segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

sobre Ábaco - do poeta e arquiteto João Diniz




sobre “Ábaco” (BH, 2011)
do poeta e arquiteto João Diniz


Pilares lúdicos sustentam a arquitetura das palavras


Alguns poetas escrevem para relatar dramas, outros exploram modos de expressão, ainda outros escrevem para mudar o mundo, tecem epopeias. A poesia ora é vista como algo em si mesma, ora é útil como um veículo de esclarecimento, denúncia ou propaganda. A mensagem, assim, pode ser algo do poema ou o próprio poema. Os versos falam sobre um mundo lá fora, longe da página, ou lembram que são versos bailantes diante do leitor. Ou o mundo pode ser esquecido e, em seguida, substituído por outro mundo arquitetado em palavras.

Quando a Poesia não diz algo, ela diz sobre os próprios limites, a impossibilidade de dizer algo além do modo de dizer sobre o fazer poesia. A metalinguagem toma conta, os metapoemas proliferam, e nada é dito. Não importa o preço do arroz ou do feijão ou do café, importa as assonâncias. Para que criticar o governo se temos fartas metáforas e paranomásias? Então não se tem um discurso, pois não há exatamente uma mensagem, mas um jogo.

Percebem-se algumas figuras metafóricas e metonímicas, a mostrarem que o poeta conhece figuras de linguagem, que tem bom faro para peneirar vocábulos e criar dissonâncias, enfim, tem um ouvido bom para melodias. Pode usar todo o equipamento para expressar uma dor existencial ou o aumento do IPVA, mas preferirá lembrar que estamos diante de um poema. Destacam-se os movimentos lúdicos com sons e sentidos, com descrições meio cubistas, com sinestesias meio surrealistas, com muita paranomásia, com uso e abuso de trocadilhos, em sonoras conjunções e semânticas contradições.


Assim adentramos a construção de Ábaco, do poeta e arquiteto João Diniz, onde se destaca uma intricada exploração lúdico-sonora das palavras. Tal importância da sonoridade é evidente. Vide a banda PTERODATA que musicou, juntamente com o autor, algumas peças poéticas de Ábaco. Encontramos um mosaico de possibilidades de leitura, tal o lance de dados de Mallarmé, sempre jogados do sonoro para o semântico, do sentido para a estrutura, mas sem um discurso planejado, sem uma voz que totalize, um sujeito poético, um eu lírico que assine embaixo.

Sentimentos são abordados, visões de mundo, idem. O poeta sabe onde está e em que contexto, conhece suas técnicas e emoções. Mas a expressão importa mais do que o que se diz, a mensagem, o que se comunica, está na estratificação de versos em estrofes, em contrastes com a alvura da página. O que diferencia é como , o modo, de ocupa a folha em branco. Que recursos o poeta utiliza, de que maneira elaborada tecerá seu lirismo-estrutural. Pois os poemas, cada um deles, tem uma estrutura, um fundamento que sustenta as alas dos versos.

De modo que temos temos poemas constituídos pela argamassa da sonoridade, daí os trocadilhos, exemplos de paranomásia, palavra a atrair palavras por aparência ortográfica, ou sonora, não por sinonímia ou antonímia. O sentido não é a argamassa principal, mas uma sutil fiação dentro das paredes. Assim encontramos pares de vocábulos, entre os versos,tais como: afoga / afaga, reta / rota, fome / falso, belo / breve, vida / visto, catacrese / catequese, risco / rasgo, etc

Ou poemas que selecionam palavras por contradições, por antonímias (logo valorizando o sentido) em imagens opostas que se confrontam, se desdizem, se entregam a uma escolha (de cartas marcadas?), aqui eis alguns exemplos, futuro / aquém, sonho / despertar , medo / coragem, velho / infância, caminho / descanso, amor / ódio, calma / movimento, assim vai.

Também, por que não?, os poemas que exploram rimas, o que constitui a maioria, assim como encontramos rimas entre os modernistas (que, logo de início, desprezavam tal recurso nos parnasianos e simbolistas...), em diferentes combinações, comuns, raras, preciosas, tonais, p.ex., como se percebe nos pares: água / mágoa, Rio / frio, contido / sentido , idioma / sintoma, paralela / vela , despertar / explicar, etc Recurso bem explícito no poema opção (pp. 56-58) com o isto ou aquilo, em contraposições, a explorar rimas (-al, -ção, -ade, -eto, -ito, -ante, -ia, -esa, - eza, -ora, -édio, -inho, -ança, -ário, -or, -ino), “chegando à sua mão / a melhor opção”.

Tão consciente de seu trabalho de burilamento e acabamento, que o poeta arrisca se explicar, se justificar. Estamos em presença dos metapoemas, sim, aqueles de descarada metalinguagem, desnudando as vigas atrás das paredes, os filamentos nas luminárias. Assim em poesia (p. 12), onde o poeta questiona se alguém além dele entende do poético ali, “saberão da poesia?”, pois é do que se trata, uma expressão que exige atenção, ciente de que para poesia existir é preciso efeito – sobre quem lê, visto que “uma força: a poesia”, e que espera-se um esforço por parte da recepção para comungar numa interpretação. Mas se não houver? Então a poesia tem valor em si? Parece que sim, com o enfático: “mais vale a poesia”.

Mais desvelamentos encontramos no metapoema-mor truque (p. 16-18), onde o poeta exibe as ferramentas, e resolve falar da técnica, do construto, das vigas que sustentam o edifício,

tem segredo o verso?
Catacrese assonâncias
catequese dissonância

ferramentas que servem para quê? Aliás, mais prédio para quê? É algo comunicado além da própria comunicação? Não parece que algo NÃO é dito? Falta dizer exatamente o quê? O que mais precisa ser dito?

cabe notar agora
por mais que se falou
o principal ficou fora

pois algo deve ser dito! Ou o poeta fica a lembrar que é um poeta porque escreve um poema, e um poema é um poema pois é escrito por um poeta! Entramos no círculo vicioso do não-discurso (a menos que um não-discurso seja ainda um discurso, assim como uma não-escolha é a um tipo de escolha...),

o que faz um poeta?
Silêncio ou discurso
vida vista ou secreta

pois deve haver um motivo para a escrita, mas qual será? Do que se trata? De auto-afirmação? De desejo de compartilhar desassossegos? De encontrar ouvidos atentos a uma fala lírica? Consigo mesmo o poeta se posiciona em comigo (pp. 106-107),

escrevo porque não solo
existo porque não calo
protesto porque não vale
desejo porque não farto


É escrita enquanto rearranjo, mais do que expressão. Mais jogo do que discurso, longe está a poesia engajada. O poeta olha para si mesmo e a página em branco, é um ato amoroso de entrega, depois que os leitores – e críticos – se esforcem para entender (ou não). O metapoema eternidade (p. 122) explicita o “silêncio / folha em branco (…) à espera do / volume e traço (…) depois virão / críticos de plantão”, demonstra o mal-estar com a Recepção.

Enquanto 'crítico de plantão' lembro ao autor o importante papel alfinetatório da Crítica, que vem criar a polêmica e a discussão. Ou o poeta preferiria a apatia, a indiferença, o silêncio? Sem a Crítica, estaríamos ainda hoje no estilo barroco... Sem uma discussão sobre os limites da poesia estaríamos ainda no parnasianismo... Assim, sem dúvida, que o autor espera a Crítica – desde que não seja pedante. Entenda-se: desde que não tente ensinar o padre-nosso ao sacerdote.



Mas não apenas de metapoemas se ergue um arranha-céus, também temos os descritivos, que tentam sugerir, para que o leitor complete as entrelinhas e adentre as imagéticas. Assim, clarão (p. 44) ou casa (p. 52) ou sertão (p. 70) ou aquática (p. 71), que esperam um envolvimento da Recepção, pronta para colher seduções e ousar uma parceria com o texto. Os versos aqui são um traçado que sugerem um mapa – mas que desenha mesmo é o turista-leitor.

Ou esboços de possíveis enredos, assim em ela (p. 40) onde uma mulher sobrevive entre vicissitudes, entre a decadência e o sexo livre, até se encontrar no mundo. Ou em Sampa (p.77) recorte de uma experiência na metrópole da América do Sul, a multicultural São Paulo, espaço de encontros e desencontros, subculturas e solidão,


metro metrópole

polis política polida em pó
poluída, possuída portanto

Sampa atenta tonta

afago tráfego desaforo e fossa
afogada em finança fisco e fome


Ainda temos tentativas nestes poemas que falam de algo além da poesia. Tamanha é a varanda avantajada dos metapoemas que ensombrecem o restante de Ábaco, onde poderíamos encontrar poemas sobre o nosso mundo – não o mundo de papel da metalinguagem. Sampa é uma boa amostra de que o olhar do poeta sabe captar algo além do papel.

Outras cidades aparecem nas memórias cosmopolitas do poeta, assim viajamos por Rio de Janeiro, Varsóvia e Lisboa, mas é sobretudo enquanto construtos da memórias – e não cidades em concreto e asfalto – que tais metrópoles se destacam. Cidade, populações, monumentos é tudo misturado, amalgamado no texto que floresce das memórias (poema na p. 78), que reinventam as imagens,

memórias e invenções
acordam da urbana insônia
nos sonhos gerais
direções são tantas
revelações às pampas
na solidão amazônica

humanos de bronze
imagem e lembrança
numa saudade da vida
escalada pela criança
numa nova estátua
na inexistente tumba
de um ex fogo fátuo

o lugar de ligar
pode nunca parar
pobre curso sem cor
reinventa a margem
desatando a florestal dor
inverso da alva água
mágoa sem vertigem


É no lirismo do memorialista que encontramos o sujeito poético que pouco aparece nos metapoemas – que podem ser feitos até por programação eletrônica, convenhamos. Nos poemas sobre pessoas e viagens, podemos encontrar o poeta com suas considerações e emoções, além dos jogos de palavra. Não que seja a intenção autoral que faça a diferença, mas há uma voz autoral. Muitos poemas não tem voz, apenas arranjos de palavras.

Então, começamos a ver o poeta além do homo ludens, o homem por trás das letras, enquanto voz discursiva a indagar, com humor, se algo deve ser sério. A poética é séria? O poeta é sério? A escrita é séria? Em que medida somos sérios? Nós que não morremos por devoções nem ideologias, nós que só nos matamos por opção sexual e futebolística. É sinal de sabedoria apenas contemplar o mundo e dar boas risadas? De repente, a seriedade não apenas uma rima de simplicidade,


e o que seria?
Se tudo não fosse tão sério
se não houvesse mistério
nesse avesso do sorrir

amor é humor quando começa
cegas cócegas em sócio ego
chamego no ódio seco
carinho por um soco oco

apagando as rugas de um foco
a piada é a melhor espada

na linha da corda bamba
anda o sábio em ciranda
o tédio esse remédio engana
frágil alegria numa mão fria


É preciso que o poeta sobreviva ao jogo de palavras – não negamos que é sensacional, que produz efeito – e nos deixe mais marcas da voz memorialista, do ser em expressividades, com emoções que não sejam ocultadas por alguma rima preciosa. Assim como não nos interessa apenas o sentimento do autor, também pouco interessa arranjos de palavras sem um eu lírico. O instrumento frio e calculista do ábaco, com suas contas precisas, espera ser humanizado.

No poema assim (pp. 98-100), o eu lírico se esparrama entre lembranças e sugestões, a partir de fragmentos do vivido e restos do imaginado, tecendo referências aos seres da natureza e da cultura, os mundos das estrelas e das mitologias, das cenas bíblicas, tudo sem abandonar as explorações lúdicas com as palavras, marca estilística de um arquiteto de vocábulos, a brincar com significantes e significados,


lembrei-me do louva-deus
na ordem do vira-lata
à luz do assum-preto
só mirei e bem te vi

e no forno da fruta pão
busquei a dama da noite
mas achei a rosa louca
e rodamos num gira sol

tal mescla de ambiguidades e nonsense – há um forno para a fruta pão? Como girar num girassol ? - deixa antever um poeta bem-humorado – como já mostraram os trocadilhos ao longo dos poemas – que só se oculta por zelos lúdicos. Aqui ele ousa um lirismo solto, com toques metafísicos, fala de milagre, de destino, de identificação com o “mineral vegetal animal”,

cada ser tem o seu vulto
num líquido de água e sal
estrela do mar e do céu
seu destino está oculto

faltou à última ceia
crendo o milagre dos peixes
certeza do ser humano
lindo canto da sereia

seria ideal manter-se assim
mineral vegetal animal


É necessário aqui encerrar. O objetivo deste breve ensaio não é comentar poema por poema, nem resumir panoramicamente, nem esgotar a leitura de Ábaco, mas apontar o que chama mais a atenção, o que desperta o faro crítico de quem lê poemas todos os dias, num mundo de milhares de publicações, em papel e em formato digital. Uma miríade de textos, poemas, ensaios exigem nossa atenção, dia após dia, hora após hora, e somente com muita disciplina conseguimos adentrar um universo textual de cada vez. O que nos prende nas contas do ábaco são os desafios de tal arte de rearranjo linguístico, em técnicas de enumeração e sumarização assim estruturadas. Esperamos que os experimentos lúdicos-verbais do autor João Diniz possam continuar nos desafiando em novas arquiteturas de palavras. Mas que, além de palavras, tenhamos sua voz singular e humana.


Jan/13

Leonardo de Magalhaens





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