sexta-feira, 20 de abril de 2012

sobre os poemas de 'Rastros' - de Vera Casa Nova



sobre os poemas de “Rastros” (2006)
da poeta Vera Casa Nova (RJ / BH)

Em busca do Eu-lírico indefinido


Uma das temáticas mais presente na atual produção poética – e sintomaticamente na crica literária – é a problematização do fazer poesia, do ser poeta, do encontrar-se enquanto voz lírica (quem é a voz lítica? O eu lírico? Onde está o autor?) ou enquanto sujeito que se expressa (porque decidiu não se calar).

Mas o/a poeta tem apenas uma voz? Ou ele/ela encarna uma pluralidade de vozes, de dizeres? Há uma perspectiva privilegiada no ser-poeta? São muitas as questões que são levantadas – a ponto de se escrever teses com mais indagações do que respostas. Na falta de um ponto de vista sublime, temas uma descentralização, logo os ecos das vozes marginais.

Daí que são muitas as vozes do poeta – a dele/dela, a do outro/a, a da sociedade, a do contexto histórico, etc – muitos 'eus' habitam o Eu. E desde as teorias e talking cures de Freud o Eu não é íntegro, mas tripartido (ver Id, Ego, Super-Ego), o Eu é formado pelos aprendizados no mundo social, ou seja, com o outros, seja família, escola, igreja, clubes, etc. Logo o Eu poético também é multifacetado, posto que multideterminado – circunstâncias várias o pré-formataram.

Assim o Eu-poeta é fruto das leituras de mundo, de outros poetas, de outras tradições filtradas pela sensibilidade individual na forma de texto artístico a ser enviado a outras sensibilidades que recepcionam de acordo com suas peculariedades-qualidades-precariedades. A voz lírica não é só do poeta – é de todos os poetas lidos, os que vieram antes, os atuais, os contemporâneos, ou seja, tanto a tradição quanto a geração - , assim a voz não é una, mas 'mil vozes',

Todos os poetas percutem em mil vozes dentro de mim
O poema insiste em ser inscrito no corpo” (p. 9, Epígrafe)


E nesta dissolução do Eu-lírico – incerto sobre si mesmo, imagine-se então sobre o mundo ao redor! - o desabafo oscila entre o personalismo-individualismo e o mosaico de vozes ('mil vozes') onde o que importa é a expressão verbal – ou visual – a ponto de o poema se esvaziar do eu lírico (autoral ?) e o poema falar de poema, de outros poemas, do fazer poema.

Nesta obra “Rastro”, de Vera Casa Nova, poeta, professora e crítica literária, podemos notar estas indagações sobre onde está o Eu e onde está o Outro, onde a voz autoral é uma colcha de retalhos de outras vozes (ditas) autorais. A poesia seria um modo possível de expressão? Ou um jogo de palavras despersonalizado? Ou um estilo de rearranjar-montar redes semânticas ao fazer as palavras se des-dizerem?

Haverá alguma lacuna para a expressão pessoal? Para uma confissão? Ou seja, para alguma poesia lírica?

Ainda se fazem poemas de amor?
Com que amor se faz um poema de amor?” (p. 14 , Poeminha menor)


Ou para o eu lírico em busca do amor? (nem vamos debater aqui o que seja 'amor' no contexto prosaico ou poético, ou na cultura ocidental cristã)

Minha descontinuidade é a busca incessante e frenética
De um Eros possível e imponderável.” (p. 19, Eros histérico)

Ou a sinceridade de algum desabafo comunicável ? (A contrariar o assustador: “toda poesia é incomunicável” drummondiano),

E reescrevo as notas melancólicas
De uma utopia desfeita.” (p. 21, Interrogação)

Clamo pelas palavras possíveis
As não ditas ou apenasmente
Gritadas pelo verso.” (p. 23, Jogo)


Ou antes, podemos esperar o apurado trato com as palavras? O jogo de palavras num dizer que des-diz o comum? Um lúdico sobre por de vozes sobre vozes que se banalizaram? Num reencontrar a palavra num reencantamento (se possível for)?


Experimento a delícia das palavras;
Como-as como posso.” (p. 24, A Veia)

Palavras se (me) movem
poéticas viajantes
nessa música do corpo” (p. 29, Versão)

O velho dicionário de Aurélio
Mostra as impossibilidades da palavra.” (p. 60, Esboço de Vida)

Mas jogar com as palavras é suficiente para ser poeta? O ser poeta é uma capacidade de expressar a sensibilidade? (afinal, todos têm sentimentos, mas nem todos são poetas...)

O poeta se esconde por entre os muros
Pichados da cidade.”

E o poeta se dilacera
Diante do olhar dos objetos.” (p. 26, Dias... Noites)

Daí indagarmos, pesarosamente, lirismo e pensamento: como conciliar? : poesia sentida ou pensada? Como deixar o coração verter versos sem sofrer bloqueios do cérebro, do super-ego, da gramática, do manual de redação?

Penso, logo, insisto:
E pensar nem sempre é preciso.”
(p. 36, Pensamento Tolo)


Temos o pensar sobre o poético nos próprios poemas - no fenômeno de metapoema - quando a poesia inclina-se sobre si mesma, olha-se no espelho, fala sozinha, briga consigo mesma. O fazer poético analisado, reavaliado, com muita metalinguagem: “Não sei como um poema se faz.” (p. 74) o poema parece que simplesmente brota. E não pode ser explicado, evidenciado. (A Crítica bem que se esforça...)

O poeta diz algo sobre seu poema;
Melhor não dizer nada.” (p. 74)


Mas afinal o que é poesia? O que mais dizer (pois não podemos nos silenciar...) sobre o fenômeno poético, sobre o que pensamos, ou rotulamos, na qualidade de poesia:

poesia é feita pra gente comer” (p. 40)

A poesia é uma comunidade sem fim” (p. 61)

Voltamos ao ponto, girando em círculos: pensar ou sentir? Pensar E sentir? poesia é então inspiração? Fonte inconsciente? Como queria o surrealista francês Breton... ou seria um esforço? Mais transpiração que inspiração? É um desejo de falar mesmo sendo melhor ficar calado? Ou falar justamente por cauda do medo do silêncio? Do medo do não-comunicar?

o silêncio pungente / nos arrebata, / nos persegue até a paranóia” (p. 29)

O sopro que anima as veias das palavras.” (p. 74)

Sou a impossibilidade dos versos.” (p. 87)


O que acaba acontecendo é um fenômeno bem moderno, até pós-moderno (como desejam os críticos) onde o Poeta vive em diálogo com o/s poeta/s. O poeta que fala aos outros poetas, numa teia de intertextualidades. Com o poeta, ou antes, a figura do poeta,

O poeta... o diferente das gentes
ou … … o indiferente
passeia por entre seus versos
inquietos” (p. 61, Não)

O poema é ironia da vida
E tu, poeta, morto ou vivo
Circulas deixando rastros” (p. 40, Logogrifos)

Ei, poeta! Vamos namorar um pouquinho?” (p. 44)


Dói a falta do verso: ouvir e pensar
Versos que não são meus, nem teus, são de ninguém ou de todos:
Quintana, Drummond, Waly, Haroldo: onde se encontram se não
nos versos
da memória do impensado?” (p. 38, Vertigens)

Poetas aí citados que mostram o percurso de leituras da poeta, temos no rol o mineiro Drummond de Andrade, e o homem do pantanal Manoel de Barros,

Desse tempo de poeta itabirano
Removo meus ais passados:” (p. 57)

Manoel de tanto barro
oferece seus versos partidos” p. (57)


Notamos referências ao poeta francês Rimbaud, aquele que vivia com as 'alquimias do verbo', com seu poema surreal “Bateau Ivre” , Barco Bêbado, no “turbilhão de vertigens pós-tudo” ('pós-tudo', pós-estruturalismo, pós-concretismo, basta ver Baudrillard e a questão dos 'simulacros' em nossa 'pós-modernidade'),

Percorro a água revolta no barco de Rimbaud” (p. 43, Retorno Rimbaud)

referência também a Jorge Luís Borges, o contista argentino, com seu infindo “O Livro de Areia”,

Escrevo nesse livro de areia.
Borgeanamente ofereço versos
A quem passa na esquina da vida.” p. 53


Interessante diálogo com Bandeira e Drummond: sobre a Indesejada da Gentes, traduzindo: A/O Morte. O eu-lírico aqui está numa posição de contraponto, não exatamente preparada quanto o poeta de Pasárgada,

Quando a indesejada das gentes chegar
não estarei com a casa limpa nem com a mesa posta” (p. 91, Indesejada)

em comparação temos aqui o poema de Manuel Bandeira (“Consoada”)

Quando a indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
Talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
- Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.”

E outros poetas para o rol de influências: em “Espelho” (p. 92) temos referências a Álvares (de Azevedo), Olavo (Bilac), Castro (Alves), Alphonsus (de Guimaraens), Murilo (Mendes), Drummond (de Andrade), Waly (Salomão), num recorte que vem desde os poetas românticos do século 19, passando pelos parnasianos e simbolistas na transição para o século 20, pelos modernistas e chegando até os poetas da dita 'geração marginal', nos anos de 1960 a 1980.

Não apenas estes, encontramos outros nomes no rol de leituras que nos possibilita rastrear a 'angústia de influência' (please, ver a teoria do scholar Harold Bloom) da autora, Fernando Pessoa; Joan Brossa, o poeta catalão : poesia para se ver (na p. 68), o francês Francis Ponge,

sou o tudo e o nada pessoano” (p. 65)

desespero em ler seus versos tão simples.” (p. 69)

além de um recado desaforado para o poeta Boris Vian, que despreza os 'bestas' poetas e não poupa as mulheres, o que a poeta não deixa por menos, em seu desabafo: “mando você à merda” (p. 84)

poemas de Joan Brossa, Francis Ponge e Boris Vian em





Além do diálogo com outros poetas (ou outros Eus) temos tentativas confessionais, escuta do outro, um colocar-se no lugar do outro, uma voz de exortação. Mas podemos dizer Poemas pessoais-confessionais? Sim, temos. “As Formigas”, “Saudades de Carnaval”, “Poema para Cla”, e não seria confessional? : “Perdi-me entre paixões vadias e românticas” (p. 92)

Mas não sobre si mesmo o eu-lírico se expressa, afinal o Outro está mais dentro do que fora, com identidades que se mesclam, se fundem, basta comparar com já citado Rimbaud (“Eu é um Outro”, “Je est un autre”)

O que dizer de mim se sou o outro de mim?” (p. 71)

Daí o jeito é escutar o outro: “onde possa escutar os versos que estão fora de mim.” (p. 71) ou tentar tornar-se o outro: “Tornar-me criança, animal, negro, bicha. / Todas as minorias / maiorias do mundo / Isso para não aniquilar as esperanças” (p. 72) ao identificar-se com os 'humilhados e ofendidos', os que vivem nas margens.

Tanto que o outro está presente no pronome 'nós', quando o Eu engloba o Outro, inclui outras vontades, outras vozes, e deixa de olhar o próprio umbigo, num poema de exortação: exatamente, o eu exorta o outro, até dá conselho, anima!

Misturem-se nas cores do universo
E não se esqueçam de nada:
A memória é nossa força,
Ela nos inventa a cada dia.” (p. 75)


É nestes momentos que a poeta consegue fugir aos simulacros de metalinguagem, ou intertextualidades, e finalmente diz mais do que sobre poesia e poetas. Ela tem realmente algo a dizer – não que espere realmente comunicar. Temas universais aparecem – acima a exortação, a voz coletiva – que encontramos tanto em Whitman e Neruda, p.ex. - e na filosofia, o tema do viver o hoje e não se preocupar com o amanhã – 'carpe diem' – aproveite o dia ,

Hoje, não consigo pensar no amanhã” (p. 77, 'Amanhã')

não pensar no amanhã – mas viver o hoje – eis um tema dos poetas do Barroco, e também do Arcadismo e do Romantismo – a vida enquanto fenômeno efêmero - mas o inquietar persiste: “Qual o saber no amanhã revelará meu dia?” (p. 77)

Quando a voz poética dá livre curso ao voos – rumo a outras imagens / paisagens: “O céu sempre cinzento de Paris manchava-se de pontos negros... / Tentava-se ouvir o inaudível do grito.” (p. 73) quando lembramos do grito do quadro de Edvard Munch, “Mas em mim / Os silêncios podem ser ouvidos.” (p. 73)

A voz então se torna audível quando comunica uma expressão de época – pois é coletiva – uma visão de mundo, um testemunho pessoal – além de olhar a própria poética, ou dialogar com poéticas ao redor ou no passado. A autora, a poeta, a professora, a crítica literária, ou seja, as várias atividades-identidades se entrelaçam, forma uma pessoa que saber-se várias ao mesmo tempo.

É quando a voz se personaliza, ela tem um lugar no tempo, tem sua geração. Uma geração da Utopia , ou antes as utopias de cada geração, seja nacionalismo, libertação, revolução, consumo, não importa, sempre as gerações procuram uma voz que fale mais sobre a época, num repensar-se, reconhecer-se nos versos, seja positiva ou negativamente. Quem será o poeta da geração X ou Y ou Z? Qual poeta marginal será o 'representante'? Ou antes: é isto possível? Como representar uma pluralidade de vozes?

Ainda é cedo para englobarmos a Poética da poeta e crítica Vera Casa Nova em gavetas, rótulos, conceitos, esquemas, etc - afinal o meio acadêmico não se preocupa com poetas vivos, demasiadamente vivos, e sempre espera um cinquentenário de alguém para publicar homenagens. Mas esquece a Crítica que a poética quando tem valor em si-mesma provoca uma presentificação, um agora do Dizer. A geração da Utopia, na qual a Poeta se gerou, já passou, mas a sua Poesia apenas começou a ser lida, relida, pensada, sentida e repensada.

abr/12


Leonardo de Magalhaens




outra resenha sobre obras de Vera Casa Nova


mais poemas de Vera Casa Nova



dois poemas de “Rastros”


PENSAMENTO TOLO


Penso, logo, insisto:
E pensar nem sempre é preciso.

Ter as cordas presas ao panóptico
Desiludir-se de vez com o real
Dizer que o melhor é
Dançar um pagode
Sair por aí
Exultando o axé.
Quando a madrugada chegar
Que tempo nos restará?

O sol cobrirá de raios os velhos caminhos
De dor e carícias.
Teu pé direito não conseguirá sair do lugar marcado
Agarras-te no que tens e sabes não ter nada.

Tuas mãos não trazem nada.
Vazias, elas te ajudam a caminhar por entre ruínas.
Descendem-te de monumentos seculares
E teus brinquedos são válvulas e engrenagens.

Pereces a cada instante nesta cidade morta.
Pensa.




ESCRITURAIS


Essas cicatrizes do corpo
São linhas bordando peles e carnes.
Escrituras da alma
na transpiração das lutas: deriva.
Impedida de seguir a linha das bordas.
Sufoco angústias e desespero.
Sou afinal, uma salamandra, e como tal, percorro espaços de
[fio a fio,
As ondas não me impedem de pensar.
Concluo não concluindo.
Na dissolução
Me dissolvo, na posse me despossuo.
Tua escritura me faz respirar
Tua escritura é meu transe.
Transitamos um no outro
Torcemos penas e mortes
Pincéis e lápis.
O testamento de nossos pais
Não dizem a diferença: obrigação nossa de cada dia. Amém.
O desejo da deriva,
O rastro, os restos de palavras, botões, palmilhas, unhas de tua unha,
pestana de tua pestana-cerca de teus olhos
Encontrados no chão
Suprimem o mal estar do outro dia.



in: Rastros / 2006


Vera Casa Nova

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