sexta-feira, 26 de março de 2010

Los Cuerpos/ Os Corpos - Javier Galarza



JAVIER GALARZA


(Buenos Aires/ Argentina)

(in: Reversion / Anome Livros / Tropofonia Editorial / 2010)

LOS CUERPOS Os corpos

(trad. LdeM)

(esta cartografia desesperada que somos, o relevo destes
mapas trêmulos, estes pulsares, esta precipitação de
verdades, estes silêncios que contêm e nos dizem)

1.
falamos para entender o corpo
única certeza palpável

1.(bis)
falamos por perder o corpo
única certeza palpável

2.
ainda falaríamos se soubéssemos nos acariciar?

3.
perpetramos contra o sumo poder do silêncio
por esta necessidade de falar os corpos espreitados

4.
corpo. enigma a decifrar sob uma ameaça
permanente: a aniquilação

5.
o que pode falar um corpo senão de violência e nudez?
o que o constitui senão fluidos de doçura de algum rio e
cataclismas?

6.
há, é dizer HÁ, um milagre em movimento, a promessa de
um voo
que haverá de claudicar e um destino de sombras?

7.
e o que é o coração senão assento de magias e pesadelos
onde todas as certezas se desvanecem?

8.
um corpo de pudores e frios e ternuras e incubações

9.
que dirá o corpo senão sua autoconvocação à mutação
das peles?

10.
um desenho gestual, uma festa de caretas

11.
se crê ou se ama desde a morte contra a morte
para afirmar-se na beleza de cada indiferença possível
enquanto nos durar este sangue

12.
palavra que treme e se desnuda para descobrir-se

13.
adjetivar quando somente o ato de olhar já é um
prejuízo

14.
desde aqui resistimos e lutamos
por todos os corpos arrebatados ao amor

15.
entre pressas e ternuras
os corpos preparam seu silêncio

16.
oh cubra-me
nome meu nome apaga este silêncio
já cresçam minhas mãos ao vazio dos dias
rumo a onde a chuva jamais saberá de mim

(in: Reversion / Anome Livros / Tropofonia Editorial / 2010)

mar/10

trad. Leonardo de Magalhaens
blogs do Javier Galarza::::::::::::::::::::

sábado, 20 de março de 2010

Manual de Autoajuda e outro contos (J C Valencia)



tropofonia..............................................................................................................

Juan Carlos Valencia

Manual de Autoajuda e outros contos chinos*

Capítulo 1: Segure a raiva
Não permita a invasão da raiva. A raiva te é estranha; é do país da ira, por tanto, deixe-a para os irados, não seja invejoso. Conforme-se com os impulsos tradicionais de agressividade intrafamiliar, coisa nossa.
Capítulo 2: Cuidado com o estresse
Tenha muito cuidado com o estresse, conforme-se com as práticas sexuais tradicionais.
Capítulo 3: A busca da aprovação alheia

Não mendigue a aprovação dos demais; exija-a. E se, ainda assim, não o aprovam, golpeie-os. Se o merecem. Somente um imbecil não valorizaria suas virtudes. E, se é você quem não valoriza suas virtudes, golpei-se, no máximo o imbecil não lhe poupa ninguém.
Capítulo 4: Eleve onze sua autoestima
Uan sua autoestima, tu sua autoestima, tri sua autoestima, for sua autoestima, faive sua autoestima, six sua autoestima, seven sua autoestima, eit su autoestima, naine sua autoestima, ten sua autoestima, ELEVE ONZE SUA AUTOESTIMA

... simples

Capítulo 5: A Culpa

Não há sentimento mais pernicioso que a culpa, esta o deixa patologicamente inseguro e incapaz de sentir prazer.

O prazer é algo bom e saudável e há coisas que o provocam com radical efetividade, (além do sexo e de um bom baseado, é claro) não se prive de fazê-las e de fazê-las sem culpa alguma, você tem direito de ser feliz, não se limite por sentimentos de culpa introduzidos na sua cabeça por séculos de repressão cristã.

Faça as coisas sem pensar, desterre a culpa, no mais, o que está feito, está feito. Não se prive das seguintes coisas cujo efeito positivo e prazeroso está cientificamente comprovado e que, segundo um estudo da Universidade de quef-sef-yof-pues todo mundo, alguma vez, desejou fazê-las.
1. Esvazie o ar de um pneu de carro estacionado, melhor ainda de madrugada; desenrosque a tampa da câmara de ar do pneu, introduza uma pedrinha do tamanho próprio e volte a enroscá-la, posteriormente sente-se a uma distância prudente e observe como o pneu vai murchando, se você tiver sorte e paciência poderá observar o dono lançando impropérios ao vento da noite enquanto uma careta divertida se esboça em seu rosto.
2. Toque repetidamente a campainha numa casa onde mora uma velhinha sozinha e com problemas para andar e, de imediato, comece a correr.
3. Toque, de novo, a mesma campainha.
4. Insulte as pessoas por telefone e com ofensas grosseiras.
5. Baixe as calças do nerd da sala na hora da apresentação no pátio na hora de cantar os hinos (no mais, quando ele for milionário, sentirá pena por você, e assim, recordar disso, é bom, vá no capítulo # x)
6. Arranhe com um estilete ou um prego os carros novos ou recém-pintados que estão estacionados no quarteirão
7. Volte a tocar a campainha da velhinha.
8. Quebre a pedradas as janelas recém-instaladas de um edifício em construção (no mais, se eles têm grana para construir tremendos edifícios, também têm grana para repor as janelas. Além disso, algumas construções desse tipo contam com seguros contra vândalos)
9. Escreva graffitis obscenos na parede branca de um colégio de mocinhas e dirigido por monjas.
10.Volte a escrever o graffiti sobre a pintura fresca.
11. Cruze a rua fingindo ser aleijado e quando o veículo tiver reduzido a velocidade, volte para ver o motorista com olhos de gratidão e, depois, comece a correr.
12. Complete a gradução com teses plagiadas.
13. As bolas que caírem na sua casa, por caisa do jogo dos meninos da vizinhança, vá devolvê-las, porém furadas (se são meninos pobres devolva duas bolas... igualmente furadas).
As possibilidades são enormes, utilize a imaginação.
(*)chino – pode referir ao povo chinês, por extensão, a porcelana chinesa, e assim, algo delicado, artigo fino; e também pode se referir a descendentes de indígenas, p.ex. 'chinoca' no sul sulamericano para designar a moça com traços indígenas.
trad. Leonardo de Magalhaens
Juan Carlos Valencia . Quito, Equador.
Diretor de teatro, palhaço, poeta,
dirige a Casa de la Expressión, la Cultura y el Arte (La Ceca)
em Tumbaco, Equador.


fonte: Tropofonia revista II 2010 n 5

domingo, 14 de março de 2010

sobre O Médico e o Monstro / Dr. Jekyll & Mr. Hyde





sobre “O Médico e o Monstro
(The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde, 1886)
do escritor escocês R L Stevenson (1850-1894)

parte 4 de A Literatura enquanto Alegoria/Parábola

Convivendo intimamente com médicos e monstros

Uma novela de terror alegórico nascida de um pesadelo com o 'bicho-papão'– segundo testemunham os parentes de R L Stevenson – onde o que aterroriza está oculto pelas aparências. O nobre médico, erudito e filantropo, às voltas com experiências com o 'lado sombrio' da mente. Um terror que está por detrás das portas sempre mantidas fechadas, lacradas, seladas por séculos de 'repressão' e 'ressentimento'.

A dupla face Jekyll – Hyde mostra que o ser humano não é 'íntegro', mas 'fragmentado', é igual a Divindade de três faces, a Trindade cristã, é um ser-três-em-um, segundo a célebre teoria de S Freud, sobre sermos um conjunto de Id, Ego e SuperEgo. Instâncias psicológicas do indivíduo – não tão 'indivisível assim' – que sobrevie a todo um conflito entre o Id – primitivo e animal – e o SuperEgo – o processo civilizatório 'introjetado'. Isto é, o ser humano carrega dentro de si um 'animal enjaulado' à espera de um momento – um deslize do SuperEgo – para entrar em ação e esbravejar, pisotear, violentar, assassinar. A civilização do ser humano assim não passaria de 'verniz fino' sobre a 'besta-fera' trajada com fibras sintéticas e usando aparelhos de última tecnologia.

(Aliás, a própria tecnologia estaria nas mãos das 'bestas' – basta a ver a destruição causada pelas 'máquinas bélicas' – Guernica, uma cidadezinha espanhola, na região basca, arrasada pela aviação, ou Stalingrado, uma cidade indutrial moderna, reduzida a escombros por ondas e ondas de bombardeios de aviação, ou Hiroshima e Nagasáki, cidades japonesas devastadas e polverizadas pelas bombas atômicas, ou os submarinos que carregam, nas entranhas do mar, mísseis com ogivas que podem atingir e destruir países inteiros)

A esquizofrenia seria a 'fragmentação' manifesta do Eu em múltiplas personalidades, uma vez que os esquizofrênicos manifestam uma 'identidade dissociativa', segundo mostram os estudos do psiquiatra suiço P. E. Bleuler (1857-1939) sobre a 'mente dividida' (squizo + phrene, em grego), não apenas de 'dupla personalidade, pois existiam (e existem) pacientes com 'múltiplas' personalidades. Sobrepostas, paralelas, em paz ou em conflito, se manifestando em ocasiões de crise, ou quando do uso de certos medicamentos.

Simbolicamente (para deixarmos o terreno médico, psiquiátrico) poderíamos dizer que um artista múltiplo seria 'esquizofrênico'? Um ator a interpretar apaixonadamente vários papéis? Um artista ventríloquo num teatro de marionetes seria um 'esquizofrênico'? O poeta lusitano Fernando Pessoa era um 'esquizofrênico' ao se 'fragmentar' em tantos heterônimos? Afinal quem era F Pessoa(s)? O Bernardo Soares, o Álvaro de Campos, o Ricardo Reis, o Alberto Caeiro, etc? Quem era o 'cidadão' que assinava o nome de batismo “Fernando Pessoa”?

Não bastasse isso, além do fenômeno da 'dupla personalidade', há uma outra questão: se o indivíduo seria 'bom' ou 'mau'. Se houvesse uma 'segmentação psíquica', haveria uma 'divisão moral', um 'lado bom' separado do 'lado mau'? O ser humano é 'bom' ou é 'mau'? Nasce 'bom' – o bom selvagem, segundo Rousseau – e depois é acorrentado pela sociedade (a civilização) ou é um animal – uma besta – e a sociedade o domestica (segundo Freud) ?
Já o pensador alemão Nietzsche, sempre polêmico, defende que devemos pensar 'além do Bem e do Mal', que seriam abstrações criadas pela 'moral' no propósito de 'domesticar' os instintos humanos. A 'moral' que 'criminaliza' o forte e 'redime' o fraco, enquanto, para o pensador, o 'mau', na verdade, é tudo aquilo que enfraquece e o 'bom' é tudo aquilo fortalece. O pensamento judaico-cristão seria a 'moral do escravo' (Sklavenmoral), onde o fraco se protege do forte, 'apaziguado' pela culpa e pelo ressentimento.

Vários outros pensadores de outrora já meditaram sobre semelhante problemática. Exemplos são Montaigne e Pascal, os ensaístas pensadores franceses do século 17. Enquanto Montaigne acusa os humanos de 'loucura idealizante', Pascal vê muita pretensão quando se proclama um ser capaz de 'bondade'.

“Nosso espírito ainda não tem voluntários prontos ao que pretendem, sem dissociar-se do corpo no curto espaço de sua necessidade. Desejam colocar-se fora de si mesmos, escapar ao humano. É loucura: pois não se tornam anjos, mas, ao contrário, em feras; e não se elevam, acabam decaindo.” (Montaigne, ensaio “Da Experiência”/ De l'Experience)(“Nostre esprit n'a volontiers pas assez d'autres heures, à faire ses besongnes, sans se desassocier du corps en ce peu d'espace qu'il luy faut pour sa necessité. Ils veulent se mettre hors d'eux, et eschapper à l'homme. C'est folie : au lieu de se transformer en Anges, ils se transforment en bestes : au lieu de se hausser, ils s'abbattent.”)

“O homem não é anjo nem fera, e a infelicidade é que aquele que gostaria de agir como anjo age como fera”. (Pascal, pensée 358) (L'homme n'est ni ange ni bête, et le malheur veut que qui veut faire l'Ange fait la bête )

E quanto mais se reprime um dos lados – a 'bondade' e a 'maldade' mais se divide a 'vontade humana', mais se avoluma o 'recalque' (Verdrängung) que pode 'emergir' a qualquer momento. O que a 'moral' coletiva – de rebanho, como queiram – definiria como 'princípio' seria uma 'repressão' de um desejo individual que poderia incomodar o bem-estar coletivo. Se o sexo fora do casamento é um desejo de muitos, se coletivizado teríamos a implosão das famílias com a praga do adultério, etc.

Assim, o que não é permitido pela 'moral', é classificado como 'perversão'. Mas o tiro sai pela culatra... A perversão é aquilo que 'sendo proibido' daria maior prazer! Daí lembrarmos do sadismo, da violência sexual, das orgias fantasiadas e realizadas, até com a exploração de menores de idade (o que é caracterizado como 'crime de pedofilia', em nossa civilização) (n.b. Digo 'nossa civilização', pois existem povos que assim que a menina menstrua, logo é entregue a um homem, ou o próprio pai, ou parente próximo, a deflora... Logo não há tal conceito de 'pedofilia')

Jogando com o 'desconhecido', o 'perverso' (nada mais que o “unheimlich”, o 'sinistro', o 'estranho', o 'inquietante', o 'não-domesticado', nas teorias de Freud), em “O Médico e o Monstro”, a narrativa se constrói a partir de relatos, informações vagas, visitas, testamentos, cartas não-abertas, criando uma ambiência de 'incompletitude' que somente será solucionado no terrível final. Os amigos do respeitado médico Dr. Henry Jekyll se recusam – até o drama final – a acreditarem que tão eficiente profissional possa estar envolvido em crimes tão funestos. Mas então por que ele protegeria tanto um certo Sr. Edward Hyde?

Mas o Dr. Jekyll sofre pelos moralismos, pela castração de seus desejos, assim deseja deixar livre seu 'lado perverso' e não se preocupar em reprimi-lo. O nobre doutor deseja entregar-se às luxúrias e volúpias sem sentir 'culpa' – assim cria semelhante 'dissociação' – separa de si o 'lado perverso'.

Porém, o 'mal toma conta' – uma vez libertada a 'personalidade má' (Sr. Hyde) começa a fugir ao controle, sendo repugnante, anti-social, violento, homicida. Sofre pelo medo – a culpa (segundo encontramos em Raskólnikof, o criminoso atormentado, em “Crime e Castigo”, de Dostoiévski) que o deixa ainda mais violento (o medo de punição aumenta sua raiva contra as leis e os tabus... quanto maior o medo, mais incontrolável se mostra )

A questão do 'vício' – começa como uma experiência e torna-se uma prisão. Seja vício por droga, por sexo, por objetos de consumo... e quando não se perpetua o vício, emerge a 'dor da abstinência', o viciado sofre por não ter o objeto do vício (a droga, o ato sexual, os objetos de consumo, etc) Jekyll precisa de uma certa droga para ser Hyde e deixar de ser Hyde – mas as dosagens não são suficientes, ele perde o controle, ora percebe-se a transmutar-se em Hyde, ou então adormece sendo Jekyll e acorda tendo sido Hyde, a praticar sabe-selá que crimes...! (é quando o 'monstro' rebela-se e assume o poder sobre o 'médico')

Outro exemplo de prisioneiro dos próprios vícios: o artista e boêmio Dorian Gray (do romance de Oscar Wilde) querendo se divertir com a baixeza humana, com os instintos, e conservando (ao mesmo tempo) sua beleza e candura de adolescente! Assim, transfere o 'horrror' ao primoroso quadro e segue sua vida de 'eterna juventude'... A feiúra do viciado é que 'denunciaria' suas faltas e excessos. Assim o quadro vai se tornando cada dia mais feio enquanto Dorian mantem-se belo e elegante.

Assim também com a dupla Jekyll e Hyde, pois o médico mante-se o bom profissional – ainda que um tanto afetado e introvertido – enquanto o 'monstro' torna-se cada vez o mais o que é: um monstro. Sua figura é assustadora, segundo o relato do Sr. Enfield ao Sr. Utterson, quando passam diante de uma porta fechada, numa rua escura. Lá um estranho personagem havia pisoteado uma menina, que ao chorar atraiu os familiares,

“Eu nunca vi um círculo de faces tão cheias de ódio; e lá estava um homem, no meio delas, uma espécie de sombria e carrancuda frieza – também assustado, eu podia ver – mas mantinha tal frieza, senhor, igual ao próprio Satã.” (trad. LdeM)

I never saw a circle of such hateful faces; and there was the man in the middle,
with a kind of black, sneering coolness--frightened too, I could see that--but carrying it off, sir, really like Satan
.

A cada descrição, a sombria personagem vai se delienando, a ponto de justificar a investigação do Sr. Utterson, que é o advogado – e amigo - do Dr. Jekyll, para saber qual exatamente seria a 'ligação' entre o médico e o 'monstro'. Poderia um respeitável cidadão estar 'protegendo' um vilão covarde que não hesita em maltratar as crianças? As fronteiras entre 'proteção' e 'cumplicidade' vão se desvanecendo, e surge um terrível mistério.

O fato de Jekyll haver declarado, em seu testamento, a herança de seus bens – em caso de seu 'desaparecimento' – integralmente para o Sr. Hyde (“amigo e benfeitor”), faz o Sr. Utterson suspeitar que o 'monstro' está chantageando/constrangindo o 'médico'. Afinal, por que Jekyll faria uma 'loucura' dessas? Deixar a fortuna para um vilão tão repugnante...

O Sr. Utterson vai visitar o Dr. Lanyon, médico, colega e amigo do Dr. Jekyll, mas que suspeita que o amigo está envolvido com coisas enigmáticas, restrito à atmosfera sombria do laboratório. Lanyon acha que Jekyll está exagerando em tanto 'interesse científico', assim como vários colegas alertavam o jovem Dr. Victor Frankenstein, na obra de Mary Shelley. O médico-cientista que começa a se envolver com 'enigmáticas experiências', tal um alquimista medieval, a manipular forças que logo fogem ao controle. Assim, tanto Lanyon quanto Utterson começam a ser assombrados por algo que desconhecem... o sinistro, o Unheimlich que perturba.

(Assim também o Dr. Fausto – na obra de Goethe – que perdia o controle sobre Mefistófeles, espírito demoníaco que antes o médico havia invocado e constrangido com sua magia... Esta figura do cientista que - tal um mago desastrado – cria 'monstros' está no cerne de muitas obras de terror e de ficção científica, como veremos em ensaios futuros)

A carta final do Dr. Jekyll – lida pelo Sr. Utterson – mostra todo o desespero do médico ao ver-se dominado pelo 'monstro', “Os poderes de Hyde aumentaram com a doença de Jekyll. E, sem dúvida, o ódio que a eles divide é igual em cada um. Com Jekyll, era uma questão de instinto vital. Ele tinha visto a completa deformidade daquela criatura que havia compartilhado com ele o fenômeno da consciência, e era co-herdeiro com ele até a morte: e além dessas relações comuns, que era a parte mais pungente de todo o seu desespero, ele pensava sobre Hyde, com toda aquela energia de vida, como algo não apenas infernal mas inorgânico. Eis o que era chocante: que o lodo do fundo do poço parecia vociferar e chorar; que a areia sem forma gesticulava e cometia pecados; que o que estava morto, e não tinha forma, usurparia os encargos da vida.” (trad. LdeM)

The powers of Hyde seemed to have grown with the sickiness of Jekyll. And certainly the hate that now divided them was equal on each side. With Jekyll, it was a thing of vital instinct. He had now seen the full deformity of that creature that shared with him some of the phenomena of consciousness, and was co-heir with him to death: and beyond these links of community, which in themselves made the most poignant part of his distress, he thought of Hyde, for all his energy of life, as of something not only hellish but inorganic. This was the shocking thing; that the slime of the pit seemed to utter cries and voices; that the amorphous dust gesticulated and sinned; that what was dead, and had no shape, should usurp the offices of life.

Mas encerremos aqui, sabendo que o nosso objetivo não é resumir o enredo – aliás muito bem enredado, ora analítico, ora sugestivo, quase beirando ao gótico, quando o vulto sombrio do Sr. Hyde perambula pelas ruas nevoentas de London (Londres) com sua bengala ameaçadora, transformando em vítima a primeira pessoa que ele encontrar pela frente, basta apenas um tropeção e eis um homicídio. Tétrica silhueta a espalhar sombras disformes sob os lampiões enevoados numa noite de lua fosca. Eis a atmosfera assustadora de “O Médico e o Monstro”. (Em breve trataremos dos romances góticos e de terror. Aguardem.)

jan/fev/10

Leonardo de Magalhaens

The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde
(Robert Louis Stevenson)
(online)
http://www.gutenberg.org/catalog/world/readfile?pageno=6&fk_files=34703

domingo, 7 de março de 2010

The Bells / Os sinos dobram - E A Poe



EDGAR ALLAN POE


The bells

Os sinos dobram
I


Ouça os trenós com o dobrar -
de sinos de prata a dobrar!
Que mundo de júbilo o som redobra!
Como tangem, tangem, tangem,
No frio ar da noite!
Enquanto o céu estrelado se desdobra
Todo o céu se assombra
Com alegrias cristalinas;
Marcando tempo, tempo, tempo,
Tal um ritmo de antigo tempo,
E soamressoam em música ressoam
Dos sinos que dobram, dobram, dobram,
Dobram, dobram, dobram -
Ressoam e tangem os sinos dobram.

II

Ouça os sinos em núpcias dobram,
Dourados sinos dobram!
Que mundos de alegria em harmonia redobram!
No perfumado ar da noite
Eles ressoam com alegria!
Em notas de derretido ouro
E em tal melodia
Em simples sons flutua,
Às pombas que ouvem, então gorjeiam
No luar!
Oh, de espaços ressoando,
Que jorro de euforia se avolumando!
Como dobram
Como redobram
Ao futuro! Como soam
Em encantos que ressoam
Ao soante e ressonante dobrar
Dos sinos que dobram, dobram, dobram,
Dobram, dobram, dobram -
No ritmo e rima os sinos dobram!

III

Ouça: em alto som os sinos dobram
De bronze os sinos dobram!
Que conto de terror em clamor redobram!
Os alarmados ouvidos da noite
Como eles gritam de susto!
Muito horrizados para falar,
Ficam a gritar, a gritar,
Sem sintonia,
Em clamoroso apelo à piedade ao fogo,
Em louco protestar contra o surdo fogo,
Saltando acima, acima, acima
Que o desespero anima,
Em resoluto esforçar,
De agora ou nunca
Junto a face pálida da lua!
Oh, os sinos dobram, dobram, dobram,
Num relato do terror redobram
De desespero!
Como eles soam, tangem e bradam
Que horror eles vertem
No seio do ar palpitante!
Ainda de ouvir pode se saber,
Em dobrares
E em redobrares,
Como o perigo vai e vem:
Ainda ao ouvido dobram,
Assim tangem
E assim bradam,
Enquanto o perigo sobe e desce,
E ao subir e ao descer na fúria dos sinos que dobram,
Os sinos dobram,
Dobram, dobram, dobram, dobram,
Eles dobram, dobram, dobram -
No clamor e no ardor os sinos dobram!

IV

Ouçam: os sinos dobram-
De ferro os sinos dobram!
Que mundo de solenidade a monofonia redobra!
No silêncio da noite
Trememos de pavor
Da melancólica ameaça deste tom!
Para cada som que flutua
Das goelas em ferrugem atua
Um gemido!
E as pessoas – ah, as pessoas -
Que habitam nas cúpulas,
Tão sozinhas,
E que tocam, tocam, tocam,
Em abafada monotonia,
Glorificados quando rolam
As pedras sobre nossos corações!
Eles não são homens nem mulheres,
Não são bestas nem são humanos,
São espectros:
E o rei deles é quem soa,
É ele quem ressoa, ressoa, ressoa,
E redobra
Os louvores que os sinos dobram!
E os seus peitos se atordoam
Com os louvores que os sinos soam;
E ele dança e ele urra;
Marcando tempo, tempo, tempo,
Num tipo de rima de antigo tempo;
Aos louvores que os sinos dobram,
Marcando tempo, tempo, tempo,
Ao golpear dos sinos que dobram -
Dos sinos que dobram, dobram, dobram -
Ao soluçar dos sinos que dobram;
Deixando tempo, tempo, tempo,
Quando ele ressoa, ressoa, ressoa,
Numa feliz rima de antigo tempo,
Ao rolar dos sinos que dobram,
Dos sinos que dobram, dobram, dobram,
Do badalar dos sinos que dobram,
Dos sinos que dobram, dobram, dobram,
Que eles dobram dobram, dobram -
Assim lamentosos e gementes eles dobram!

fev/10

Trad. livre by Leonardo de Magalhaens

domingo, 28 de fevereiro de 2010

sobre O ALIENISTA - Machado de Assis






Sobre O ALIENISTA (1881/82)
novela de Machado de Assis ( RJ, 1839-1908)



De louco, todo mundo tem um pouco”



parte 3
de A Literatura enquanto Alegoria/Parábola




Acompanhamos, no ensaio anterior, as vicissitudes de Simplício às voltas com suas 'lunetas mágicas', na obra alegórica de J M de Macedo. De como em dado momento é 'rotulado' de 'louco' pela sociedade, e pelos próprios familiares!, como uma clara 'punição' por sua crítica à ordem social – cheia de hipocrisia e vaidades.



Pois Simplício ousou questionar a 'ordem social', que define o que é 'certo' e o que é 'errado'. Num mundo de hipócritas o 'bom tom' é ser sensatamente hipócrita. Eis a questão da Autoridade – quem definiria a 'normalidade' e a 'loucura' ? A sociedade? A elite? Muitos dizem: a Ciência! E quem faz a Ciência? A Ciência faz a si mesma – SEM os homens? Como pode uma criação humana não ter as características humanas: subjetividade e parcialidade?



Entra em foco a figura do 'homem da ciência': o cientista: auto-centrado, frio e racional – o Sr. Spock? (Aquele do “Jornada nas Estrelas”/Star Trek) Sem emoções, guiado pela lógica. Ou o Dr. Victor Frankenstein? (criador de um monstro) Ou o Dr. Jekyll? (que é ele mesmo um monstro) Ou é apenas outra 'caricatura'? Para muitos, Einstein seria considerado 'louco', pouco 'racional', pois ele aceitava o sonho, a imaginação e a intuição.

Haverá um equilíbrio neste 'positivismo' do 'culto à Razão'? Ou a 'racionalidade' é mais uma das ficções que os humanos inventaram com sua imaginação fabulosa?Afinal, a imaginação é o único encanto que sobrou para os humanos. E o 'positivismo' não hesita em 'desencantar o mundo'... Um mundo que seria sujeito a 'formulações' e 'classificações', cuidadosamente dissecado e mesurado, pronto para ser vítima da 'razão instrumental': que existe desde que 'algo funcione'. Agora, quem vai definir 'como funcione' ou 'para quê funcione' é outra questão. É um problema de ordem política e econômica.

O problema da classificação: toda classificação é arbitrária, segue os ditames (e interesses de alguém (ou grupo político e econômico). Lembramos a ironia do escritor argentino Jorge Luís Borges, num texto (1) onde os seres são encaixados em classificações prá-lá de esdrúxulas, pois "não há classificação do universo que não seja arbitrária e conjectural. A razão é muito simples: não sabemos que coisa é o universo”(”no hay clasificación del universo que no sea arbitraria y conjetural. La razón es muy simple: no sabemos qué cosa es el universo"”).

Um dos exemplos dado é "[...] certa enciclopédia chinesa intitulada Empório celestial de conhecimentos benévolos. Em suas remotas páginas está escrito que os animais se dividem em a) pertencentes ao Imperador, b) embalsamados, c) amestrados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cachorros soltos, h) incluídos nesta classificação, i) que se agitam feito loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel finíssimo de pêlo de camelo, l) et cetera, m) que acabaram de quebrar o jarrão, n) que de longe parecem moscas” (“(a) pertenecientes al emperador, (b) embalsamados, (c) amaestrados, (d) lechones, (e) sirenas, (f) fabulosos, (g) perros sueltos, (h) incluidos en esta clasificación, (i) que se agitan como locos, (j) innumerables, (k) dibujados con un pincel finísimo de pelo de camello, (l) etcétera, (m) que acaban de romper un jarrón, (n) que de lejos parecen moscas.”)

As classificações sempre criam divisões e subdivisões, e dentro destas mais 'sub-classificações', num processo infinito e arbitrário. (Parecendo aquelas imagens de fractais...) Onde entre a 'loucura' e a 'lucidez' haverá subdivisões, assim como dentro da próprio 'loucura' – 'quase loucura', 'alucinação', 'loucura plena', 'esquizofrenia', etc Aquele que não se encaixar em (a) precisará ser encaixado em (b) e assim por diante. Quem não entra no conjunto dos 'racionais' vai ser jogado no subconjunto dos 'quase racionais' ou dos 'loucos totais'. Mas quem define o 'racional'? O cientista? O psiquiatra? Alguém empolgado como o caricatural Dr. Simão Bacamarte?

Faz sentido. Lembramos da obra “A História da Loucura” (Histoire de la Folie à âge classique, 1961) de Michel Foucault, pensador francês (importante nas áreas mais vastas, ao transpor as cercas das disciplinas), que há (e sempre houve) toda uma questão do poder, da disciplina, da 'ordem social' excludente . Foucault refere-se até a um 'biopoder' que regula mente e corpos dos 'cidadãos' em sociedade. (qualquer semelhança com 'Admirável Mundo Novo', '1984' ou 'Matrix' será mera coincidência?)

Também lembramos as ações importantes da 'luta anti-manicomial' – inspirada nas reformas realizadas pelo psiquiatra italiano Franco Basaglia (1924-1980) no sistema de saúde mental na cidade de Trieste, nos anos 70 – ao buscar impedir o confinamento dos 'loucos' em lugares que parecem verdadeiros 'campos de concentração' (inclusive lúgubre 'imagem' que Basaglia usou ao referir aos manicômios da célebre cidade mineira de Barbacena, em uma visita realizada em 1979.) Aliás, a célebre Barbacena inspirou outra figura alegórica: Geraldo Viramundo, o “Grande Mentecapto” da obra homônima (1979) de Fernando Sabino (1923-2004)(2)

Antes não era costume se 'hospedar' os loucos em casa de tratamentos (ou que se dizem 'de tratamento'), mas eles, os loucos, eram isolados, pelas próprias famílias, da convívio (e da zombaria) social. Tanto que causa estranheza o Dr. Simão Bacamarte querer 'reunir' os loucos numa casa de saúde.

O escrivão perdeu-se nos cálculos aritméticos do rendimento possível da nova taxa; e um dos vereadores, que não acreditava na empresa do médico, pediu que se relevasse o escrivão de um trabalho inútil.

- Os cálculos não são precisos, disse ele, porque o Dr. Bacamarte não arranja nada. Quem é que viu agora meter todos os doidos dentro da mesma casa?
Enganava-se o digno magistrado; o médico arranjou tudo. Uma vez empossado da licença começou logo a construir a casa
. (I)

Após um período de pesquisas e observações, analisando os 'padrões' e 'excentricidades, o Dr. Bacamarte começa a questionar o que seria a 'normalidade'. O Dr. começa então a 'internar' tudo mundo, a maioria dos cidadãos tem algum distúrbio ou excentricidade, ou 'desequilíbrio das faculdades mentais', e deve assim ser 'estudado'.

O alienista fez um gesto magnífico, e respondeu:
- Trata-se de coisa mais alta, trata-se de uma experiência científica. Digo experiência, porque não me atrevo a assegurar desde já a minha idéia; nem a ciência é outra coisa, Sr. Soares, senão uma investigação constante. Trata-se, pois, de uma experiência, mas uma experiência que vai mudar a face da terra. A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente. (IV)

Onde encontrar o equilíbrio e a 'razão' num mar de excentricidades e 'loucura'?

Simão Bacamarte refletiu ainda um instante, e disse:
- Suponho o espírito humano uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares, é ver se posso extrair a pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razão e da loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia e só insânia. (IV)

Ironias com a Revolução

Quando a 'experiência' começa a 'bater à porta' dos cidadãos – até dos 'homens bons', os magistrados, os vereadores, os dignos e honoráveis – e ninguém se sente seguro – afinal, quem seria isento de 'desequilíbrios' ou 'excentricidades'? - surgem 'movimentos populares' exigindo a 'queda' da 'Casa de Loucos' – a “Bastilha da razão humana”, segundo um slogan que a 'plebe' glorifica, logo 'conduzida' por um 'líder nato': um barbeiro com sonhos de ambição e de poder.

Ironia com as 'revoluções': Porfírio, o barbeiro, é uma mistura de Marat e Robespierre? Mas sempre há alguém mais radical? Aqui seria um outro barbeiro, João Pina, uma espécie de Babeuf. O problema da 'revolução' são os 'revolucionários'? Que transmutam o ressentimento em 'vontade de poder'? E derrubam uma elite apenas para assumir o lugar desta? (A 'direita' adora usar este argumento! Vide Pareto e sua tese do 'rodízio das Elites', que muito agradou aos fascistas)

O barbeiro tornou logo a si e, agitando o chapéu, convidou os amigos à demolição da Casa Verde; poucas vozes e frouxas lhe responderam. Foi nesse momento decisivo que o barbeiro sentiu despontar em si a ambição do governo; pareceu-lhe então que, demolindo a Casa Verde e derrocando a influência do alienista, chegaria a apoderar-se da Câmara, dominar as demais autoridades e constituir-se senhor de Itaguaí. Desde alguns anos que ele forcejava por ver o seu nome incluído nos pelouros para o sorteio dos vereadores, mas era recusado por não ter uma posição compatível com tão grande cargo. A ocasião era agora ou nunca. Demais fora tão longe na arruaça que a derrota seria a prisão, ou talvez a forca, ou o degredo. O barbeiro tornou logo a si e, agitando o chapéu, convidou os amigos à demolição da Casa Verde; poucas vozes e frouxas lhe responderam. Foi nesse momento decisivo que o barbeiro sentiu despontar em si a ambição do governo; pareceu-lhe então que, demolindo a Casa Verde e derrocando a influência do alienista, chegaria a apoderar-se da Câmara, dominar as demais autoridades e constituir-se senhor de Itaguaí. Desde alguns anos que ele forcejava por ver o seu nome incluído nos pelouros para o sorteio dos vereadores, mas era recusado por não ter uma posição compatível com tão grande cargo. A ocasião era agora ou nunca. Demais fora tão longe na arruaça que a derrota seria a prisão, ou talvez a forca, ou o degredo. (VI)

Acaba a 'revolução' sobram os 'revolucionários' – vide Cromwell nas 'revoltas parlamentares', na tumultuada Inglaterra do século 17, esforçando-se para 'conter' os Levellers ('niveladores') e os Diggers ('cavadores') que querem impulsionar a Revolução adiante – reformas sociais imediatas em prol do igualitarismo socialista e/ou anarquista.

Dentro de cinco dias, o alienista meteu na Casa Verde cerca de cinqüenta aclamadores do novo governo. O povo indignou-se. O governo, atarantado, não sabia reagir. João Pina, outro barbeiro, dizia abertamente nas ruas, que o Porfírio estava "vendido ao ouro de Simão Bacamarte", frase que congregou em torno de João Pina a gente mais resoluta da vila. Porfírio, vendo o antigo rival da navalha à testa da insurreição, compreendeu que a sua perda era irremediável, se não desse um grande golpe; expediu dois decretos, um abolindo a Casa Verde, outro desterrando o alienista. João Pina mostrou claramente, com grandes frases, que o ato de Porfírio era um simples aparato, um engodo, em que o povo não devia crer. Duas horas depois caía Porfírio! ignominiosamente e João Pina assumia a difícil tarefa do governo. Como achasse nas gavetas as minutas da proclamação, da exposição ao vice-rei e de outros atos inaugurais do governo anterior, deu-se pressa em os fazer copiar e expedir; acrescentam os cronistas, e aliás subentende-se, que ele lhes mudou os nomes, e onde o outro barbeiro falara de uma Câmara corrupta, falou este de "um intruso eivado das más doutrinas francesas e contrário aos sacrossantos interesses de Sua Majestade", etc. (X)

Quando a Virtude é loucura

Segue-se a 'restauração', volta-se à 'ordem social'. Mas há algo errado. Ainda não está definida a 'fronteira da loucura'. Todos, de algum modo, são loucos? A maioria da cidade? Se existem mais 'desequilibrados', então o desequilíbrio é que seria o 'normal', certo? Logo, o 'normal', estatisticamente falando, é ser 'louco'! Os loucos, digamos os 'anormais', seriam então os equilibrados, os virtuosos, os modestos, etc. Estes merecem ser isolados, para não 'contaminarem' os demais 'normais', que são os desequilibrados, os mesquinhos, os vaidosos, os egoístas, os maliciosos, etc.

Afinal, de que adianta o psicólogo curar o 'louco' da sua 'loucura' se vai re-ingressá-lo num mundo de 'loucos'? Ou ele 'cura' toda a sociedade – ou faz o 'louco' se adaptar à 'loucura' dominante. Ou então separar os 'loucos' dos 'quase-loucos' e dos 'pseudo-loucos'... recaindo novamente naquelas classificações esdrúxulas que Borges ironiza. A cada dia uma nova 'doença mental 'é inventada. Complexos, síndromes, paranóias e neuroses em varejo e atacado. Quem está louco – o cidadão ou a sociedade? Não será o mundo de competição e vaidades que 'enlouquece' as pessoas? Bacamarte decide libertar os 'hóspedes' (que correspondem a quatro quintos da população de Itaguaí!) e hospedar os 'equilibrados'.

Os alienados foram alojados por classes. Fez-se uma galeria de modestos; isto é, os loucos em quem predominava esta perfeição moral; outra de tolerantes, outra de verídicos, outra de símplices, outra de leais, outra de magnânimos, outra de sagazes, outra de sinceros, etc. Naturalmente, as famílias e os amigos dos reclusos bradavam contra a teoria; e alguns tentaram compelir a Câmara a cassar a licença. A Câmara porém, não esquecera a linguagem do vereador Galvão, e, se cassasse a licença, vê-lo-ia na rua e restituído ao lugar; pelo que, recusou. Simão Bacamarte oficiou aos vereadores, não agradecendo, mas felicitando-os por esse ato de vingança pessoal. (XII)

Mas aprisionar os 'justos' e deixar livres os 'pecadores'? Reconhecer o 'pecado' como a 'normalidade' e elogiar os 'normais' no exercício da inveja, vaidade, desconfiança, violência, vingança? Pois, a terapia será exatamente esta! Curar o modesto com o incentivo da vaidade, o honesto com o brilho do ouro, o abstêmio com as seduções da luxúria... E todos poderão então reingressar no convívio da sociedade hipócrita e desequilibrada! E, finalmente, terá assim o Dr. Bacamarte cumprido a sua venerável missão?

Era assim que ele ia, o grande alienista, de um cabo a outro da vasta biblioteca, metido em si mesmo, estranho a todas as coisas que não fosse o tenebroso problema da patologia cerebral. Súbito, parou. Em pé, diante de uma janela, com o cotovelo esquerdo apoiado na mão direita, aberta, e o queixo na mão esquerda, fechada, perguntou ele a si:
- Mas deveras estariam eles doidos, e foram curados por mim, - ou o que pareceu cura não foi mais do que a descoberta do perfeito desequilíbrio do cérebro?
E cavando por aí abaixo, eis o resultado a que chegou: os cérebros bem organizados que ele acabava de curar eram desequilibrados como os outros. Sim, dizia ele consigo, eu não posso ter a pretensão de haver-lhes incutido um sentimento ou uma faculdade nova; uma e outra coisa existiam no estado latente, mas existiam. (XIII)

No final, apenas o Alienista, o cientista, o pesquisador, o 'acima-dos-simples-mortais' é que é o 'equilibrado'? É o 'racional'?

Isso é isto. Simão Bacamarte achou em si os característicos do perfeito equilíbrio mental e moral; pareceu-lhe que possuía a sagacidade, a paciência, a perseverança, a tolerância, a veracidade, o vigor moral, a lealdade, todas as qualidades enfim que podem formar um acabado mentecapto. Duvidou logo, é certo, e chegou mesmo a concluir que era ilusão; mas, sendo homem prudente, resolveu convocar um conselho de amigos, a quem interrogou com franqueza. A opinião foi afirmativa.
- Nenhum defeito?
- Nenhum, disse em coro a assembléia.
- Nenhum vício?
- Nada.
- Tudo perfeito?
- Tudo.
- Não, impossível, bradou o alienista. Digo que não sinto em mim essa superioridade que acabo de ver definir com tanta magnificência. A simpatia é que vos faz falar. Estudo-me e nada acho que justifique os excessos da vossa bondade.
A assembléia insistiu; o alienista resistiu; finalmente o Padre Lopes. explicou tudo com este conceito digno de um observador:
- Sabe a razão por que não vê as suas elevadas qualidades, que aliás todos nós admiramos? É porque tem ainda uma qualidade que realça as outras: - a modéstia.
Era decisivo. Simão Bacamarte curvou a cabeça, juntamente alegre e triste, e ainda mais alegre do que triste. Ato continuo, recolheu-se à Casa Verde. Em vão a mulher e os amigos lhe disseram que ficasse, que estava perfeitamente são e equilibrado: nem rogos nem sugestões nem lágrimas o detiveram um só instante.
- A questão é científica, dizia ele; trata-se de uma doutrina nova, cujo primeiro exemplo sou eu. Reúno em mim mesmo a teoria e a prática.
(XIII)
Então, o Dr. Simão Bacamarte, com toda a sua erudição e sapiência, acaba por internar-se, isto é, ele é o juiz e o réu da sentença que o manterá isolado do convívio humano até sua morte plena de indagações. De repente o 'alienado' pode ser justamente o 'alienista', incapaz de encontrar o 'médico' e o 'monstro' em si mesmo.

É o que veremos no próximo ensaio.

Jan/10
notas:
(1)o conto de Borges chama-se “El idioma analítico de John Wilkins”, publicado em 1942. Texto na íntegra (online)
http://www.ldc.upenn.edu/myl/wilkins.html
(2)Geraldo Viramundo é uma personagem entre trágica e cômica, uma espécie de Don Quixote, que vive suas peripécias, entre a ausência de hipocrisia e a demência. O livro inspirou o filme “O Grande Mentecapto” (1986) do diretor Oswaldo Caldeira, com o excelente ator Diogo Vilela sendo o protagonista. Outros filmes sobre a loucura, que tratam sobre o 'confinamento' e e 'segregação', e merecem destaque: “Um Estranho no Ninho” (One Flew Over the Cuckoo's Nest, 1975), “Uma Mente Brilhante” (A Beautiful Mind, 2001),“Garota Interrompida” (Girl, Interrupted, 1999 ), “Loucuras do Rei George” (The Madness of King George, 1994)
Mais sobre o Dr. Franco Basaglia (em italiano) em
http://it.wikipedia.org/wiki/Franco_Basaglia

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Tabacaria / Tobacco Shop (Fernando Pessoa)




FERNANDO PESSOA / ÁLVARO DE CAMPOS
TABACARIA
Tobacco Shop

I am nothing.
Never I'll be anything.
I cannot wish to be anything.
Aside from this, I have within me all the dreams of the world.

Windows of my bedroom,
Of my bedroom of one of the world's millions nobody knows who is
(And if they knew who is, what would they know?)
Give access to the mystery of a street constantly crossed by people.
To a street inaccessible to all of thoughts,
Real, impossibly real, certain, unknowingly certain,
With the mystery of things beneath the stones and beings,
With death putting dampness in the walls and men's white hairs,
With Destiny driving the wagon of everything through the road of nothing.

Today I am defeated, as if I knew the truth.
Today I am lucid, as if I were about to die
And had no more brotherhood with things
Than a goodbye, becoming this house and this streetside
A row of train wagons, and a whistled departure
From inside my head,
And a jolt of my nerves and a grind of bones on the going.

Today I am perplexed, as one who wondered and found and forgot.
Today I am divided between the loyalty I owe
To the Tobacco Shop on the other side of the street, as external real thing,
And to the feeling that everything is a dream, as inward real thing.

I have failed in everything.
And since I had no purposes, maybe everything was nothing.
The learning they gave me,
I go down from this by the window at the back of the house.
I went to the open country with grand purposes.
But there I found only grass and trees,
And when there were people, they were just as other.
I move away from the window, I sit in a chair. What shall I think about ?

What know I about what I will be, I who don't know what I am?
To be hat I think? But I think to be many things!
And there are many people thinking they are the same thing then
cannot be possible there are many!
Genius? At this moment

Hundred thousand brains conceive themselves in dream as geniuses like me,
And the History won't mark, who knows?, not even one,
No, I don't believe in myself.
In all of madhouses there are madpersons insanes with so many sureties!
I, who I have not any surety, am more sure or less sure?
No, not even in myself...

In how much garrets and no-garrets of the world
At this moment are there geniuses-for-themselves dreaming?
How much high and noble and lucid aspirations -
Yes, truly high and noble and lucid -,
And who knows if realizable,
Never they will see the real sun's light nor will find people's ears?
The world is for the one who that is born to conquest it
And not for the one who dreams might can conquest it, even
the one have reason.

I have dreamed more than Napoleon did.
I have held tight to the hypothetical chest more humanities than Christ,
I have secretly created philosophies which no Kant has ever written.
But I am, and maybe always should be, the one from the garret
Although I don't live in it;
I shall always be the one not born for this;
I shall always be the one who just had qualities;
I shall always be the one who has waited for a gate to open to him
near a doorless wall

And sang the ballad of the Infinite in a poultry yard,
And heard God's voice in a covered well.
Believe in myself? No, nor in anything.
May Nature be spilled on my feverish head
Her sun, her rain, the wind that finds my hair,
And the rest, let it come if it must, or not come.
Heartly slaves to the stars,
We have conquered the whole world before leaving our beds;
But we were awakened and it was opaque,
We rose and it was indifferent,
We left the house and it was the whole earth,
Moreover the Solar System, the Milky Way and the Indefinite.

(Eat chocolates, little one;
Eat chocolates!
Know there are no metaphysics in the world but chocolates.
Know that all religions don't teach more than confectionery.
Eat, dirty little one, eat!
If only I could eat chocolates with the same truth as you do!
But I think and, when I lift the silver paper of a tin-foil leaf,
I let everything fall to the ground, as I have lost to my life.)

But, at least, remains from the bitterness of what I will never be.
The speedy calligraphy of these verses,
Broken portico to the Impossible.
But, at least, I devote to myself a despisal without tears,
Noble, at least, in this wide gesture with I throw
The dirty clothes that I am, without roll, to the course of things,
And I stay in home without shirt.
(You, who consoles, not exists and so console,
Or greek goddess, conceived as a living statue,
Or roman patrician, impossibly noble and nefast,
Or princess of minstrels, very gentil and colorful,
Or marquess of eighteenth century, décolleté and very so far,
Or famous cocote of the time od our fathers,
Or modern thing I not know – I not know what -
all of this, be what will be, what you are, if you can inspire then inspire!
My heart is a poured out bucket.
As that ones invocating spirits invocate spirits I invocate
Myself and I find nothing.
I come close to the window and I see the street with a absolute clearness.
I see the shops, I see the sidewalks, I see the passing cars,
I see the dressed living ones crossing by themselves,
I see the dogs also existing,
And all of this is foreign, as everything. )

I lived, studied, loved, and even believed,
And today there is no beggar whom I not envy just for he is not me.
I look at everyone the rags and the sores and the lie,
And I think: maybe never I had lived nor studied nor loved nor believed
(For is possible to make the reality of all of this without making nothing about this)
Maybe existed just as lizard which the tail they had cut
And the tail besides the lizard at movement.
I had made with myself what I never knew,
And what I could make with me I did not.
The domino which I dressed was wrong.
They knew me soon as who I am not and I not deny and lost myself.
When I want draw out the mask,
It was glued to the face.
When I drew out and saw myself at the mirror,
Already I had aged.
I was drunk, already I not knew how dress the domino I had not drawn out.
I threw away the mask and I slept in the cloakroom
As a dog tolerated by the manager
Because it is harmless
And I will write this history to prove I am sublime.
Musical essence of my useless verses,
If I could find you as something I had made
And not stay always in front of the Tabacco Shop in front,
Treading underfoot the consciousness of be existing,
As a carpet where a drunkard stumbles on
Or a door-mat stolen by gypsies and it worths nothing.

But the Tobacco Shop owner has come to the door and is standing there.
I look at him with the discomfort of an half-turned head
And the discomfort of a soul understanding a bit.
He shall die and I shall die.
He shall leave his signboard and I shall leave my verses.
His sign will die, and so will my verses.
And after any moment will die too the street where the signboard is,
And so will the language in which the verses are written.
And so will die the whirling planet where all of this happened.
On other satellites of other systems something like people
Will go on making something like verses and living under things like signboards,

Always one thing in front of the other,
Always one thing as useless as the other,
Always the impossible as stupid as the real,
Always the mystery of the bottom as sure as the sleep of mystery of the top.
Always this or always some other thing, or neither one nor the other,

But a man has entered the Tobacco Shop (to buy tobacco?),
And the plausible reality suddenly falls upon me.
I half rouse myself, energetic, convinced, human,
And I will try to write these verses in which I say the opposite.

I light a cigarette as I think about writing them.
And I taste in the cigarette the liberation from all thoughts.
I follow the smoke as if it were a particular course,
And enjoy, in a sensitive and competent moment,
The liberation of all the speculations
And the conscience that metaphysics is a consequence of bad disposition.

After I lie down on the chair
And continue smoking.
While Destiny allows to me, I will keep smoking.

(If I married my washwoman's daughter
Maybe I should be happy.)
Then, I rise. I go to the window.

The man has come out from the Tobacco Shop (putting change in the pocket of trousers?).
Ah, I know him: he is Esteves without metaphysics.
(The Tobacco Shop owner has come to the door.)
As if by a divine instinct, Esteves turned around and saw me.
He waved goodbye, I greet him "goodbye oh Esteves!", and the universe
Reconstructed itself for me, without ideal nor hope, and the Tobacco Shop owner smiled.

(fev/10)

Trad. livre by Leonardo de Magalhaens
..

domingo, 14 de fevereiro de 2010

sobre A LUNETA MÁGICA (J Manuel de Macedo)





Sobre “A Luneta Mágica” (1869)
de Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882)

Além da Ciência do Bem e do Mal

parte 2 de Literatura enquanto Alegoria/Parábola

A Alegoria enquanto instrumento de 'desvelamento' (tirar
os véus) revelando os lados obscuros, os bastidores da
realidade. Apresenta, assim, a Aparência versus a essência.
Lembremos aqui da Alegoria de Voltaire (“Cândido, ou o
Otimismo
”) onde a contraposições eram o Otimismo e o
Pessimismo, diante de cada situação (muitas absurdas)
confrontada pelo ingênuo protagonista Cândido.

Outros contos de Voltaire abordam a questão do 'olhar'.
Exemplos: “O Carregador zarolho”, “Memnon ou a Sensatez
Humana
”, “O Ingênuo”, todos em forma alegórica, visando
a 'educação através do riso'. Destacamos apenas trechos
que nos conduzem diretamente à próxima obra a ser
comentada. Em “O Carregador zarolho” (Le Crocheteur
borgne
) encontramos um trecho interessantíssimo:
Nossos dois olhos não melhoram nosso destino. Um deles
deixa ver o bem, o outro, os males da vida. A maioria fecha
o primeiro, enquanto poucos fecham o segundo. Pois é, assim
muita gente até preferiria ser cega do que ver. Bem-aventurados
os zarolhos que são privados do olho mau que deforma tudo
o que vemos

Em outro conto (Memnon ou La Sagesse Humaine),
podemos ler “Um dia Memnon concebeu o projeto insensato
de ser de todo sensato. Loucura assim já passou pela cabeça
de muita gente
.” Seguindo tal projeto audacioso (tão despro-
positado quanto a missão de ser sempre sincero, verdadeiro,
honesto e franco...) o protagonista Memnon se envolve
numa briga, devido a dívidas de jogo, e perde um olho.
Passa a ser um zarolho que vê apenas pelo olho ruim, vê
somente as misérias da vida. Ao contrário de Mesrour, o
carregador zarolho, do outro conto. Memnon suspira:
Temo que nosso pequeno globo terrestre seja nada mais que
um dos hospícios do universo
” (qualquer semelhança com
O Alienista” será mera concidência?)

Já o jovem huron (povo rústico na França) em “L'Ingénu
(O Ingênuo) é um ser primativo, no sentido de não 'educado',
'civilizado', um camponês (igual Candide) que representa
aqui o 'bom selvagem' (imagem que Rousseau contrapõe
àquelas que mostram o ser humano primoridalmente mau)
pois sempre comete o 'deslize' de ser honesto sincero,
E o senhor, como se chama?”, perguntam ao protagonista,
que responde, “Chamaram-me sempre de Ingênuo, pois sempre
digo sinceramente o que penso e faço o que quero
.” Assim,
numa época de intolerância religiosa, marcada pelos
conflitos entre as várias convicções e seiras, o Ingênuo
vai se envolver em encrencas.

Como o olhar influencia o mundo observado? Nossas
emoções deformam a percepção do mundo? Levantar de
bom humor é essencial para um dia de sorte? Ser
pessimista ou otimismo depende tão-somente de uma
'visão do mundo'? Como não ser parcial nesta 'visão'? Como
viver além do Bem e do Mal? Em suma, é melhor ser cego
do que ver o mundo tal como este é?

Pois a obra “A Luneta Mágica” do brasileiro J M de Macedo,
é incrivelmente atual pela forma e pela força de sua Alegoria,
pois “quem vê cara não vê coração” e “o Diabo não é tão feio
como lhe pintam
”. As aparências e essências se contrastam,
o que parece bom é mau, e vice-versa. Há uma ambiguidade
de estética e ética, entre moral e prática social. O que alguém
diz ser – e o que ele é realmente.

As personagens são mais 'símbolos' do que exatamente
'representações fictícias de pessoas que poderiam ser reais'
(certamente li isto em Bakhtin), são caricaturas, são exageros,
são alegorias. A prima Anica é o 'egoísmo sublime', sendo a
mocinha casadoira que espera um marido mais rico do que
exatamente virtuoso. A tia Domingas é a 'hipócrita invejosa
e má', a religiosa que julga os outros igual ao famoso fariseu
da parábola cristã. E o irmão Américo é o 'ambicioso vulgar',
o político que diz lutar pelo 'bem-estar coletivo' mas interessado
apenas na 'ascensão social'.

Se a família já engana Simplício – o que esperar dos outros,
os estranhos? Pois abrigado no seio da família, o protagonista
está despreparado para a vida social, incapacitado por sua
miopia, que impede sua visão plena – a de que “Tudo tem um
lado bom e lado mau”. Tal qual a Alegoria de “O médico e o
monstro
”, Dr. Jekyll e Mr. Hyde (Stevenson), ou o profundo
e áspero verso de Augusto dos Anjos: “a mão que afaga é a
mesma que apedreja
”.

(A Visão do Mal )

O armênio tem razão: a visão do mal é um tormento; ver muito é um erro; ver demais e um castigo; a temperança é virtude que deve presidir e moderar os gozos de todos os sentidos do homem. (IV)

A miopia moral, a ignorância completa do mal, a inocência conservaram-me até esta manhã franco, simples, sem uma nuvem de suspeita na alma, sem desconfiança dos outros, e com o coração aberto, transparente aos olhos de todos. (VIII)

Ah! visão do mal que me estás levando a descrer da humanidade! tu me serás talvez fatal; mas eu te quero, e não te dispenso mais, porque tu és luz, embora sejas luz do inferno.
(X)

Pois a 'visão do Mal' causa a permanente desconfiança,

É ainda uma desilusão! é ainda um turvo desengano a arrastar-me à desconfiança e talvez em breve ao aborrecimento dos homens. (XI)

E desconfiança que leva ao ceticismo e à misantropia. Pois
os homens que se dizem os mais abnegados e justos são os
mais desonestos e ardilosos. E as mulheres? Vejamos...
Vaidade, inveja, necessidade de ser admirada, competição
com as outras, são provocadoras, falsas, ciumentas por rancor,
não por amor, são ressentidas, dadas ao luxo, ao capricho, etc.
Simplício não pode crer que todos são 'naturalmente' maus,
talvez tudo seja devido às circunstâncias, à uma má educação,
à ignorância. Vê uma mocinha mimada e caprichosa e tenta
explicar o motivo de tal caráter licencioso.

Coitadinha! era uma menina, que talvez tivesse nascido com excelentes disposições, branda, condescendente, alegre, assim o devo supor, pois não creio que alguém nasça mau e pervertido; mas os pais entusiasmados pela beleza da filha, quiseram fazer dela singular maravilha, e a esqueceram cinco anos em um famoso colégio, cuja diretora, antiga florista de Paris, mudara de vocação com os enjôos da viagem transatlântica, e chegada ao Rio de Janeiro, anunciou prodígios de instrução e educação de meninas. (XIV)

Mas é em vão - até na suposta Criação divina, o protagonista-
narrador pode ver o Mal! Até um belo e lépido colibri, “delicada
e gentil criatura
”, pode ser um monstro de gulodice e egoísmo,
a “devorar em cada dia dezenas de insetos inocentes, fracos e
incapazes de defender-se
”. (XVI) Ora, a Natureza mostra-se
'seleção natural' (lembrar que a “Teoria da Evolução” de
Charles Darwin, causa furor após a publicação de “A Origem
das Espécies
”, em 1859, portanto uma década antes de
A Luneta Mágica”)

Assim, Simplício finalmente desabafa:

Vi, encontrei somente o mal em tudo, e em toda a parte, nos seres orgânicos e nos inorgânicos, nas obras das ciências, e das artes, nos livros e nos monumentos.
Para escrever tudo quanto me mostrou a visão do mal me fora preciso encher com a pena molhada em fel muitos e volumosos livros, e atormentar a minha alma com o registro vivo das mais aflitivas observações
. (XVII)

Pois o jovem 'espirituoso' é debochado, sensualista, egoísta;
o jovem 'sério' é um pensador, um calculista, sem escrúpulos.
Todo discurso tem um 'interesse', um 'objetivo não revelado'
(XVIII). Assim, Tudo pois que eu via no mundo era maléfico,
pavoroso, medonho!
(XIX) e entrega-se ao julgamento moral de tudo (XX)

Para qualquer lado que me voltei, fitando a minha luneta, vi somente sob falsas aparências corações corrompidos pelos vícios, ou enegrecidos pelo crime.
Descri do advogado, do padre, do sábio, do artista, de todos e de tudo!
De repente, as pessoas ao redor começam a fugir do olhar da
luneta mágica, pois Fogem, disse rindo-me; fogem, porque lhes
doem as consciências e se reconhecem todos hipócritas e maus.
(XXIII)
E vem o ceticismo: Não creio em homem algum, em mulher alguma: sou a descrença viva, ceticismo animado. Desconfio de todos. (XXV)

A 'visão do Mal' realmente abala a sanidade de Simplício? Agora
que todos passam a declará-lo louco. Pois é a 'opinião pública que
declara a loucura alheia. Quem é sincero, quem é livre de
formalismos, é logo atacado e classificado como 'louco', pois o
normal é ser 'mera aparência', ser hipócrita.

A condição dos loucos: dignos de piedade e de temor. Os doidos
andam livremente pelas ruas – não eram recolhidos aos hospícios
(lembrar que a proposta de Simão Bacamarte, no sentido de
um recolhimento dos alineados numa casa de saúde, em pleno
início de século 19, causa estranheza na população. É a alegoria
de “O Alienista” de Machado de Assis.)

Os insetos se comparam aos políticos, o médico é um aproveitador
dos males alheios, tudo é cercado de malevolência. O que cria uma
espécie de indivíduo cínico numa narrativa sarcástica, tal qual
aquele narrador brutal e lírico de “Cantos de Maldoror” de
Lautréamont.

Na Parte II, aparece uma nova luneta, já que a outra o próprio
Simplício logo quebrou ao observar-se ao espelho e descobrir
a própria maldade. Agora, após novas magias do tal armênio,
tem o protagonista-nmarrador uma luneta mágica que permite
ver o Bem. Esta dualidade leva o narrador a novas questões
metafísicas.

Será a luneta mágica a criadora de ilusões? Os que parecem
'maus' serão, na verdade, 'bons'? Há mesmo uma 'relatividade'
do que seja 'bom' e do que seja 'mau'? (O que conduz às
reflexões de F. Nietzsche, em “Sobre a Genealogia da Moral
e “Além do Bem e do Mal”), ou o Mal e o Bem existem dentro
de cada um de nós (somos todos meio médico e meio monstro,
tal qual Dr. Jekyll & Mr. Hyde, de Stevenson?)

Após o despedaçamento da primeira luneta, os parentes de
Simplício acampam ao seu redor. O mano Américo afirma que
o moço se libertou de uma “ilusão perigosíssima” e insiste em
continuar 'a ver e a pensar' em lugar do irmão míope. Até a
tia Domingas se manifesta, beata e comovida, a dizer que “a
salvação da minha alma, e a doce tranqüilidade da minha vida
teriam tanto mais segurança, quanto mais completa e
irremediável fosse a minha miopia, que me livrara de
enormes pecados
.” (II)

Simplício, após uma semana de repouso, finalmente desce
até a rua. A memória do povo: passou-se uma semana e os
'veredictos' já mudaram. Volúvel e caprichosa cidade! o seu
juízo se modifica, e até muda completamente com o volver
de alguns dias, e o objeto das maldições pouco a pouco
se torna objeto de simpatias. (VI) Não temem mais o 'louco'.
São até indiferentes. E ele começa a se indagar o que é
pior: ser foco das atenções ou passar como se invisível
diante da opinião pública. (Tem gente que considera a
fama acima de tudo: 'falem mal, mas falem de mim”!)

(A visão do Bem)

A luneta mágica, com sua 'visão do Bem' somente encontra o
lado 'bom' de cada um, Até muda a opinião sobre a 'fria' prima
Anica. Anica é um anjo de inocência e simplicidade, e ao mesmo
tempo uma senhora de juízo reto e de exemplar virtude. O que
eu julgara nela gelo do coração era virginal recato, o que eu
tomara por cálculo material e egoísta era a reflexão e a
sabedoria instintiva de uma mulher-modelo; zelosa, sem ciúmes
rudes e ridículos, econômica sem vileza, amante sem paixão
em delício, serena, complacente, dedicada, livre do amor da
ostentação e do luxo, de costumes simples, estremecida pela
família paciente, suave, meiga, Anica é a mulher que reúne
todos os dotes para felicitar o homem que for seu esposo
. (II. V)

Também a Tia Domingas é boníssima. A tia Domingas era
a devoção, a piedade personalizada. Aos pobres negava
esmola
à nossa vista, e semeava benefícios às escondidas: era a
caridade do evangelho, o bem que fazia, só ela o sabia, e
quando rezava, mais vezes suas orações eram por seus
parentes e pelos estranhos, do que por si. No governo
da casa economizava para matar a fome à indigência,
e imaginava mil pretextos para ter mais que dar, e
encobrir o que dava.
(II. VI)

O irmão Américo é um sujeito honesto. Eu fora o mais vil
ingrato se desconhecesse o que devo ao mano Américo.
A visão do bem acaba de mostrar-mo tal qual ele é. A sua
prudência e sabedoria igualam à sua dedicação fraternal,
e aos escrúpulos de sua probidade.
(II. VI)

Assim, Simplício passa a observar tudo novamente. O que se
mostrava mau, agora se mostra bom. Ele vê somente o Bem
(assim como antes ele via apenas o Mal) E ao ver apenas o
Bem, o narrador se sente 'feliz'. Está agora iludido pelo
'supremo bem'. Se com a 'visão do Mal' até a beleza da
aurora tem um tom sombrio, agora, com a 'visão do Bem'
até um bordel (dito teatro, casa de diversões) mostra-se um
lugar de benefícios.

Que injustiça fazem ao Alcasar Lírico: vi nele o contrário do que me informavam! Vi nele o ponto de reunião de todas as classes da sociedade, o jubiloso recurso de entretimento para os homens pobres que não podem pagar outro menos barato, e para as mulheres que degradadas pelo vício são repelidas da boa sociedade; vi nele a mais eloqüente escola de moralidade pública pela exposição ampla e quase sem medida do comércio imoral e repugnante das criaturas desgraçadas que tem descido à última abjeção: melhor que as teorias e os conselhos de um pai austero, falava ali à mocidade o exemplo vivo dos perigos e das torpezas da devassidão. O Alcasar me pareceu enfim uma bela instituição filantrópica e filosófica, a Ética de Jó ensinada pelas antíteses, a ostentação da grandeza da virtude pela observação da baixeza do vicio.
Não pude compreender a razão por que o governo do Brasil ainda não concedeu subvenção ou loterias anuais para auxílio deste admirável teatro lírico francês!
(II. VII)
Ironias à parte, no 'teatro lírico' (o bordel) Simplício se apaixona
pela beleza e pela 'bondade' de uma jovem prostituta, Esmeralda,
que (segundo a 'visão do Bem') sofre com sua própria decadência.
Ela seria uma 'madalena': uma pecadora cheia de remorsos,
ainda sendo possível sua 'redenção'. “(...)despertando no meio
da perversão, Esmeralda teve remorsos, detestou sua vida, foi
mil vezes desgraçada; desejou amar e ser amada, como ama e
é amada a senhora honesta; era porém tarde: o mundo já tinha
marcado a sua fronte com o sinal negro da reprovação perpétua.
Então principiou para a mísera a vida do frenesi a que o desespero
preside."
(VII) E, subitamente, o narrador está diante de um 'dilema':
vai se envolver com a virtude (a prima Anica) ou com o vício
(a tal Esmeralda)?

Assim, se Simplício foi prejudicado pela 'visão do Mal', agora
será iludido pela Bondade de todas as pessoas. Ele se julgara
amando e sendo amado, será generoso pois todos são
generosos (empresta dinheiro e faz doações, sem esperar
retorno – e realmente, ninguém paga-lhe as dívidas), é gentil
pois todos são gentis (e não hesitam em ofendê-lo assim que
ele vira as costas) Aqui, é impossível não lembrar o Príncipe
Michkín, de “O Idiota” (1868), de F. Dostotiévski, que é incapaz
de se proteger da malícia alheia, simplesmente porque não
possui malícia em si-mesmo. É um ser ingênuo. (Tal qual o
'Ingênuo' do conto de Voltaire, que 'peca' pela sinceridade)
A 'visão do Bem' desvela, descortina, descama um outro
Nunes (aquele velhaco de antes): um homem zeloso, correto
pai de família, do qual Simplício abraça a amizade, e vem a
conhecer a filha Nicota, e obviamente vai acabar se
apaixonando (toda mulher agora é uma santa e uma deusa!)
A dúvida angustiante: qual das três mulheres divinais ele vai
desposar? Quem vai escolher: Anica, Esmeralda ou Nicota?
(Mas de repente, ele se sente atraído pela sedução de
outras 30 damas, e acha que todas estão também
apaixonadas por ele!)

Simplício não percebe que a 'visão do Bem' nada mais
é do que aquilo que ele QUER ver! Pois até a 'casa de
Correção' – a cadeia pública – é uma instituição perfeita!
Mas também vê os presos como injustiçados, começa a
nutrir pensamentos revolucionários, mas ao dobrar a
esquina e encontrar as autoridades – advogados, juízes –
julga que todos são justos, justíssimos! Como conciliar essa
contradição? Podem os presos serem injustiçados, se os
merítissimos são homens honrados?

A 'visão do Bem' é realmente mais uma ilusão ao mostrar
que tudo é BOM! Logo, o protagonista descobrirá que cada
lente até então nada mais que 'parcializou' a visão – criou
distorções e exageros – uma mostra tudo perverso, outra
um mundo perfeito. A lente ideal – a nova que o tal armênio
prometia – seria aquela capaz de equilibrar as duas visões,
compensar o Mal como Bem, e vice-versa, e mostrar assim
que todos são – AO MESMO TEMPO – 'bons' e 'maus',
médicos e monstros.

A visão do Bom Senso: nem Bem nem Mal. A filosofia de
Aristóteles: a sabedoria está no mediano. Também lembramos
os conselhos do pai de Robinson Crusoé, na obra de Daniel
Defoe, ao dizer que a infelicidade está nos extremos, ser rico
ou ser pobre, pois na 'classe média' é que está o lugar mais cômodo.
Um filosofia (e hábito) cômoda de viver, sem extremar
as visões, sem julgar pelo aparente, sem julgamentos
morais de terceiros, sem apedrejar antes de entender,
enfim, uma 'visão do bom senso', que , no entanto, não é
narrada! A visão do bom senso fica em segredo.

Não posso falar, não posso escrever, não posso dizer o que a visão do bom senso me está ensinando há um mês.
Quando o meu amigo Reis me desligar do juramento que fiz, escreverei o livro da- visão do Bom Senso.
Mas até lá... segredo.
(Epílogo, VI)

Jan/10