meu lado.

Então,
chegou um crítico mudo
e outro cheio de línguas,
e outros, outros chegaram
cegos ou cheios de olhos,
elegantes alguns
com cravo com sapatos vermelhos,
outros estritamente
vestidos de cadáveres,
alguns partidários
do rei e sua elevada monarquia,
outros haviam se
embaraçado na figura
de Marx e esperneavam na sua barba,
outros eram ingleses
simplesmente ingleses,
e entre todos se lançaram
com dentes e facas,
com dicionários e
outras armas negras,
com citações respeitáveis,
se lançaram
para disputar a minha pobre poesia
às pessoas simples
que a amavam:
e dela fizeram funis,
enrolaram-na,
prenderam-na com cem alfinetes,
cobriram-na com pó de esqueleto,
encheram-na de tinta,
nela cuspiram com suave
benignidade de gatos,
destinaram-na a envolver relógios,
protegeram-na e condenaram-na,
juntaram-lhe petróleo,
dedicaram-lhe úmidos tratados,
cozinharam-na com leite,
juntaram pequenas pedrinhas,
foram lhe apagando vogais,
foram lhe matando
sílabas e suspiros,
amassaram-na e fizeram
um pequeno pacote
que destinaram cuidadosamente
aos seus sótãos, aos seus cemitérios,
logo se retiraram um a um
enfurecidos até a loucura.
Porque não fui bastante
popular para eles
ou impregnados
de doce menosprezo
pela minha ordinária falta de trevas,
retiraram-se todos,
e então,
outra vez, junto à minha poesia
voltaram a viver
mulheres e homens,
de novo fizeram fogo,
construíram asas,
comeram pão,
repartiram entre si a luz
e no amor uniram
relâmpago e anel.
E agora, perdoai-me, senhores,
que interrompo este conto
que lhes estou narrando
e vá viver
para sempre
junto a gente simples.


In: Odas Elementares (1954)


Oda a la crítica

Trad. Livre : Leonardo de Magalhaens

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

PABLO NERUDA - Poema XX


PABLO NERUDA

(1904-1973)

Veinte Poemas de amor y una canción desesperada (1924)

Poema XX

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Escrever, por exemplo: “A noite está estrelada,
e tiritam, azuis, os astros, ao longe”.
O vento da noite gira no céu e canta.
Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Eu a desejei, e às vezes ela também me desejou.
Nas noites como esta eu a tive em meus braços.
Beijei-a tantas vezes sob o céu infinito.
Ele me desejou, às vezes eu também a desejava.
Como não ter amado os seus grandes olhos fixos.
Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Pensar que não a tenho. Senti que a perdi.
Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela.
E o verso cai na alma como no pasto o orvalho.
Que importa que o meu amor não pudesse guardá-la.
A noite está estrelada e ela não está comigo.
Isso é tudo. Ao longe alguém canta. Ao longe.
Minha alma não se contenta em tê-la perdido.
Como para aproximá-la o meu olhar a procura.
Meu coração a procura, e ela não está comigo.
A mesma noite faz branquear as mesmas árvores.
Nós, os de então, já não somos os mesmos.
Já não a desejo, é verdade, tanto quanto a desejei.
Minha voz procurava o vento para tocar o seu ouvido.
De outro. Será de outro. Como antes dos meus beijos.
Sua voz, seu corpo claro. Seus olhos infinitos.
Já não a desejo, é certo, mas talvez a deseje.
É tão curto o amor, e é tão longo o olvido.
Porque em noites como esta eu a tive em meus braços,
a minha alma não se contenta com tê-la perdido.
Ainda que esta seja a última dor que ela me causa,
e estes sejam os últimos versos que lhe escrevo.

Trad. por Leonardo de Magalhaens

ago/09

PABLO NERUDA

Poema XX

Puedo escribir los versos más tristes esta noche.
Escribir, por ejemplo: "La noche esta estrellada,
y tiritan, azules, los astros, a lo lejos".
El viento de la noche gira en el cielo y canta.
Puedo escribir los versos más tristes esta noche.
Yo la quise, y a veces ella también me quiso.
En las noches como ésta la tuve entre mis brazos.
La besé tantas veces bajo el cielo infinito.
Ella me quiso, a veces yo también la quería.
Cómo no haber amado sus grandes ojos fijos.
Puedo escribir los versos más tristes esta noche.
Pensar que no la tengo. Sentir que la he perdido.
Oír la noche inmensa, más inmensa sin ella.
Y el verso cae al alma como al pasto el rocío.
Qué importa que mi amor no pudiera guardarla.
La noche está estrellada y ella no está conmigo.
Eso es todo. A lo lejos alguien canta. A lo lejos.
Mi alma no se contenta con haberla perdido.
Como para acercarla mi mirada la busca.
Mi corazón la busca, y ella no está conmigo.
La misma noche que hace blanquear los mismos árboles.
Nosotros, los de entonces, ya no somos los mismos.
Ya no la quiero, es cierto, pero cuánto la quise.
Mi voz buscaba el viento para tocar su oído.
De otro. Será de otro. Como antes de mis besos.
Su voz, su cuerpo claro. Sus ojos infinitos.
Ya no la quiero, es cierto, pero tal vez la quiero.
Es tan corto el amor, y es tan largo el olvido.
Porque en noches como ésta la tuve entre mis brazos,
mi alma no se contenta con haberla perdido.
Aunque éste sea el último dolor que ella me causa,
y éstos sean los últimos versos que yo le escribo.

Pablo Neruda
(1904-1973)

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Lorca - Ode a Walt Whitman





FEDERICO GARCÍA LORCA

ODA A WALT WHITMAN
(1933)

Ode a Walt Whitman

Através do East River e do Bronx
os rapazes cantavam mostrando suas cinturas,
com a roda, o azeite, o couro, e o martelo
Noventa mil mineiros extraíam prata das rochas
e os garotos desenhavam escadas e perspectivas.

Mas ninguém dormia,
ninguém queria ser o rio,
ninguém amava as folhas grandes,
ninguém a língua azul da praia.

Através do East River e do Queensborough
os rapazes lutavam com a indústria,
e os judeus vendiam ao fauno do rio
a rosa da circuncisão
e o céu desembocava pelas pontes e telhados
manadas de bisões empurradas pelo vento.

Mas ninguém se detinha,
ninguém queria ser nuvem,
ninguém buscava os fetos
nem a roda amarela do tamboril.

Quando a lua saía,
as roldanas rodaram para derrubar o céu;
um limite de agulhas cercara a memória
e os ataúdes levarão os que não trabalham.

Nova York de lama,
Nova York de espanto e de morte.
Que anjo levas oculto na face?
Que voz perfeita dirá as verdades do trigo?
Quem o sonho terrível de tuas anedotas manchadas?

Nem um só momento, velho e formoso Walt Whitman,
deixei de ver tua barba cheia de mariposas,
nem teus ombros de veludo gastados pela lua,
nem tuas coxas de Apolo Virginal,
nem tua voz como uma coluna de cinzas;
ancião formoso como a névoa
que gemia igual a um pássaro
com o sexo atravessado por uma agulha,
inimigo do sátiro, inimigo da vide
e amante dos corpos sob o tecido rude

Nem um só momento, formosura viril
que em montes de carvão, anúncios e ferrovias
sonhavas ser um rio e dormir como um rio
com aquele camarada que poria em teu peito
uma pequena dor de ignorante leopardo.

Nem um só momento, Adão de sangue, macho,
homem solitário no mar, velho formoso Walt Whitman
porque pelas açoteias, agrupados nos bares,
saindo em cachos dos esgotos,
tremendo entre as pernas dos chaffeurs
ou girando nas plataformas de absinto,
os maricas, Walt Whitman, te sonhavam.

Também esse ! Também! E despencam
sobre tua barba luminosa e casta,
louros do norte, negros da areia,
multidões de gritos e gestos,
semelhantes a gatos e serpentes,
os maricas, Walt Whitman, os maricas
turvos de lágrimas, carne para o açoite,
mostra a mordedura dos domadores.


Também esse! Também ! Dedos tingidos
apontam a borda de teu sonho
quando o amigo igual a tua maçã
com um leve sabor de gasolina
e o sol canta pelos umbigos
dos rapazes que jogam debaixo das pontes.

Mas tu não buscavas os olhos arranhados,
nem o pântano escuríssimo de onde submergem os garotos,
nem a saliva gelada,
nem as curvas feridas como pança de sapo
que levam os maricas em carros e terraços
enquanto a lua os açoita pelas esquinas do terror.

Tu buscavas um desnudo que fosse como um rio,
touro e sonho que junte a roda com a alga,
pai de tua agonia, camélia de tua morte,
e gemesse nas chamas de teu equador oculto.

Porque é justo que o homem não busque seu deleite
na selva de sangue da manhã seguinte.
O céu tem praias onde evitar a vida
e existem corpos que não devem se repetir na aurora.

Agonia, agonia, sonho, fermento e sonho.
Este é o mundo, amigo, agonia, agonia.
Os mortos se decompõem sob o relógio das cidades,
a guerra passa chorando com um milhão de ratazanas cinzentas,
os ricos dão às suas queridas
pequenos moribundos iluminados.
E a vida não é nobre, nem boa, nem sagrada.

Pode o homem, se quiser, conduzir seu desejo
por veia de coral ou celeste nudez.
Amanhã os amores serão rochas e o Tempo
uma brisa que vem adormecida pelos ramos.

Por isso não levanto minha voz, velho Walt Whitman
contra o garoto que escreve
o nome da garota em sua almofada,
nem contra o rapaz que se veste de noiva
na escuridão da rouparia,
nem contra os solitários dos cassinos
que bebem com asco a água da prostituição,
nem contra os homens de olhada verde
que amam o homem e queimas seus lábios em silêncio.

Mas sim contra vós, maricas das cidades,
de carne tumefacta e pensamento imundo,
mães de lodo, harpias, inimigos sem sonho
do Amor que reparte coroas de alegria.

Contra vós sempre, que dais aos rapazes
gotas de morte suja com amargo veneno.
Contra vós sempre,
Fadas da Ameŕica do Norte,
Pássaros de Havana,
Podres do México,
Sarasas de Cádiz,
Touros de Sevilha,
Cancos de Madrid,
Flores de Alicante,
Adelaides de Portugal.

Maricas de todo o mundo, assassinos de pombas!
Escravos da mulher, putas de suas camas,
abertos nas praças com febre de abano
ou emboscadas rígidas paisagens de cicuta.

Não há abrigo! A morte
emana de vossos olhos
e agrupa flores cinzas nas beiras dos cílios.
Não há abrigo! Alerta!
Que os confundidos, os puros,
os clássicos, os assinalados, os suplicantes,
fecham para vós as portas do bacanal.

E tu, belo Walt Whitman, dorme às margens do Hudson,
com a barba até o pêlo e as mãos abertas.
Argila branca ou neve, tua língua está chamando
camaradas que velem tua gazela sem corpo.
Dorme, não sobra nada.
Uma dança de muros agita as pradarias
e a América se afoga de máquinas e pranto.
Quero que o ar forte da noite mais funda
acalme flores e letras do arco onde dormes
e um garoto negro anuncie aos brancos do ouro
a chegada do reino da espiga.

Trad. livre por Leonardo de Magalhaens


ODA A WALT WHITMAN original em