Espaço
em Sagarana de João Guimarães Rosa
Leonardo de Magalhaens
Fale/UFMG
A importância do espaço
nos contos do autor mineiro João Guimarães Rosa [1908-1967] se
evidencia pelas referencialidades contidas nos textos, com
ampla catalogação de acidentes geográficos, a saber, as serras, os
rios, os córregos, as várzeas, os campos. Contudo, tais referências
não se encaixam como panorama naturalista, mas antes como um cenário
para os dramas das personagens. Podem exceder-se como alegoria, como
simulacros, rumo a um caráter mais do que regional, antes
universal.
Em seus embates épicos
nos sertões, as personagens, sejam os humanos ou os animais, fazem
despertar dramas que podem se localizar em qualquer lugar – não
somente no sertão mineiro ou nordestino. Há um caráter de
universal – qualquer lugar – como cenário da epopeia dos
sujeitos com outros e consigo mesmos.
Assim há referencial e
simulacro ao mesmo tempo, pois não estamos diante de uma obra de
ficção fantástica ou mero produto de linguagem, antes um
entrelaçar de elementos do real, num realismo para além do real,
num transrealismo. Um realismo que não se prende ao
regionalismo, mas que, a partir deste, se expande para o
universalismo, das relações e embates humanos.
Em tal transrealismo,
ou realismo transcendental, o crítico literário, e pensador
católico-liberal Tristão de Ataíde (pseudônimo de Alceu Amoroso
Lima, 1893-1983) identifica a capacidade estilística de Guimarães
Rosa em integrar em sua obra o 'espírito telúrico' e o
'espírito oceânico', sendo o primeiro voltado ao solo, ao
regional, e o segundo voltado ao mundo, ao universal, a oscilar
entre terra e mar. Para ilustrar tais 'espíritos', Ataíde aponta
Alencar e Euclides da Cunha como voltado ao 'telúrico', e Machado de
Assis mais ao 'oceânico', como bem mostra o trecho citado em Brandão
(2013: 170),
À
primeira vista Guimarães Rosa pertence mais à família euclidiana
que à família machadiana. Na realidade, o que nele se encontra é
mesmo a integração dos dois espíritos, embora com aparente
predomínio da vertente alencarina ou telúrica. Isso porque a
paisagem e a palavra desempenham um papel muito importante em sua
expressão estética e tanto uma como outra em estreita ligação com
a realidade sertaneja. Mas nada é mais estranho à sua literatura do
que o regionalismo. Será sertanista mas não regionalista.
Assim, além do realismo
regionalista, além da catalogação descritivista, portanto, está a
obra de Guimarães Rosa, em sua capacidade de partir do referencial
para a fabulação, de reencantar com aspectos míticos, com dramas
universais o que ocorre localmente, nos campos gerais, imerso no
coloquialismo re-criado / remoldado pela linguagem.
A extensão dos espaços
do Sertão roseano tem uma ação sobre as personagens, que vivem
dependentes das condições de clima e recursos hídricos, ora em
seca ora em inundação, ora com fartura ora com miséria.
Diretamente ligadas ao meio ambiente natural, as personagens se
dedicam aos trabalhos básicos de subsistência, na agricultura e na
pecuária, ou no artesanato.
O espaço referencial é
limitado, está situado no mundo sertanejo do norte-nordeste de Minas
Gerais, e nordeste de Goiás, além de sul da Bahia. É um mundo já
povoado e catalogado, mas que serve como cenário para embates
universais. As temáticas do regionalismo estão todas aqui, mas com
um tratamento diverso. Se muitos autores já se destacaram com o
estilo regionalista, na condição de habitantes das cidades que
voltam os olhares para as agruras do sertanejo (vide O Quinze
de Rachel de Queiroz, ou Vidas Secas de Graciliano Ramos), o
autor Guimarães Rosa se aventurou pelas veredas e coletou para sua
literatura as vicissitudes do mundo sertanejo.
Não apenas catalogação
de cronista ou escrita acadêmica, mas um tom fabulístico, a dar voz
às personagens, aos seres e aos elementos. Assim como na literatura
fantástica temos os animais que pensam e falam, em voz humana, em
contos e Rosa é possível adentrar a perspectiva de um burrinho, ou
de alguns bois que observam – com olhares críticos! - o viver
humano. É no desejo de uma fábula transrealista,
além de qualquer Esopo ou La Fontaine, para ver o humano – e sua
condição - com outros olhos, a partir de um real / regional. Se os
animais pensam, ou falam, é com o propósito de re-encantar o mundo,
como nas narrativas míticas ou folclóricas, através de uma
fabulação. (Uma vez que o 'desencantamento do mundo', Entzauberung
der Welt, foi denunciado pelo sociólogo
alemão Max Weber (1864-1920))
Este re-encantamento do
mundo demonstra uma releitura das sagas e lendas, nas epopeias de
Ilíada e Odisseia, de Eneida e Edda, de
Beowulf e O Anel dos Nibelungos, de El Cid e
Kalevala, de Jerusalem Libertada e Orlando Furioso,
de Os Lusíadas e Paraíso Perdido, no sentido de
apresentar os embates dos humanos com os elementos da natureza e com
os outros homens, aliados e inimigos.
É no intuito de nova
saga, de sagarana, que os contos de Rosa se apresentam, ao
destacarem o épico na vida sertaneja, revista pelo estilo
realista-mítico. Afinal, o que todos os contos compartilham é o
espaço, o cenário regional-cósmico do sertão. (Atualmente, muito
da literatura vendável se dedica aos temas épicos e fantásticos
mas no sentido de entretenimento, não de aprofundamento
existencial.)
Assim entende-se que um
burrinho pedrês (no conto Burrinho Pedrês)
seja uma personagem central num drama onde as forças humanas
se defrontam com as forças da natureza, a necessidade de
subsistência de uma vida tradicional seja confrontada pelas águas
das inundações, no 'ano das grandes chuvas'. O drama se
desenrola ao redor do burrinho Sete-de-Ouros, que, aprisionado na
faina humana, acompanha a tropa pelo sertão, este espaço aqui
delimitado, “no vale do Rio das Velhas, no centro de Minas
Gerais.” (p. 18), e logo expandido,
E
comprimiam-se os flancos dos mestiços de todas as meias-raças
plebeias dos campos-gerais, do Urucuia, dos tombadores do Rio Verde,
das reservas baianas, das pradarias de Goiás, das estepes do
Jequitinhonha, dos pastos soltos do sertão sem fim. (p. 19)
O drama humano visto
pelos olhos de um burrinho, que é arrastado a compartilhar as
aventuras e desventuras, na miséria da vida sertaneja, no ambiente
agreste, entre as secas e as enchentes. Tanto humanos quanto animais
reagem ao meio ambiente, aos espaço de extremos, sem cordialidade,
mas asperezas. A vida é dura, “o sertão é perigoso”,
com suas boiadas e tropeiros, com seus jagunços e cavaleiros, com
seus coronéis e posseiros, em arena de embates.
E
era bem o regolfo da enchente, que tomava conta do plaino, até onde
podia alcançar. Os cavalos pisavam, tacteantes. Pata e peito, passo
e passo, contra maior altura davam, da correnteza, em que vogava um
murmúrio. A inundação. Mil torneiras tinha a Fome, o riacho ralo
de ontem, que da manhã à noite muita água ajuntara, subindo e se
abrindo ao mais. (p. 75)
A travessia e superação
são tematizadas no longo conto A Hora e Vez de Augusto Matraga,
onde o espaço é cenário para o sofrimento e para a redenção do
protagonista Nhô Augusto, um impulsivo homem bom de briga que colhe
as tempestades depois de semear ventos. Ele sofre em seu meio, é
fruto de sua secura e aridez, está envolto na casca-grossa da
insensibilidade, até que é tarde demais.
As marcações de espaço
são evidentes, principalmente na triangulação entre Pindaíbas,
Tombador e Arraial do Rala-Côco, numa delimitação dos passos do
protagonista no sertão-mundo, desde o adro da igreja até as
fazendas no rumo das serras.
Caminharam
para casa. Mas para a casa do Beco do Sem-Ceroula, onde só há três
prédios - cada um deles com gramofone tocando, de cornetão à
janela - e onde gente séria entra mas não passa.
Nisso,
porém, transpunham o adro, e Nhô Augusto parou, tirando o chapéu e
fazendo o em-nome-do-padre, para saudar a porta da igreja. Mas o
lugar estava bem iluminado, com lanterninhas e muita luz de azeite,
pendentes dos arcos de bambu. (p. 344)
Na
fazenda - no Saco-da-Embira, nas Pindaíbas, ou no retiro do Morro
Azul - ele tinha outros prazeres, outras mulheres, o jogo do truque e
as caçadas. (p. 346)
Ao se considerar o
espaço, há trechos em que a marcação é mais evidente, mais
longa, quase cartográfica, quase um mapa a assinalar os passos da
travessia/superação do protagonista, quase assassinado, mas que se
recupera, a espera de sua 'hora e vez', enquanto adentra nos nichos
do sertão-mundo, com seus acidentes geográficos enquanto cenário
para as transposições/transfigurações da linguagem,
Foram
norte a fora, na derrota dos criminosos fugidos, dormindo de dia e
viajando de noite, como cativos amocambados, de quilombo a quilombo.
para além do Bacupari, do Boqueirão, da Broa, da Vaca e da Vacaria,
do peixe-Bravo, dos Tachos, do Tamanduá, da Serra-Fria, e de todos
os muitos arraiais jazentes na reta das léguas, ao pé dos verdes
morros e dos morros de cristais brilhantes, entre as varjarias e os
cordões-de-mato. E deixavam de lado moendas e fazendas, e as
estradas com cancelas , e roçarias e sítios de monjolos, e os
currais do Fonseca, e a pedra quadrada dos irmãos Trancoso; e mesmo
as grandes casas velhas, sem gente mais morando, vazias como os seus
currais. E dormiam nas brenhas, ou sob as árvores de sombra das
caatingas, ou em ranchos de que todos são donos, à beira das lagoas
com patos e das lagoas cobertas de mato. Atravessaram o Rio das Rãs
e o Rio do Sapo. E vieram, por picadas penhascosas e sendas de
pedregulho, contra as serras azuis e as serras amarelas, sempre.
depois, por baixadas, com outeiros, terras mansas. Em paragens
ripuárias, mas evitando a linha dos vaus, sob o voo das garças, -
os camilhões por onde as boiadas vem, beirando os rios. (p. 358)
Em terreno tão
recortado, acidentado, desorientado, a linguagem se delicia em
comparar homem e natureza, homem e animal, animal e terreno, numa
amálgama de natureza 'naturalista' e natureza' sujeito', onde o
'estar-no-sertão' é estar condicionado ao estado de carência do
viver com pouco na abundância dos espaços. A própria
caracterização de personagem se dá pela abrangência de sua fama
no espaço, na vastidão do sertão, sendo o chefe-de-jagunços
Joãozinho Bem-Bem um caboclo dos mais 'famigerados' (tema de outro
conto singular de Rosa) por todas as bandas do mundo sertanejo,
...
- era o homem mais afamado dos dois sertões do rio: célebre do
Jequitinhonha à Serra das Araras, da beira do Jequitaí à barra do
Verde Grande, do rio Gavião até nos Montes Claros, de Carinhanha
até Paracatu; ... (p. 365)
Assim, desde a viagem, a
catalogação, o fichamento de cultura-pessoas-fauna-flora, o espaço
enquanto cenário, a obra de Guimarães Rosa vem num crescendo desde
um referencial de realismo-regionalismo até um construto de
linguagem original e ímpar, que transcende (portanto, realismo
transcendental, ou transrealismo) do regional para o
universal.
2014
Referências
ATAÍDE, Tristão de. O
transrealismo de G. R. In: COUTINHO, A. C. Guimarães Rosa.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.
BRANDÃO, Luis Alberto.
Teorias do Espaço Literário. Coleção Estudos. São Paulo:
Perspectiva, 2013.