Sobre os Detetives clássicos
da literatura policial
(e também no cinema)
A Verdade enquanto Investigação
O conceito de Verdade é um dos mais polêmicos da Filosofia
(ao lado do conceito de “Liberdade” - se é que existe 'conceito',
se é que existe 'liberdade'), e comumente se aceita como
'convenção social', ou seja, o que a maioria diz ser 'verdadeiro',
então é dado como 'verdadeiro' (se de repente a maioria
começar a ver OVNIs por aí, então será 'verdade' a existência
de OVNIs...), ou 'paranóia coletiva' pode ser 'verdade' para
este coletivo (exemplo, os fanáticos e fundamentalistas, que
se flagelam e se matam em nome de uma Divindade...)
Para Nietzsche, a Verdade não existe. Não há uma perspectiva
privilegiada para se ver o mundo, tudo são ângulos/pontos de
vista, e todo julgamento é parcial. Haveria uma 'pluralidade'
de 'verdades', legitimadas em cada contexto. O que é 'verdade'
para o rico, não é 'verdade' para o pobre, e vice-versa. O que
é 'verdadeiro' para o nazista, não é 'verdadeiro' para o judeu...
Assim, a 'verdade' serve aos interesses da parte mais hegemônica
(para usar um conceito de Gramsci) onde se os ricos estão no
poder, logo a 'verdade' será o que os ricos dizem ser a 'verdade'.
Mas, e se a Verdade for um processo que exige uma pesquisa,
uma investigação? Não é assim que pensam os cientistas? E não
é assim que um detetive pensa? Silogismos, lógica pragmática,
observação apurada, deduções e induções, analogias, um faro
fino e uma intuição à toda prova: eis o paradigma do detetive.
Aquele dos clássicos, primeiramente literários, agora também
do cinema. Seres que se elevam acima da média, e desmentem
a suposta 'verdade' da maoria: o fatos existem, e são explicitados.
O 'senso-comum' é desmascarado: há um 'mistério' a exigir solução.
O clássico-mor seria mesmo os 'contos de detetive' escritos pelo
norte-americano Edgar Allan Poe (1809-1849), com a presença
memorável e surpreendente do pensador francês Auguste Dupin,
a desvendar os “crimes da Rue Morgue”, também o “mistério de
Marie Roget”, e encontrar uma “carta roubada”. Todos estes
contos apresentam um Narrador, dito amigo, do pensador-detetive,
que se deleita com a descoberta da 'verdade'. Verdade esta que
a polícia parisiense é incapaz de encontrar.
Tal ênfase na observação e dedução inspirou outro detetive dos
clássicos romances e contos de Sir Conan Doyle (1859-1930).
Trata-se de ninguém menos que Sherlock Holmes, o gênio
londrino, sempre acompanhado pelo amigo (e Narrador) Dr. Watson,
a desafiar os investigadores da prestigiada Scotland Yard. As obras
principais, onde Holmes atua, são “Estudo em vermelho”,
“Sinal dos Quatro” e “Cão dos Baskervilles”, além de numerosos
contos, que celebrizaram o autor.
O detetive de Conan Doyle conhece e segue o estilo “whodunit”
(quem fez isso? Quem cometeu o crime?) do detetive de Poe,
quando a partir do ocorrido consegue – em pensamento
retrospectivo – encontrar as causas, reconstituir a cena do crime
(quem matou, como matou, porque matou, basicamente)
O mesmo 'modelo' usado pela escritora inglesa Agatha Christie
(1890-1976) com seus detetives, o belga Hercule Poirot e a
inglesa Miss Marple, cuidadosos e fleumáticos, assombrosamente
observadores. Poirot é mais famoso, afinal de contas ele atuou
em dois clássicos: “Assassinato no Expresso do Oriente” (1934)
e “Assassinato no campo de golfe” (The murder on the links)
(1923), onde há um Narrador em 3a pessoa, ou o ponto de vista
de um certo Capitão Hastings, que guiam o Leitor (em numerosas
narrativas!) nas investigações, verdadeiras aulas de como caçar
criminosos. (Talvez essa seja a moral da literatura policial:
cuidado, criminosos, pois sempre encontramos vocês!)
Ao estabelecer um 'denominador comum', uma 'interseção'
entre os vários depoimentos, as várias testemunhas e suas
perspectivas, Poirot estabelece as 'popssibilidades do fato', onde a
realidade é dada pela 'verossimilhança' (ou o 'real' recriado pelo
'imaginário'), quando o detetive finaliza a montagem do 'puzzle',
o quebra-cabeças. Tal um cientista diante de um fenômeno natural,
o detetive está diante do mistério, e com seu método (aliado ao
seu talento) explica o que é 'nebuloso' e 'inacessível' aos leigos
(incluindo o Leitor...)
Poirot é belga, e também belga é o escritor Georges Simenon
(1903-89), criador do Comissário Jules Maigret, que atuando
em Paris, é mais 'psicólogo' do que 'filósofo', ou seja, aplica
uma maior ênfase às personalidades dos suspeitos, não
adentrando labirintos de deduções e analogias (tais aquelas 'aulas
de lógica' dadas por Dupin e Holmes). São também numerosas
as obras onde Maigret atua (os autores de 'literatura policial'
são realmente 'máquinas' de produzir mistérios e investigações),
com destaques para “La Nuit du carrefour” (1931) e “La Danseuse
du Gai-Moulin” (1931).
Em reação ao estilo “whodunit” - que se repete em variações do
mesmo – surgiu o estilo mais 'barra pesada', mais 'brutal' e 'noir'
(sombrio) do “hard-boiled” norte-americano (a atingir um ápice
em “In Cold Blood”/ A sangue frio, de Truman Capote, mas esse
é assunto para outro ensaio...), que se destaca com as obras de
S. Dashiell Hammett (1894-1961) e Raymond Chandler (1888-
1959). Hammett é o criador do detetive Sam Spade, durão e
pronto para a ação (não é um 'pensador' exatamente...), como
se percebe em “O falcão maltês” (The Maltese Falcon, 1930), que,
no cinema, foi encarnado pelo ator Humphrey Bogart, em atuação
clássica de um personagem clássico: o detetive que se envolve
emocionalmente, ainda que não demonstre, não deixe visíveis
as emoções (que nos demais estão 'à flor da pele'...)
Assim também é o detetive Philip Marlowe, porém mais 'humano',
pois narra em 1a pessoa, a tornar o Leitor é 'cúmplice', nas obras
de Chandler, principalmente em “O Longo Adeus” (The Long Goodbye,
1953), tendo um faro para avaliar (e julgar) as personalidades,
sem muita erudição (ao estilo Dupin ou Holmes), mas sabendo agir
certo e na hora certa – um oportunismo bem pragmático, ao
estilo ianque...
A diferença em Chandler é o fato de Marlowe narrar ele-mesmo
a suas peripécias. Assim o Leitor tem acesso ao pensar e atuar
do detetive (enquanto em Poe e Conan Doyle é preciso confiar no
amigo-narrador e no Dr. Watson) E se houvesse um maior acesso ao
criminoso? Assim é em “O Silêncio dos Inocentes” (The silence of
the Lambs, 1988), de Thomas Harris (EUA, 1940-), onde a agente
do FBI Clarice Starling se depara com uma mente criminosa que
desafia todo 'humanismo': o psicopata Hannibal Lecter, que se serve
(literalmente!) de seus semelhantes. Canibal e erudito, cínico e
refinado, Lecter é um desafio para Starling (e para o Leitor!) Adentrar
a mente de Lecter é uma viagem (não-metaforicamente) arrepiante:
um senso de Übermenschen com ânsias destrutivas. (O mesmo que
caracteriza um Hitler...)
Hannibal Lecter foi para o cinema, interpretado pelo ator Anthony
Hopkins, e amedrontou muita gente (inclusive este resenhista...),
assim como no cinema é destaque o sombrio “Seven” (1995),
do diretor David Fincher (EUA, 1962-), onde o detetive W. Somerset
(interpretado por Morgan Freeman) e seu colega D. Mills (Brad Pitt)
investigam uma série de assassinatos relacionados aos sete pecados
capitais do Cristianismo (gula, luxúria, preguiça, vaidade, avareza,
soberba e ira), onde as vítimas 'pagam por seus pecados' nas
vinganças de um fanático psicopata (que acaba por 'forçar' o
policial Mills a cometer o 'pecado' da ira, ao assassinar o vilão.
Assim, o crime leva ao crime...) Não há justiça, nem verdade,
apenas 'olho por olho, dente por dente'.
Ainda citaremos dois detetives e um 'monge detetive'. Em estilo
de 'síndrome de influência' encontra-se o Erik Lönnrot, do conto
“A morte e a bússola” (“La muerte y la bússola”, 1944), do argentino
Jorge Luís Borges (-1986), onde a mente (e a honra) de Lönnrot é
desafiada pelos crimes de um certo Red Scharlach, apresentando
uma interrelação detetive-criminoso que lembra muito uma
dependência (e o herói não precisa de um vilão? Um Superman
não precisa de um Lex Luthor? Batman não tem sua imagem
espelhada num Curinga?) e uma obsessão (como a perseguir um
'duplo', um 'doppelgänger': a mente criminosa que desequilibra
a mente virtuosa...)(detalhe: a cor vermelha é compartilhada
nos nomes de ambos os antagonistas!)
E também Lönnrot se baseia em Dupin (a crer-se também um “puro
raciocinador”) assim como Holmes e Watson discutem sobre as
reais capacidades do detetive de Poe (o que mostra um explícita
influência), como imagens espelhadas do 'detetive-pensador', a
re-construir o crime passo a passo. Assim também o pensador
Don Isidro Parodi, criado pela dupla Borges e (o amigo deste)
Bioy Casares, claramente inspirado em Dupin, quando a partir
da reclusão de sua cela (Parodi está encarcerado!) soluciona os
'problemas' que são confidenciados pelos amigos visitantes. Assim
é a obra “Seis problemas para Don Isidro Parodi” (1942)
Agora, ao nível da paródia (e de bom nível), destaca-se a figura do
monge detetive em “O Nome de Rosa” (Il nome della rosa, 1980),
romance medievalista do filósofo (e teórico da Semiótica) Umberto
Eco (ITA, 1932-). Gugliemo (ou William) da Baskerville, cujo
nome já é intertextual (lembra William of Occam, da famosa
Navalha
de Occam) e o livro “
O Cão dos Baskervilles”, de
Sir Conan Doyle),
é um inquisidor e filósofo, que muito observador e meditativo,
consegue desvendar os crimes que ocorrem num afastado mosteiro,
a abrigar um imensa e sombria biblioteca. As peripécias são narradas
pelo jovem monge estudante Adso von Melk (bem ao estilo Watson),
sempre deslumbrado com as observações e deduções do 'mestre'.
No cinema, o monge detetive
Gugliemo foi interpretado pelo ator
escocês Sir Sean Connery (o mesmo Agente 007, James Bond, de
Ian Fleming, 1908-64), que também foi o pai do arqueólogo-detetive
Indiana Jones (na pele do ator Harrison Ford), no filme “
Indiana Jones
e a última Cruzada” (1989), do diretor Steven Spielberg (EUA, 1946-),
onde o erudito e exigente Sr. Henry Jones é socorrido (e às vezes
socorre) o filho protagonista. (Connery participa, como Allan
Quatermain, no filme “
Liga Extraordinária” (
The League of
Extraordinary Gentlemen, 2003), cheio de heróis victorianos
(os outros são Dorian Gray, Mina Harker (de Dracula), Tom Sawyer,
Dr.Jekyll/Mr. Hyde, Capitão Nemo (do
Nautilus), O Fantasma da ópera,
e o Professor Moriarty, o arqui-inimigo de
Sherlock Holmes (e aqui
fecha-se o círculo...!). Ou seja, recortes de textos literários é o
que não falta neste filme!
No mais, até J. L. Borges é 'parodiado' em
O Nome da Rosa na
personagem Jorge de Burgos, o monge cego e fanático, que guarda
os livros proibidos. O que evidencia que a Literatura pós-moderna
é mesmo intertextualidade, metalinguagem, dialogismo, cópia e citação,
além de síndrome de influência. Todas as personagens se misturam,
todas as experiências se intercambiam, os heróis e os vilões confusos
em paródias e citações. Não que a 'cópia' seja degradada (como diria
um Platão, pensando no 'mundo das Ideias'), mas re-escrita (e
re-contextualizada), num diálogo permanente entre textos, onde
toda escrita é (re)leitura, onde a 'verdade' se estabele pela 'escrita
compartilhada', pelo acúmulo de observações reorganizadas
em um novo (e também mais complexo) quebra-cabeças.
Nov/09
Leonardo de Magalhaens
http://leoliteratura.zip.net/