As guerras no olhar das crianças
(ensaio)
“A desumanidade do homem para com o homem,
e ainda pior, para as crianças”
(“Man's inhumanity to man and worse still,
to child”)(The Cranberries)
e ainda: “Mais de dois milhões de crianças foram mortas em guerras nos
últimos dez anos, enquanto seis milhões ficaram mutiladas, 12 milhões
perderam suas casas e mais de 10 milhões sofreram danos psicológicos
irrevesíveis. O trágico quadro foi denunciado pela ONU e os dados
mostram que estamos diante de um novo holocausto de inocentes.”
(Estado de Minas, 13 de outubro de 1998)
Crianças jogadas no furor da guerra dos adultos imaturos,
crianças que não sabem o que sejam certo ou errado (e
os adultos sabem?), não importa sedo 'lado certo' ou do
'lado errado' – precisam se defender e atacar...
Que liberdade tinha a Anne Frank? Ou o Shmuel de “O
Menino do Pijama Listrado”? Ou a Zlata em Sarajevo,
campo de batalha urbano?
Que liberdade há? Os arautos da liberdade (existencial, política,
social) não sabem... O que Sartre queria dizer com “condenados
à liberdade”? Ou com “fazermos algo do que fizeram de nós”?
Ou textualmente: “O importante não é aquilo que fazem de nós,
mas o que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram
de nós.”
A liberdade é escolher entre cartas já marcadas? E quando se
nasce num campo de concentração? Ou num campo de batalha?
Nascemos num dado contexto histórico, aprendemos um idioma,
servimos a umapátria, além de um patrão... Os líderes 'formatam'
seus seguidores desde criança – vide a Juventude Leninista,
o Komsomol, ou a Juventude Hitlerista, a Hitlerjugend.
Está na moda (e no mercado) os livros best-sellers sobre crianças
nas guerras, ou melhor, sobre as guerras vivenciadas pelas
crianças. A referência é um dos livros mais famosos (e clássicos)
sobre a temática – o “Diário de Anne Frank”, publicado após
a Segunda Guerra Mundial, pelo pai da menina, ela que não
sobreviveu ao campo de concentração. Trata da invasão da
Holanda, em 1940, a perseguição aos cidadãos judeus,
obrigados a buscar refúgio em porões, em sótãos, a viverem
em dependência de vizinhos, que driblam as políticas nazistas
de prisão e extermínio.
Tamanho é o poder do testemunho de Anne – que praticamente
passou de criança à adolescente num sótão abafado, a lidar com
a puberdade entre os conflitos internos (dos pais, dos vizinhos)
e externos (a guerra entre os Aliados e os nazistas), e tentando
descrever tudo isso numa prosa que evidencia a grande escritora
que perdemos.
Depois, em pleno pós-Guerra Fria, com o fim do 'socialismo real'
(que o capitalismo real festejou!), com a implosão da URSS e com
a guerra civil na Iugoslávia, fez alarde um “Diário de Zlata” (1993),
aqui no Brasil, em edição traduzida o exemplar francês, “Le Journal
de Zlata”, onde a menina Zlata Filipovic descreve a capital bósnia,
Sarajevo, sob ataque das forças sérvias, em 1992. Zlata foi mesmo
considerada uma “Anne Frank de Sarajevo”, versão moderna do
drama “criança no teatro de guerra.”
“Estão bombardeando, as granadas caem. É mesmo a GUERRA.
Papai e mamãe estão muito preocupados; ontem à noite eles
ficaram acordados até tarde, ficaram conversando muito tempo.
Estão tentando descobrir o que fazer, mas está difícil ter bom senso.
Será que devemos partir e nos separar, ou ficar aqui todos juntos?
(...) Percebo que a coisa vai mal. A paz chegou ao fim. A guerra
entrou de repente em nossa cidade, em nossa casa, em nossas
cabeças, em nossas vidas. É horrível. Tão horrível quanto ver mamãe
arrumar minha mala.” (trad. Antonio de Macedo Soares &
Heloisa Jahn)
Outro best-seller do momento aborda a temática: “A menina que
roubava livros” (A Book Thief, 2005), do australiano Markus Zusak,
de ascendência germânica, a abordar o bombardeio das cidades
alemãs e o drama do Holocausto – a perseguição nazistas aos
judeus – sob o olhar de uma menina que adora surrupiar livros
alheios, e sobrevive aos golpes da morte ao redor. (Tanto que a
Morte passa a se interessar pela menina e narra a vicissitudes
da protagonista...)
Novamente abordando o Holocausto (já havendo toda uma
literatura, aceita ou não, acadêmica ou não, ficcional ou não,
sobre o tema Shoah...), temos – na perspectiva infantil – a obra
best-seller “O Menino do pijama listrado” (“The Boy in the
Striped Pyjamas”, 2006, do irlandês John Boyne, onde Bruno,
filho de comandante nazista faz amizade com Shmuel, judeu
(de pijama listrado) na cercanias (e nas cercas) do campo de
concentração de Auschwitz. É uma fábula (diz a propaganda)
sobre a amizade no tempo de guerra, sobre as crianças que
desconhecem o que seja 'inimigo', e morrem inocentes do
perigo ao lado.
“O garoto era menor do que Bruno e estava sentado no chão com
uma expressão de desamparo. Ele vestia o mesmo pijama listrado
que todas as outras pessoas daquele lado da cerca, e um boné
listrado de pano. Não tinha sapatos ou meias, e os pés estavam
um pouco sujos. No braço ele trazia uma braçadeira com uma
estrela desenhada.” (trad. Augusto Pacheco Calil)
O livro gerou tamanha repercussão que já virou filme, em
2008, sob direção de Mark Herman, com o jovem ator
(nascido em 1997) Asa Butterfield, no papel do protagonista
Bruno, que no livro tem nove anos. A inocente criança moída
e consumida pelas engrenagens da guerra. Para muitos, uma
criança 'inocente até demais', que não percebe morar ao lado
de uma enorme prisão, onde as pessoas de pijamas listrados
gradativamente desaparecem...
Como uma alegoria do ex-patriado temos a obra “Memórias
de um menino que se tornou estrangeiro”, de 2007, do paulista
Marcos Cezar de Freitas, que mostra um menino-narrador,
em fuga, dentro da própria cidade bombardeada, em ruínas,
perdendo as referências, depois seguindo para terras estrangeiras,
onde a guerra ainda não chegou, e vendo-se 'estranho', a
reconstruir sua identidade (dada coletivamente, na família, na
pátria, no mundo), enquanto a guerra cria um imenso muro a
separar as pessoas, os povos. Quem é o estrangeiro? Quem é
o inimigo? A guerra rotula e segmenta, cria abismos sociais e
perpetua preconceitos.
“De que país eu era, então? Meu país era um navio?” Indaga-se
o protagonista-narrador, ao ver-se partindo para o exílio, junto
aos refugiados, os cidadãos de outrora, agora obrigados a
depender a boa-vontade de outros cidadãos de outros países,
além das agências internacionais que trabalham para amenizar
os traumas das guerras. Mas em outra cidade de outro país,
serão sempre os estrangeiros, com outro idioma, outro modo
de vida, sempre em guettos, sempre temendo os 'pogroms',
pois a xenofobia é um vírus encubado a espera de uma
ocasião explosiva para se disseminar, atrás de novas vítimas.
Hoje as crianças na guerra são as africanas. O Primeiro-Mundo
vendeu seus arsenais (já ultrapassados!) para o Terceiro Mundo –
e agora são os pobres que se matam. Não há uma Guerra Mundial
entre imperialistas, mas Guerras Regionais entre tribos e etnias rivais,
entre interesses comerciais, entre crenças díspares, entre fronteiras
incertas. Como podemos ver no filme “O Senhor das Armas”
(Lord of War, USA, 2005, com Nicolas Cage), que mostra os
conflitos na Libéria, na Serra Leoa, no Sudão, no Líbano, que se
alimentam de armamentos contrabandeados do Leste europeu,
dos Estados Unidos, num grande mercado obscuro de armamentos,
“Não importa onde você vá, lá vai haver uma arma.”, diz, irônico,
o protagonista, traficante de armas.
As crianças hoje são soldados-mirins, que empunham armas e
disseminam minas, vitimadas e vitimando, sofrendo ao lado dos
adultos e lutando ao lado (e contra) os exércitos, as guerrilhas,
os terroristas, em nome de deuses e etnias, de crenças e ideologias,
perdendo todas as promessas de um futuro.
Out/09
Leonardo de Magalhaens
(ensaio)
“A desumanidade do homem para com o homem,
e ainda pior, para as crianças”
(“Man's inhumanity to man and worse still,
to child”)(The Cranberries)
e ainda: “Mais de dois milhões de crianças foram mortas em guerras nos
últimos dez anos, enquanto seis milhões ficaram mutiladas, 12 milhões
perderam suas casas e mais de 10 milhões sofreram danos psicológicos
irrevesíveis. O trágico quadro foi denunciado pela ONU e os dados
mostram que estamos diante de um novo holocausto de inocentes.”
(Estado de Minas, 13 de outubro de 1998)
Crianças jogadas no furor da guerra dos adultos imaturos,
crianças que não sabem o que sejam certo ou errado (e
os adultos sabem?), não importa sedo 'lado certo' ou do
'lado errado' – precisam se defender e atacar...
Que liberdade tinha a Anne Frank? Ou o Shmuel de “O
Menino do Pijama Listrado”? Ou a Zlata em Sarajevo,
campo de batalha urbano?
Que liberdade há? Os arautos da liberdade (existencial, política,
social) não sabem... O que Sartre queria dizer com “condenados
à liberdade”? Ou com “fazermos algo do que fizeram de nós”?
Ou textualmente: “O importante não é aquilo que fazem de nós,
mas o que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram
de nós.”
A liberdade é escolher entre cartas já marcadas? E quando se
nasce num campo de concentração? Ou num campo de batalha?
Nascemos num dado contexto histórico, aprendemos um idioma,
servimos a umapátria, além de um patrão... Os líderes 'formatam'
seus seguidores desde criança – vide a Juventude Leninista,
o Komsomol, ou a Juventude Hitlerista, a Hitlerjugend.
Está na moda (e no mercado) os livros best-sellers sobre crianças
nas guerras, ou melhor, sobre as guerras vivenciadas pelas
crianças. A referência é um dos livros mais famosos (e clássicos)
sobre a temática – o “Diário de Anne Frank”, publicado após
a Segunda Guerra Mundial, pelo pai da menina, ela que não
sobreviveu ao campo de concentração. Trata da invasão da
Holanda, em 1940, a perseguição aos cidadãos judeus,
obrigados a buscar refúgio em porões, em sótãos, a viverem
em dependência de vizinhos, que driblam as políticas nazistas
de prisão e extermínio.
Tamanho é o poder do testemunho de Anne – que praticamente
passou de criança à adolescente num sótão abafado, a lidar com
a puberdade entre os conflitos internos (dos pais, dos vizinhos)
e externos (a guerra entre os Aliados e os nazistas), e tentando
descrever tudo isso numa prosa que evidencia a grande escritora
que perdemos.
Depois, em pleno pós-Guerra Fria, com o fim do 'socialismo real'
(que o capitalismo real festejou!), com a implosão da URSS e com
a guerra civil na Iugoslávia, fez alarde um “Diário de Zlata” (1993),
aqui no Brasil, em edição traduzida o exemplar francês, “Le Journal
de Zlata”, onde a menina Zlata Filipovic descreve a capital bósnia,
Sarajevo, sob ataque das forças sérvias, em 1992. Zlata foi mesmo
considerada uma “Anne Frank de Sarajevo”, versão moderna do
drama “criança no teatro de guerra.”
“Estão bombardeando, as granadas caem. É mesmo a GUERRA.
Papai e mamãe estão muito preocupados; ontem à noite eles
ficaram acordados até tarde, ficaram conversando muito tempo.
Estão tentando descobrir o que fazer, mas está difícil ter bom senso.
Será que devemos partir e nos separar, ou ficar aqui todos juntos?
(...) Percebo que a coisa vai mal. A paz chegou ao fim. A guerra
entrou de repente em nossa cidade, em nossa casa, em nossas
cabeças, em nossas vidas. É horrível. Tão horrível quanto ver mamãe
arrumar minha mala.” (trad. Antonio de Macedo Soares &
Heloisa Jahn)
Outro best-seller do momento aborda a temática: “A menina que
roubava livros” (A Book Thief, 2005), do australiano Markus Zusak,
de ascendência germânica, a abordar o bombardeio das cidades
alemãs e o drama do Holocausto – a perseguição nazistas aos
judeus – sob o olhar de uma menina que adora surrupiar livros
alheios, e sobrevive aos golpes da morte ao redor. (Tanto que a
Morte passa a se interessar pela menina e narra a vicissitudes
da protagonista...)
Novamente abordando o Holocausto (já havendo toda uma
literatura, aceita ou não, acadêmica ou não, ficcional ou não,
sobre o tema Shoah...), temos – na perspectiva infantil – a obra
best-seller “O Menino do pijama listrado” (“The Boy in the
Striped Pyjamas”, 2006, do irlandês John Boyne, onde Bruno,
filho de comandante nazista faz amizade com Shmuel, judeu
(de pijama listrado) na cercanias (e nas cercas) do campo de
concentração de Auschwitz. É uma fábula (diz a propaganda)
sobre a amizade no tempo de guerra, sobre as crianças que
desconhecem o que seja 'inimigo', e morrem inocentes do
perigo ao lado.
“O garoto era menor do que Bruno e estava sentado no chão com
uma expressão de desamparo. Ele vestia o mesmo pijama listrado
que todas as outras pessoas daquele lado da cerca, e um boné
listrado de pano. Não tinha sapatos ou meias, e os pés estavam
um pouco sujos. No braço ele trazia uma braçadeira com uma
estrela desenhada.” (trad. Augusto Pacheco Calil)
O livro gerou tamanha repercussão que já virou filme, em
2008, sob direção de Mark Herman, com o jovem ator
(nascido em 1997) Asa Butterfield, no papel do protagonista
Bruno, que no livro tem nove anos. A inocente criança moída
e consumida pelas engrenagens da guerra. Para muitos, uma
criança 'inocente até demais', que não percebe morar ao lado
de uma enorme prisão, onde as pessoas de pijamas listrados
gradativamente desaparecem...
Como uma alegoria do ex-patriado temos a obra “Memórias
de um menino que se tornou estrangeiro”, de 2007, do paulista
Marcos Cezar de Freitas, que mostra um menino-narrador,
em fuga, dentro da própria cidade bombardeada, em ruínas,
perdendo as referências, depois seguindo para terras estrangeiras,
onde a guerra ainda não chegou, e vendo-se 'estranho', a
reconstruir sua identidade (dada coletivamente, na família, na
pátria, no mundo), enquanto a guerra cria um imenso muro a
separar as pessoas, os povos. Quem é o estrangeiro? Quem é
o inimigo? A guerra rotula e segmenta, cria abismos sociais e
perpetua preconceitos.
“De que país eu era, então? Meu país era um navio?” Indaga-se
o protagonista-narrador, ao ver-se partindo para o exílio, junto
aos refugiados, os cidadãos de outrora, agora obrigados a
depender a boa-vontade de outros cidadãos de outros países,
além das agências internacionais que trabalham para amenizar
os traumas das guerras. Mas em outra cidade de outro país,
serão sempre os estrangeiros, com outro idioma, outro modo
de vida, sempre em guettos, sempre temendo os 'pogroms',
pois a xenofobia é um vírus encubado a espera de uma
ocasião explosiva para se disseminar, atrás de novas vítimas.
Hoje as crianças na guerra são as africanas. O Primeiro-Mundo
vendeu seus arsenais (já ultrapassados!) para o Terceiro Mundo –
e agora são os pobres que se matam. Não há uma Guerra Mundial
entre imperialistas, mas Guerras Regionais entre tribos e etnias rivais,
entre interesses comerciais, entre crenças díspares, entre fronteiras
incertas. Como podemos ver no filme “O Senhor das Armas”
(Lord of War, USA, 2005, com Nicolas Cage), que mostra os
conflitos na Libéria, na Serra Leoa, no Sudão, no Líbano, que se
alimentam de armamentos contrabandeados do Leste europeu,
dos Estados Unidos, num grande mercado obscuro de armamentos,
“Não importa onde você vá, lá vai haver uma arma.”, diz, irônico,
o protagonista, traficante de armas.
As crianças hoje são soldados-mirins, que empunham armas e
disseminam minas, vitimadas e vitimando, sofrendo ao lado dos
adultos e lutando ao lado (e contra) os exércitos, as guerrilhas,
os terroristas, em nome de deuses e etnias, de crenças e ideologias,
perdendo todas as promessas de um futuro.
Out/09
Leonardo de Magalhaens
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