Sobre
os poemas de “Outros Silêncios” (2009)
do
poeta José Geraldo Neres (1966-)
Poética
enquanto amálgama de razão e delírio
Fazer
poesia com a razão ou deixar transvazar a emoção? Criar através
de técnicas de versificação ou dar livre curso à expressão? Não
se trata de uma querela entre parnasianos e modernistas, ou entre
formalistas e expressionistas. É uma questão que se atualiza. Por
exemplo, quando falamos em técnica ou inspiração. Estamos no mesmo
lugar.
Meditando
sobre este dualismo inspiração – transpiração, forma racional -
expressão irracional podemos chegar a contemplação do bom senso:
que os opostos se amalgamam no fazer poético. Pois se temos alguma
técnica, e esforço racional, este fazer (este making of) não
vem do nada, há toda uma inspiração que faz desencadear o poema.
Há uma faísca no cerne da escrita.
O
grau de expressividade dependerá certamente, do grau de desenvoltura
técnica da voz poética, do autor ou autora. Quem estiver mais
preparado com as palavras, quem estiver mais consubstanciado com as
palavras, quem tiver as palavras mais entranhadas em si mesmo, a
ponto de gotejar na fala mais simples e cotidiana, este ou esta
estará finalmente criando 'núpcias alquímicas' (assim disse Blake)
entre o fazer e o dizer na configuração do expressar.
Traduzindo:
não basta ter a faísca da emoção, do sentimento, do desassossego,
mas é preciso também saber transmitir emoção, sentimento,
desassossego. E transmitir através da riqueza poética, da
versificação, das imagens, das figuras de linguagem. Todos os
recursos se ajuntam, se amparam, se completam. Métrica, rimas,
aliterações, sinestesias, são o que além de ferramentas? Tudo tem
um lugar e um momento. Na poesia nada deve ser gratuito. Nada deve
soar gratuito.
E
a poesia se faz com palavras e palavras transmitem (ou que sugerem,
segundo desejava o francês Mallarmé) imagens. Não apenas imagens
cotidianas, vividas, que a poesia não é fotografia do 'mundo real',
mas sobretudo imagens da imaginação, do sonho, do delírios, do
mundo desejado. São imagens surreais, logo não requerem explicação.
Pois, afinal, se explica a poesia? Quem há-de explicar? O Poema é
uma forma de mistério – confunde o neófito – só é acessível
ao adepto, ao devoto, ao iniciado.
Sim,
consideremos, o poema não é para explicar, nem ser explicado. A
força do poema reside em que não se pretende dizer algo, apenas de
diz algo. Não se veicula uma mensagem através do poema, pois
o poema é a mensagem em si mesma. Forma e conteúdo se mesclam, se
conurbam alquimicamente, misticamente. Explicar é dissecar o
mistério do poético.
Na
poética do autor José Geraldo Neres, aqui em “Outros
silêncios”, estamos diante de uma simbiose, digamos, entre
Simbolismo e
Surrealismo (para usarmos
nomenclaturas da Teoria literária quanto aos Estilos de Época),
sim, uma simbiose onde Mallarmé anda de mãos dados com Breton. Pois
não é importante o retrato ou representação de algo, mas sua
apreensão sinestésica, para uma percepção do eu lírico. Portanto
não um Realismo, não objetivo (apenas o Eu subjetivo).
Como
nada representam além de si mesmas, as imagens sem sentido têm um
apelo ao subconsciente, ou ao 'inconsciente coletivo' (segundo Jung),
ou, ainda, a um mundo alternativo – o que não é – para indagar
: por que o mundo é tal como ele é? Não podemos pensar um mundo
outro? Uma dimensão alternada que funciona segundo nossas pulsões?
Uma 'terra-do-nunca' feita de satisfações adiadas, ou reprimidas?
No
mundo do símbolo configura-se a possibilidade da satisfação –
como gozar num sonho o que evitamos na realidade – com a
simbolização tanto de eros (pulsão de amor) quanto de
thânatos (pulsão de morte) , tanto do que nos excita quanto
o que nos faz temer. No mundo dos símbolos – daí usarmos o termo
'simbolismo' - uma coisa reflete outra coisa: um signo reflete
uma coisa (objeto no mundo real), mas o signo é uma coisa que diz
sobre outra – ou, uma coisa parte de outra coisa.
A
coisa é do mundo objetivo, é uma 'coisa-aí ', mas sua leitura é
subjetiva, é um signo que faz link (ligação) com o
existente (e também com o imaginado) para cada um que lê / vê, de
modo que o signo para X não é o mesmo signo para Y. Chega um
momento – o transe poético? - quando o mundo reflete os delírios
do Eu lírico, ou os delírios reflitam as loucuras do mundo. É
difícil saber onde o Eu acaba e começa o Outro?
Ou:
em que grau o eu-lírico não se perde em metáforas obscuras quando
tenta se explicar? Seu desabafo é constituído de símbolos cuja
chave de interpretação somente ele possui, em série de paradoxos,
oxímoros, contradições que mostram a pluralidade da percepção e
da voz que se expressa (e Whitman escreveu: “Eu me contradigo?
Pois eu contenho multidões”).
“dois
icebergs flutuam nos olhos do cego” (p. 31)
“eterna
medusa em silêncio
diluída
no galope de seus olhos
o
grito da chuva adormecido nos seus braços” (p. 34)
Não
explicamos as imagens e seus delírios-paradoxos, assim como não
explicamos as gravuras de Escher ou os quadros de Dalí, estão além
da faculdade racional – e podemos perguntar em que nível somos
racionais. As imagens estão aí simplesmente, a brotarem de sonhos e
pesadelos, advindas do passado ou premonições do futuro. Assim se
sucedem,
“nosso
lábios são raízes dentro da água
não
há infância na linguagem dos olhos líquidos”
(p. 35)
“um
rosário de medos segura um copo de vozes antigas”
(p. 39)
São
belas imagens poéticas, líricas mesmo, com metáforas que lembram
Neruda ou imagens surreais de um Dalí, em múltiplos ângulos como
Picasso desejava ver o mundo, ora aqui ora ali, em cima e embaixo,
nas visões de fora e dentro, nas percepções de alma e corpo, onde
um começa ao findar o outro, ou o sentir de uma interpenetração de
ser-coisa e ser-mente-consciente-da-coisa,
“o
tempo é o mesmo
guarde
esta imagem
distribua
sonhos e punhais”
(p. 122)
“os
segredos quebram o espelho & retiram seus olhos líquidos
desnudam
a chuva para sentir a sua pele”
(p. 123)
“não
compreendo a escritura do seu corpo
&
em silêncio caminho pelo espelho”
(p. 127)
“existe
um fantasma na porta de cada sonho. É trágico. Vivemos para
atravessar
a noite.”
(p. 129)
“no
seu sexo uma borboleta de navalhas
avança
pelas paredes
sua
voz aguda a engravidar edifícios”
(p. 135)
“aqui
estou
cidade
corpo faminto e cego
seus
passos embriagados se hospedam em minha boca”
(p. 135)
Podemos
citar à exaustão o catálogo de imagens-delírios que constituem
mandalas do ser, do eu-lírico, e mesmo do Autor, se dado a êxtases
místicos, possessões de avatares ou orixás, numa busca do tempo
mágico, numa cruzada em prol do reencantamento da palavra, do
paganismo das sensações,
“a
melodia do deserto
bebe
o líquido vermelho das palavras” (p. 44)
“sua
voz se inclina a procurar a palavra que habita seu corpo” (p.
123)
“palavras
invertidas temperam a fome” (p. 136)
Percebe-se
uma tensão – que já notamos em outras vozes poéticas – entre o
desejo de falar, a ousadia de dizer E a consciência da
impossibilidade da comunicação, de passar a mensagem (dizia
Drummond de Andrade, “a poesia é incomunicável”), daí o embate
entre a vontade de expressar e o voto de calar-se, um duelo palavra X
silêncio,
“cuidado
o
silêncio devora
-a
morte anuncia o jogo -
é
o seu pavor de ficar sozinha” (p. 58)
“o
silêncio
absoluto
& liquefeito
a
escorrer pelo chão” (p. 87)
versos
num poema cujo título muito se adequada (“sentir a sombra do
silêncio”) o silêncio continua inquebrado pela ousadia da
palavra, pois o poeta não sabe se comunicou. É assim ver a 'Máquina
do Mundo' (aquela de Camões e aquela de Drummond de Andrade) e,
deslumbrado, esquecer que não pode descrevê-la a outro, a menos
que seja considerado louco, insano, ser esquizóide.
“a
vida caminha em suas pernas & uma serpente pergunta
que
horas são. Perdi a confiança nos relógios. Siga seu caminho.
Os
ponteiros são duas crianças com cheiro de suicídio.” (p.
133)
Podemos
falar num lado mágico-místico da poesia imagética? Ou num
xamanismo verbal é possível ? Sacerdócio que passa pela iniciação
com as palavras-verbetes-em-estado-de-dicionário (novamente
lembramos Drummond) ? Uma luta cotidiana com as palavras? Um
reverenciar a semântica e incensar a sintaxe? Ou antes, um culto
iconoclasta que incendeia as bíblias-gramáticas do dogmatismo?
Pois
há uma Estética. Esta é necessária para veicular as imagens, que
não são tão espontâneas e derramadas como podem parecer. Na
escrita há o tipo, a fonte, as letras sobre um papel em contraste. É
neste espaço visual que o verbo se despedaça, atomiza cada palavra
escorre pela página no arranjo gráfico,
“no
verbo
a
vida
no
poema
a
carne” (p. 110)
Simples
assim, tal a sabedoria na concisão – temos quase 'haicais'
– que evitam prolixidades inexatas e ativam plenamente como se
fossem mantras, simples e belos, não exatamente racionais,
“vivemos
para atravessar a noite” (p. 129)
“seus
passos embriagados se hospedam em minha boca” (p. 135)
“o
tempo é o mesmo
guarde
esta imagem
distribua
sonhos e punhais” p. 122
“o
sol em soluços
na
boca um pedaço de silêncio”
(p. 115)
“a
imagem soluça corpos
ponte
nua
palavras
tatuadas dentro das mulheres”
(p. 111)
“o
girassol rói os olhos da morte”
(p. 112)
Neste
sacerdócio é impossível ao autor não teorizar – no poema! -
sobre a relação do poeta e do poema, o ver-se no espelho, onde
poeta contem poema, e o poema contem poeta e outros poemas, com o não
saber onde um termina e o outro começa, “o que faço com o
poeta depois de escrito o poema?” (p. 113), pensemos, depois de
escrever o poeta é dispensável ?
Sim,
o poeta existe NO poema? Há o poeta ALÉM do poema? O poema seria a
corporização do poeta?
“desaparece
o homem nas sílabas de um presságio” (p. 113)
“o
poema em repouso não faz perguntas” (p. 114)
“a
poesia & suas árvores de sonhos não cicatrizam” (p. 120)
Neste
labirinto onde se espelha poeta e poema, numa simbiose entre olhares,
onde a voz toma consciência da própria fala, há outro elemento que
podemos considerar: o diálogo com outros autores – artistas,
poetas, literatos - onde textos têm passagens, corredores para
outros textos, no fenômeno da intertextualidade.
Assim
é com o poeta croata-francês Ivsic em “Narciso de Radovan
Ivsic” (pp. 38-39), pois o poeta surrealista tematiza o Narciso
– aliás título do primeiro livro, alvo de interesse do autor de
“Outros Silêncios”,
“narciso
dentro da árvore do esquecimento
seus
pés são as raízes da árvore
submerso
no sonho de outro” (p. 39)
mais
sobre Radovan Ivsic em
Em
“Evoé
laroiê Piva”
(p. 122) temos um diálogo com o recém-falecido poeta Roberto Piva
(1937-2010)
– e um link para o guru surrealista André Breton (1869-1966).
Temos a saudação
“Evoé”
uma evocação ao deus Baco (Dionísio
no panteão latino) mais a saudação “Iaroiê”
ao Exu no candomblé,
“brinca
de ser menino
de
apunhalar as praças
memória
devorada por usas tripas
..
os ponteiros de dissolvem
o
tempo abre a janela de Breton
o
abismo se imagina poeta”
mais
sobre Piva, Breton, surrealismo
“Um
quadro invisível é Cézanne” (pp. 136-141) faz uma referência
ao pintor francês Paul Cézanne (1839-1906), de estilo classificado
(ah, as classificações!) como pós-impressionista, que pintava
retratos de faces meditativas, ensimesmadas, ou naturezas-mortas
(still life), do tipo uma caveira meio a frutas, ou caveiras
enfileiradas ou empilhadas, ou paisagens meio desfocadas, ou ainda
banhistas nus e seminus.
“um
poema desce
torna-se
mais pesado que um punhal” (p. 136)
com
poemas visuais - protótipos de haicais (II, III, IV, VI)
“as
linhas se misturam ao poema
olhos
de terra úmida bebem nos lábios da infância
as
portas fogem de minhas mãos” (p. 141, “VI”)
mais
sobre Cézanne & obras
É
um verdadeiro trabalho de pesquisa o levantamento das referências –
são tantas as leituras! - do poeta José Geraldo Neres nesta obra
“Outros Silêncios”, que, no momento, desperta nosso
comentário dos mais sucintos. Não é pretensão nossa explicar a
Obra, mas situá-la, ou contextualizá-la, numa perspectiva de
leitura – mais ao subjetivo e surreal do que ao objetivo e
racional, contudo sem esquecer que tanto Razão como Delírio se
entrelaçam nas 'núpcias alquímicas' da Estética, da expressão
poética. Podemos não ser racionais, mas a linguagem (a gramática?
a sintaxe?) ainda nos obriga a parecermos racionais.
abr/12
Leonardo
de Magalhaens
…
mais
sobre a obra do poeta José Geraldo Neres:
Nenhum comentário:
Postar um comentário