sexta-feira, 27 de abril de 2012

Sobre os poemas de “Outros Silêncios” - de José Geraldo Neres




Sobre os poemas de “Outros Silêncios” (2009)
do poeta José Geraldo Neres (1966-)


Poética enquanto amálgama de razão e delírio


Fazer poesia com a razão ou deixar transvazar a emoção? Criar através de técnicas de versificação ou dar livre curso à expressão? Não se trata de uma querela entre parnasianos e modernistas, ou entre formalistas e expressionistas. É uma questão que se atualiza. Por exemplo, quando falamos em técnica ou inspiração. Estamos no mesmo lugar.

Meditando sobre este dualismo inspiração – transpiração, forma racional - expressão irracional podemos chegar a contemplação do bom senso: que os opostos se amalgamam no fazer poético. Pois se temos alguma técnica, e esforço racional, este fazer (este making of) não vem do nada, há toda uma inspiração que faz desencadear o poema. Há uma faísca no cerne da escrita.

O grau de expressividade dependerá certamente, do grau de desenvoltura técnica da voz poética, do autor ou autora. Quem estiver mais preparado com as palavras, quem estiver mais consubstanciado com as palavras, quem tiver as palavras mais entranhadas em si mesmo, a ponto de gotejar na fala mais simples e cotidiana, este ou esta estará finalmente criando 'núpcias alquímicas' (assim disse Blake) entre o fazer e o dizer na configuração do expressar.

Traduzindo: não basta ter a faísca da emoção, do sentimento, do desassossego, mas é preciso também saber transmitir emoção, sentimento, desassossego. E transmitir através da riqueza poética, da versificação, das imagens, das figuras de linguagem. Todos os recursos se ajuntam, se amparam, se completam. Métrica, rimas, aliterações, sinestesias, são o que além de ferramentas? Tudo tem um lugar e um momento. Na poesia nada deve ser gratuito. Nada deve soar gratuito.

E a poesia se faz com palavras e palavras transmitem (ou que sugerem, segundo desejava o francês Mallarmé) imagens. Não apenas imagens cotidianas, vividas, que a poesia não é fotografia do 'mundo real', mas sobretudo imagens da imaginação, do sonho, do delírios, do mundo desejado. São imagens surreais, logo não requerem explicação. Pois, afinal, se explica a poesia? Quem há-de explicar? O Poema é uma forma de mistério – confunde o neófito – só é acessível ao adepto, ao devoto, ao iniciado.

Sim, consideremos, o poema não é para explicar, nem ser explicado. A força do poema reside em que não se pretende dizer algo, apenas de diz algo. Não se veicula uma mensagem através do poema, pois o poema é a mensagem em si mesma. Forma e conteúdo se mesclam, se conurbam alquimicamente, misticamente. Explicar é dissecar o mistério do poético.


Na poética do autor José Geraldo Neres, aqui em “Outros silêncios”, estamos diante de uma simbiose, digamos, entre Simbolismo e Surrealismo (para usarmos nomenclaturas da Teoria literária quanto aos Estilos de Época), sim, uma simbiose onde Mallarmé anda de mãos dados com Breton. Pois não é importante o retrato ou representação de algo, mas sua apreensão sinestésica, para uma percepção do eu lírico. Portanto não um Realismo, não objetivo (apenas o Eu subjetivo).

Como nada representam além de si mesmas, as imagens sem sentido têm um apelo ao subconsciente, ou ao 'inconsciente coletivo' (segundo Jung), ou, ainda, a um mundo alternativo – o que não é – para indagar : por que o mundo é tal como ele é? Não podemos pensar um mundo outro? Uma dimensão alternada que funciona segundo nossas pulsões? Uma 'terra-do-nunca' feita de satisfações adiadas, ou reprimidas?

No mundo do símbolo configura-se a possibilidade da satisfação – como gozar num sonho o que evitamos na realidade – com a simbolização tanto de eros (pulsão de amor) quanto de thânatos (pulsão de morte) , tanto do que nos excita quanto o que nos faz temer. No mundo dos símbolos – daí usarmos o termo 'simbolismo' - uma coisa reflete outra coisa: um signo reflete uma coisa (objeto no mundo real), mas o signo é uma coisa que diz sobre outra – ou, uma coisa parte de outra coisa.

A coisa é do mundo objetivo, é uma 'coisa-aí ', mas sua leitura é subjetiva, é um signo que faz link (ligação) com o existente (e também com o imaginado) para cada um que lê / vê, de modo que o signo para X não é o mesmo signo para Y. Chega um momento – o transe poético? - quando o mundo reflete os delírios do Eu lírico, ou os delírios reflitam as loucuras do mundo. É difícil saber onde o Eu acaba e começa o Outro?

Ou: em que grau o eu-lírico não se perde em metáforas obscuras quando tenta se explicar? Seu desabafo é constituído de símbolos cuja chave de interpretação somente ele possui, em série de paradoxos, oxímoros, contradições que mostram a pluralidade da percepção e da voz que se expressa (e Whitman escreveu: “Eu me contradigo? Pois eu contenho multidões”).


dois icebergs flutuam nos olhos do cego” (p. 31)

eterna medusa em silêncio
diluída no galope de seus olhos
o grito da chuva adormecido nos seus braços” (p. 34)


Não explicamos as imagens e seus delírios-paradoxos, assim como não explicamos as gravuras de Escher ou os quadros de Dalí, estão além da faculdade racional – e podemos perguntar em que nível somos racionais. As imagens estão aí simplesmente, a brotarem de sonhos e pesadelos, advindas do passado ou premonições do futuro. Assim se sucedem,


nosso lábios são raízes dentro da água
não há infância na linguagem dos olhos líquidos” (p. 35)

um rosário de medos segura um copo de vozes antigas” (p. 39)

São belas imagens poéticas, líricas mesmo, com metáforas que lembram Neruda ou imagens surreais de um Dalí, em múltiplos ângulos como Picasso desejava ver o mundo, ora aqui ora ali, em cima e embaixo, nas visões de fora e dentro, nas percepções de alma e corpo, onde um começa ao findar o outro, ou o sentir de uma interpenetração de ser-coisa e ser-mente-consciente-da-coisa,

o tempo é o mesmo
guarde esta imagem
distribua sonhos e punhais” (p. 122)

os segredos quebram o espelho & retiram seus olhos líquidos
desnudam a chuva para sentir a sua pele” (p. 123)

não compreendo a escritura do seu corpo
& em silêncio caminho pelo espelho” (p. 127)

existe um fantasma na porta de cada sonho. É trágico. Vivemos para
atravessar a noite.” (p. 129)

no seu sexo uma borboleta de navalhas
avança pelas paredes
sua voz aguda a engravidar edifícios” (p. 135)

aqui estou
cidade corpo faminto e cego
seus passos embriagados se hospedam em minha boca” (p. 135)


Podemos citar à exaustão o catálogo de imagens-delírios que constituem mandalas do ser, do eu-lírico, e mesmo do Autor, se dado a êxtases místicos, possessões de avatares ou orixás, numa busca do tempo mágico, numa cruzada em prol do reencantamento da palavra, do paganismo das sensações,

a melodia do deserto
bebe o líquido vermelho das palavras” (p. 44)

sua voz se inclina a procurar a palavra que habita seu corpo” (p. 123)

palavras invertidas temperam a fome” (p. 136)


Percebe-se uma tensão – que já notamos em outras vozes poéticas – entre o desejo de falar, a ousadia de dizer E a consciência da impossibilidade da comunicação, de passar a mensagem (dizia Drummond de Andrade, “a poesia é incomunicável”), daí o embate entre a vontade de expressar e o voto de calar-se, um duelo palavra X silêncio,

cuidado
o silêncio devora
-a morte anuncia o jogo -
é o seu pavor de ficar sozinha” (p. 58)

o silêncio
absoluto & liquefeito
a escorrer pelo chão” (p. 87)


versos num poema cujo título muito se adequada (“sentir a sombra do silêncio”) o silêncio continua inquebrado pela ousadia da palavra, pois o poeta não sabe se comunicou. É assim ver a 'Máquina do Mundo' (aquela de Camões e aquela de Drummond de Andrade) e, deslumbrado, esquecer que não pode descrevê-la a outro, a menos que seja considerado louco, insano, ser esquizóide.


a vida caminha em suas pernas & uma serpente pergunta
que horas são. Perdi a confiança nos relógios. Siga seu caminho.
Os ponteiros são duas crianças com cheiro de suicídio.” (p. 133)


Podemos falar num lado mágico-místico da poesia imagética? Ou num xamanismo verbal é possível ? Sacerdócio que passa pela iniciação com as palavras-verbetes-em-estado-de-dicionário (novamente lembramos Drummond) ? Uma luta cotidiana com as palavras? Um reverenciar a semântica e incensar a sintaxe? Ou antes, um culto iconoclasta que incendeia as bíblias-gramáticas do dogmatismo?

Pois há uma Estética. Esta é necessária para veicular as imagens, que não são tão espontâneas e derramadas como podem parecer. Na escrita há o tipo, a fonte, as letras sobre um papel em contraste. É neste espaço visual que o verbo se despedaça, atomiza cada palavra escorre pela página no arranjo gráfico,

no verbo
              a vida
no poema
              a carne” (p. 110)


Simples assim, tal a sabedoria na concisão – temos quase 'haicais' – que evitam prolixidades inexatas e ativam plenamente como se fossem mantras, simples e belos, não exatamente racionais,

vivemos para atravessar a noite” (p. 129)

seus passos embriagados se hospedam em minha boca” (p. 135)

o tempo é o mesmo
guarde esta imagem
distribua sonhos e punhais” p. 122

o sol em soluços
na boca um pedaço de silêncio” (p. 115)

a imagem soluça corpos
ponte nua
palavras tatuadas dentro das mulheres” (p. 111)

o girassol rói os olhos da morte” (p. 112)


Neste sacerdócio é impossível ao autor não teorizar – no poema! - sobre a relação do poeta e do poema, o ver-se no espelho, onde poeta contem poema, e o poema contem poeta e outros poemas, com o não saber onde um termina e o outro começa, “o que faço com o poeta depois de escrito o poema?” (p. 113), pensemos, depois de escrever o poeta é dispensável ?

Sim, o poeta existe NO poema? Há o poeta ALÉM do poema? O poema seria a corporização do poeta?

desaparece o homem nas sílabas de um presságio” (p. 113)

o poema em repouso não faz perguntas” (p. 114)

a poesia & suas árvores de sonhos não cicatrizam” (p. 120)


Neste labirinto onde se espelha poeta e poema, numa simbiose entre olhares, onde a voz toma consciência da própria fala, há outro elemento que podemos considerar: o diálogo com outros autores – artistas, poetas, literatos - onde textos têm passagens, corredores para outros textos, no fenômeno da intertextualidade.

Assim é com o poeta croata-francês Ivsic em “Narciso de Radovan Ivsic” (pp. 38-39), pois o poeta surrealista tematiza o Narciso – aliás título do primeiro livro, alvo de interesse do autor de “Outros Silêncios”,

narciso dentro da árvore do esquecimento
seus pés são as raízes da árvore
submerso no sonho de outro” (p. 39)


mais sobre Radovan Ivsic em



Em “Evoé laroiê Piva” (p. 122) temos um diálogo com o recém-falecido poeta Roberto Piva (1937-2010) – e um link para o guru surrealista André Breton (1869-1966). Temos a saudação Evoé” uma evocação ao deus Baco (Dionísio no panteão latino) mais a saudação “Iaroiê” ao Exu no candomblé,

brinca de ser menino
de apunhalar as praças
memória devorada por usas tripas

.. os ponteiros de dissolvem

o tempo abre a janela de Breton

o abismo se imagina poeta


mais sobre Piva, Breton, surrealismo






Um quadro invisível é Cézanne” (pp. 136-141) faz uma referência ao pintor francês Paul Cézanne (1839-1906), de estilo classificado (ah, as classificações!) como pós-impressionista, que pintava retratos de faces meditativas, ensimesmadas, ou naturezas-mortas (still life), do tipo uma caveira meio a frutas, ou caveiras enfileiradas ou empilhadas, ou paisagens meio desfocadas, ou ainda banhistas nus e seminus.

um poema desce
torna-se mais pesado que um punhal” (p. 136)

com poemas visuais - protótipos de haicais (II, III, IV, VI)

as linhas se misturam ao poema
olhos de terra úmida bebem nos lábios da infância
as portas fogem de minhas mãos” (p. 141, “VI”)


mais sobre Cézanne & obras





É um verdadeiro trabalho de pesquisa o levantamento das referências – são tantas as leituras! - do poeta José Geraldo Neres nesta obra “Outros Silêncios”, que, no momento, desperta nosso comentário dos mais sucintos. Não é pretensão nossa explicar a Obra, mas situá-la, ou contextualizá-la, numa perspectiva de leitura – mais ao subjetivo e surreal do que ao objetivo e racional, contudo sem esquecer que tanto Razão como Delírio se entrelaçam nas 'núpcias alquímicas' da Estética, da expressão poética. Podemos não ser racionais, mas a linguagem (a gramática? a sintaxe?) ainda nos obriga a parecermos racionais.


abr/12

Leonardo de Magalhaens




mais sobre a obra do poeta José Geraldo Neres:








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