Sobre
a obra “Casa das
Máquinas”
(2011)
de
Alexandre Guarnieri
Poética
enquanto construto mecanicamente antilírico
Muito
já discutimos sobre a poesia enquanto inspiração ou produção,
enquanto arte espontânea ou transpiração ('luta com as
palavras'), se Arte é algo que desabafamos ou algo que
construímos. Os surrealistas preferem uma psicografia (a poesia
brota do inconsciente?) enquanto os arautos da Oulipo chegavam
aos teoremas matemáticos da análise combinatória para planejarem a
Escrita.
De
manifestos em manifestos os espontâneos e os matemáticos defendiam
suas visões de Arte, uns esperando a inspiração enquanto outros se
sentavam em suas mesas de planejamento, devotados aos cálculos e às
regras. Um espera enquanto o outro rabisca. Um medita e o outro
rabisca e apaga e rabisca. E ambos se fecham em mundos estanques. A
poesia não é espera nem é teorema, é amálgama de ambas,
sendo um jorro e sendo um construto.
Em
ensaio anterior cuidamos da leitura da obra surrealista “Outros
Silêncios”, do poeta José Geraldo Neres, onde podemos
encontrar uma busca do espontaneísmo, da livre associação de
ideias, da escrita (se possível) automática. Há todo um extravasar
do inconsciente em imagens que são sem sentido ao mecanismo da
razão. Mas há uma escolha de palavras, uma busca de lirismo, que
não é fruto apenas do espontâneo, mas de um construir.
Do
outro lado, numa espécie de contraponto, temos aqui em mãos a
interessante obra do autor Alexandre Guarnieri. Desde a capa algo
inquietante se anuncia, uma cena de 'Metropolis' [1927], o
filme expressionista do alemão Fritz Lang (1890-1976), onde homens e
máquinas vivem num mundo de dependência, dominação e conflito.
Máquinas! Pois adentremos a habitação dos seres mecanizados!
“Casa
das Máquinas” é
um livro planejado, um livro matematicamente engenhado.
Tem uma
inspiração, uma intertextualidade, certamente, mas é um construto
manufaturado, a exibir uma poesia
projetada peça por peça, palavra por palavra, uma
poética
engenhosa e áspera ao estilo de João Cabral do Melo Neto, célebre
'engenheiro' da arte poética, com seu ritmo marcado, além
da sua
influência da voz popular, com cada poema sendo construído com
planejada arquitetura, “Para
mim a poesia é uma construção, como uma casa. Isso eu aprendi com
Le Corbusier.”
Mais
do que planejamento! Há um campo semântico, um uso lexical que
provoca estranhamento. A
mesma estranheza que causou a poesia de Augusto dos Anjos, com o
conteúdo semântico da área científica, anatômica, bioquímica,
metafísica, ou seja, todo um vocabulário não exatamente lírico.
Em “Casa
das Máquinas”
as palavras foram cuidadosamente eleitas, selecionadas, a
apresentarem
todo um campo semântico com referência às peças de máquinas,
ferramentas, petroquímica, tecnologia, automação, automobilística,
construção civil, processos metalúrgicos, etc
Mecanismo,
engrenagem, maquinaria, motor, mecanismo, conexão, válvula,
ferramenta, desgaste, reatores, cilindros, tubos, rebites, pressão,
peças, encaixes, bobinas, dínamos, relógios, lubrificantes,
fábrica, calibres, turbina,
matéria,
potência, pistões, óleo, trabalho, cálculos, sucatas, caldeira,
matéria-prima, lâminas, pilhas, serras, graxa, cifras, ácidos,
pedra, pedra bruta, pilares, lixo, refugo, esgoto, concreto, rotina,
greve, burocracia, autômato,
guerra, etc, em
suma, eis uma amostra do 'glossário'.
Não é, certamente, o que acostumamos
a considerar
como fenômeno
'lírico' ?
Assim
ler “Casa
das Máquinas”
é folhear um manual de mecânica, engenharia, bioquímica,
eletrônica, basta ver o glossário destas áreas prática, mas é
como se as máquinas (se assim pudessem!) assim fariam poesia!
Lirismo com graxa!
Um
ritmo marcado mesmo no poema em prosa, ou uma prosa que é poética
mesmo que anti-lírica, pois conserva uma seleta de verbetes, um
esmero na construção verbal. A terminologia do poema, digamos, é
friamente calculada, projetada mesmo. Como confessa o autor, trata-se
de “uma
gramática das máquinas, caixa de palavras cuja engenharia concreta
fixe alguma sintaxe”,
o
funcionamento central desta escrita
guiada
desde engrenagens gerais, do com-
plexo
centro decisório (no miolo, o código)
aos
simples acessórios do chassi (da capa
dura
às páginas d'alguma gramatura); clara
aqui,
uma gramática das máquinas, caixa
de
palavras cuja engenharia concreta fixe al-
guma
sintaxe, ou outra, esta reclusa, oculta sob
a
tipografia física destes poemas rosqueados
[...]
[p.
13, interruptor ]
Reencontramos
então a poesia
arte-combinatória, com
jogo de
palavras, aliterações,
mistura de falsos cognatos, de
um concretista
Haroldo de Campos (basta ver a obra “Galáxia”,
reevocada em
epígrafe aqui),
todo
livro é um livro de ensaio de ensaios do livro por isso o
fim-
comêço começa e fina recomeça e refina e se afina o fim no funil do
comêço afunila o comêço no fuzil do fim no fim do fim recomeça o
recomêço refina o refino do fum e onde fina começa e se apressa e
regressa e retece há milumaestórias na mínima unha de estória por
isso não conto por isso não canto por isso a nãoestória me desconta
ou me descanta o avesso da estória que pode ser escória que pode
ser cárie que pode ser estória tudo depende da hora tudo depende
comêço começa e fina recomeça e refina e se afina o fim no funil do
comêço afunila o comêço no fuzil do fim no fim do fim recomeça o
recomêço refina o refino do fum e onde fina começa e se apressa e
regressa e retece há milumaestórias na mínima unha de estória por
isso não conto por isso não canto por isso a nãoestória me desconta
ou me descanta o avesso da estória que pode ser escória que pode
ser cárie que pode ser estória tudo depende da hora tudo depende
onde
palavra atraí palavra num jogo verbal que inspirou também o poeta
Luís Eustáquio Soares, em seu “Cor Vadia” (2002),
"
e futuro, o fruturo e monturo e fratura que atura e que atua como
sempre imperfeito, sempre rarefeito, sempre desfeito, sempre refeito
de feitos e de eitos dos fetos das netas dos netos de seus ecos ecos
...”
e
"(no
barulho calcante calcando de meus pés a pele do rosto do desgosto do
gosto / na falha que olha na folha do dente da tarde, que arde ao
arder à pressão à pressão / à pressão, alta, do peso do peso do
peso dos pés) / à sedução do não".
Onde
fica evidente o anseio de elencar e deslocar palavras, em outras (e
novas) redes de significação (que sentido há, é outra questão?)
numa fúria linguística, numa iconoclastia da linguagem, a lembrar a
poesia frenética
de “Ode
Triunfal”
de Álvaro de Campos-Fernando Pessoa, “À
dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica / Tenho
febre e escrevo. / Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza
disto, / Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos. //
Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno! / Forte espasmo
retido dos maquinismos em fúria!”
Intertextualmente,
lembramos de
outra máquina, enquanto metáfora do mundo-enquanto-mecanismo, bem
ao estilo do materialismo mecanicista, aquela
'Máquina do
Mundo'
presente nas
obras poéticas de Luís
de Camões e
Carlos Drummond de Andrade,
“Vês
aqui a grande máquina do mundo,
Etérea e elemental, que fabricada
Assim foi do Saber alto e profundo,
Que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
Globo e sua superfície tão limada,
É Deus: mas o que é Deus ninguém o entende,
Que a tanto o engenho humano não se estende.”
Etérea e elemental, que fabricada
Assim foi do Saber alto e profundo,
Que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
Globo e sua superfície tão limada,
É Deus: mas o que é Deus ninguém o entende,
Que a tanto o engenho humano não se estende.”
(Lusíadas,
Canto X, estrofe 80)
e
“a
máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.
Abriu-se
majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável
pelas
pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar”
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar”
(CDA,
“Máquina do Mundo”)
Mais
do que o mundo-máquina,
temos o ser
humano enquanto máquina, homem-mecanismo,
assim podemos
voltar ao pensamento do francês De La Mettrie, no qual o
homem-máquina (L’Homme-Machine)
ocupa um lugar central,
“Cada
indivíduo desempenha seu papel na vida que foi determinado pelos
mecanismos propulsores da máquina (capacitada de raciocínio), que
não foi construída pelo próprio indivíduo”,
afirmou La Mettrie.
Para
evidenciar o mecanismo, seja do Mundo seja do Humano, a poética se
estrutura num série de técnicas, no domínio
mesmo da techné, num quase organograma de intervenções,
ponto por ponto, como pilares que erguem um edifício. Seja em ritmo
seja em disposição de palavras (toda a diagramação do livro é
planejada, propícia a uma certa recepção do texto), ali se
estrutura um tipo de produção entre o prosaico e o poético (do
tipo anti-lírico).
Encontramos
um ritmo marcado, ou quase uma métrica rítmica, variando
entre 10 a 12 sílabas, perceptíveis mesmo na 'prosa poética'.
Podemos ler “uma máquina datilográfica” [p. 71] com um
certo ritmo, assim “algo neogutenberg, relíquia de uma era:
/ non-eletric black deck, / olympia repleta / de
teclas, de um écran madre-pérola / o escritor a opera, o teclado /
um leque de letras da rara nave / ….” como a separar com [/]
os 'versos', as unidades de 10 a 12 sílabas, segmentando o texto em
prosa numa leitura ritmada. É possível.
Em
“c4s4 d4s má9uin4s” [p. 75] podemos segmentar um trecho
assim, “as hélices do exaustor contra a asfixia: / suas aletas de
centrifugação / aceleram o tráfego do gás, antes da estagnação;
/ o ruido gratuito denuncia a graxa / escassa: caixa-clássica,
lacrada; a carapaça aparafusada / ...” e outro trecho [na p. 77]
pode ser segmentado em 'versos' de 8 sílabas: “maior que a
anterior, pujante , / é essa máquina de usina, / quase sozinha
entre o alarido / descontrolado das buzinas / ...”
E
ainda outro trecho, em “neon : do fabrico ao uso” [p. 87]
onde podemos ler de modo segmentado em versos de 10 ou 11 sílabas,
no que aparentemente é um texto em prosa, assim “quem poderia
supor a estranheza / de um gás aceso, que, para exercer / seu
fascínio, e revelar o mais concêntrico / dos segredos, houve quem
conseguisse / confiná-lo à vácuo, em estreitas / serpentinas de
vidro fino, só / obtidas de um sopro controlado sobre / um fogaréu
típico de maçarico, / ...”
E
assim em outros trechos onde a prosa se pode estruturar ritmicamente,
com palavras escolhidas, com pausas (ainda mais com o uso de
parênteses) onde é possível trabalhar friamente sobre a fronteira
entre prosa e poesia.
Do
ritmo passemos ao uso das palavras, o glossário, a seleção
que o autor dentro de um dicionário. Por exemplo, o uso de
proparoxítonas, tanto pela sonoridade, quanto pelo emprego enquanto
'jargão' , ou até pelo aspecto esdrúxulo do verbete, são
exemplos, algumas: rígidas / líquido ; válvulas / implícitas ;
invólucros / lúbricos ; cáustico / sulfúrico; crítico / pânico
; pêndulo / autômato ; dínamo / mínimo ; telúrico / hermético
; esôfago ; módulo / lógico , dentre outras.
A
sonoridade é importante, daí a escolha das rimas – não ao estilo
parnasiano, claro – mas uso de rimas internas (fato /
aparato ; detido / nascido) além de rimas assonantes (aquelas
marcadas na última vogal tônica, tão apreciadas e manejadas por
João Cabral), p.ex., algumas: encapsula / desenvoltura / carnadura ;
bocas / brocas ; fendas / frestas / gretas / brechas ; dióxido /
tóxico ; dentre outras.
Existem
expressões inteiras que exploram a sonoridade, que se estruturam não
só pelo sentido, mas pela 'aproximidade' dos verbetes, tais como :
“o raro halo da harpa” ; “neurônio anônimo” ;
“válvulas ovulam” ; “engate engasga” ;
“enxertos de extrato exato”, dentre outras, pois em muitos
trechos as palavras que se aproximam por sonoridade ou visualmente,
como são exemplo, as seguintes:
fatal
/ falta / causa ; arriscado / fatigado ; engate / engasta / desgastam
; encaixes / caixa / desencaixam ; desencaixam / desengatam /
desastre ; tranco / trabalho / tanque / turbina / tambores ; eixo /
exigência / exceção / mexendo ; quatro / arranque / tanque ;
empuxo / luxo; anti-horário / celibatário ; barulhário / operário;
pressão / impressa / aço / couraças ; graxa / caixa ; modelo /
molde ; globo / glóbulo ;
Toda
esta techné está aí para passar a mensagem – a própria
poesia, não um panfleto – onde mundo-máquina e homem-máquina
estão denunciados além do mecanicismo, mas num contexto de
desumanização. É o mundo humano sofrendo uma erosão
desumanizadora. O trabalho que deve dignificar o homem, que deve
humanizá-lo, é mais um a foram de suplício, de mal-estar, onde a
fábrica é tortura,
nem
sempre é triste mas trinca naquela liga
entre
o aço mais elástico e o arrasto do ferro
incrustado
de ferrugem rubra, engrenagem por
engrenagem,
até o trêmulo epicentro dessa
gangrena
fabril. Nem sempre se repetem, nas
forjas,
tantas outras dessas órbitas ruidosas,
[p.
99, Música
de Trabalho]
Há
um lirismo áspero , uma ironia corrosiva, nos poemas mais
prosaicos, mesmo no mundo mais desumanizado, mais metalizado, num
ferro-velho de sensibilidades,
[…]
das
pétalas de alumínio, que laminava com pre-
cárias
ferramentas, adaptadas de garfos e fa-
cas,
vinham vivos mosaicos coloridos, lindos:
fragmentos
dos rótulos de refrigerante, (massa de
tomate)
querosene, criolina e azeite virgem.
[p.
127, Jardins]
o
anti-lirismo denuncia que a poluição está presente no mundo
moderno (ou pós-moderno?) onde ar, solo, águas, células, pulmões,
tudo está se envenenando, o homem-máquina está se enferrujando,
num mundo que se desertifica, num rio que agoniza em sedimentos,
[…]
mas aqui quase todo rio
corre
enjaulado, são artérias de água sufocada nos
lentos
jorros entre esgotos de tubulações, que de
mal
anexadas, transbordam cancro pestilento, pus,
enxofre,
último lodo sulfuroso manchando o asfalto
craqueado
pela carga ingrata do tráfego rodoviário.
[p.
147, guerra civil (zona norte)]
e
alerta para a gradativa, cancerígena, mórbida sujeira das cidades,
das metrópoles-tentaculares, sitiadas num acúmulo de dejetos que
nunca serão reciclados, nunca serão desintegrados, mas constituirão
as colinas do futuro, numa paisagem de decomposição,
[…]
labirintos
de detrito e lixo; a carcaça
da
cidade, às claras, desentranha-se da
rígida
epiderme de concreto e pedra,
revela
as espinhas carcomidas, o esgoto
à
mostra, maresia decompondo tudo, à
putrefação
avançada, jaz o cadáver adiado
da
cidade – metrópole distópica; todo o
resto
é “ilusão de zona sul”, é cegueira
social
maquilando severamente a carestia:
[…]
[p.
149, guerra civil (zona sul)]
Sofremos
pois, dentro do mundo-máquina (ou mundo das máquinas?) há o
homem-máquina – nós – na condição do corpóreo, de ter corpo,
melhor: o corpo humano enquanto mecanismo, o homem-máquina,
L’Homme-Machine , segundo teorizou La Mettrie, conjunto de
vísceras-órgãos-membros que podem ser vistos como
válvulas-pistões-ferramentas,
[…]
o
que mostra esse monstro,
ogro,
invólucro, é um evento
pregresso,
esperado sem
mistério,
ter corpo é habi-
tar
o futuro cadáver de si
próprio,
ignóbil, sólida ne-
crose
avançando sobre o
óbvio,
aviso prévio, carne e
ossada
(nem sempre velhos)
desse
espécime de cemitério.
[p.
165, caixa-preta]
Estamos
apenas no começo da leitura / releitura de “Casa das Máquinas”
- pois não se trata de um livro facilmente digerível, ou esgotável,
mas antes, requer atenção constante, tamanha a inquietação
matematicamente provocada. Este ensaio – sucinto e direto –
é apenas um prólogo. Voltaremos ao livro de Alexandre Guarnieri em
próxima oportunidade.
Por
enquanto, para melhor adentrar a 'casa das máquinas' nos cercamos de
um mundo tecnológico, um cybermundo de sugestões, numa
semiclaridade de lan house, uma rede icônica a vazar dos
monitores, onde visualizamos alguns sugestivos ilustradores para
“Casa das Máquinas” , sejam o cyber-alien-punk H.
R. Giger, ou o figurinista e o cenografista do clássico filme alemão
“Metropolis” , ou ainda os irmãos Wachowski da cyber
trilogia “Matrix”.
Meio
às imagens alguns sons podem se propagar, numa verdadeira
soundtrack, trilha sonora, para ler o engrenado “Casa das
Máquinas” com a cybermusic do alemão Kraftwerk,
com a música cyberpunk, Pink Floyd com sintetizadores
em “Welcome to the Machine”, hip-hop-metal furioso
da Rage Against the Machine, para
citar (e situar) alguns ícones do pop,
ou pop cult, da
rotulada pós-modernidade.
Temos
mais e mais imagens! O que são filmes além de imagens em
movimento?! E não dispensam soundtrack. Filmes (de outrora e
de agora) que nos rodeiam : Metropolis, Terminator (ou
Exterminador do Futuro), Matrix, filmes onde as
máquinas se 'revoltam' contra os seres humanos. De escravizadas, as
máquinas passam a escravizar, de dominadas, passam a dominadoras,
assim a humanidade se torna dependente e escrava.
Engrenagens
em engrenagens, pistões em pistões, cilindros em cilindros, uma
máquina dentro da máquina, e nanomáquinas nas veias, máquinas
úteis e inúteis, máquinas que produzem máquinas, sim, máquinas
se reproduzem! Mundo-máquina, cosmos mecanicista, englobando
homens-máquinas, seres-mecanizados, sem autonomia, em labor e suor,
sem prazeres artificiais, eis o pesadelo que nos anuncia “Casa
das Máquinas”. Em breve rebobinaremos esta fita.
Mai/12
Leonardo
de Magalhaens
…
mais
info sobre obra & autor
...
poemas
seletos de “Casa das Máquinas”
música
de trabalho
nem
sempre é terrível a música orquestrada das
máquinas
pesadas, sobretudo se ágil e sincopado
o
ritmo de todos os motores a diesel enquanto
deslizam,
vez por outra um solo monocórdico so-
bressai
à percussão dos pistões, monólogo desen-
contrado
sobre coro de vozes intercambiáveis.
nem
sempre é triste mas trinca naquela liga
entre
o aço mais elástico e o arrasto do ferro
incrustado
de ferrugem rubra, engrenagem por
engrenagem,
até o trêmulo epicentro dessa
gangrena
fabril. Nem sempre se repetem, nas
forjas,
tantas outras dessas órbitas ruidosas,
enquanto
dura a jornada diurna um barulhário,
mas
dora das fábricas, talvez o sono do operário
solitário
o reconstrua quase à integralidade,
invadindo
os tímpanos, sincopando, o ritornello
reclamando
ad aeternum, um dentre
tantos outros
pesadelos:
o augúrio do contrato de trabalho.
Nem
sempre é gratuitamente lúgubre, ou longa,
a
música regulatória da vida útil (nula, reclusa)
dos
metalúrgicos na indústria, símiles a refis
vazios,
ou qualquer outros receptáculos defla-
grados,
quando entregam dedo à fresa, vi-
nagre
o sangue acre, tétano ou qualquer febre,
fusíveis
sem brio ou viço, descartados, pinos
que
por dispensáveis: necessário substituí-los.
[pp.
99, 101]
…
caixa-preta
no
corpo, no rosto, sempre
uma
caveira os frequenta,
interna,
atrás da pele, sob a
epiderme;
o que a superfície
serena
aparenta mascara o
cancro
e, por hóspedes, os
vermes;
os tecidos exercendo
seu
arcano, são meandro ca-
muflando
o âmago; enquanto
o
tórax resguarda o motor do
miocárdio;
o encéfalo: no
crânio;
no osso: tutano; no
esqueleto
temporário, uma
centopéia
de vértebras o
sustenta,
as vísceras lacradas
ao
ventre, mero aparato
maquiado
sob camadas de
células,
em série, a lânguida
flâmula
no acúmulo dos
músculos,
eis toda a verdade:
o que mostra esse
monstro,
ogro, invólucro, é um
evento
pregresso, esperado
sem
mistério, ter corpo
é habi-
tar o futuro cadáver
de si
próprio, ignóbil,
sólida ne-
crose avançando
sobre o
óbvio, aviso prévio,
carne e
ossada (nem sempre
velhos)
desse espécime de
cemitério.
[p. 165]
in:
Casa
das Máquinas
[2011]
Alexandre Guarnieri
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