quinta-feira, 29 de março de 2012

OLHARES - conto




OLHARES


Estranho é andar pelas ruas, numa manhã isenta de sol, furando as ondas do tráfego, e sentir, queimando, os olhares acusadores dos passantes. Suas faces transformadas, tal em convulsões, de bílis vertida nas estranhas, e um rasgo de deboche nos lábios, um não-pode-você-fazer-que-vai-nos incomodar toda vez que insistimos em seguir junto as vitrines, e ao fim, nos desviamos, antes de derrubarmos, por terra e cimento, a senhora com suas inevitáveis duas sacolas prenhes de mercadorias, e ela ainda insatisfeita.


É assim: todos me acusam. Estou sujo, um traço de dentifrício marca em cicatriz o subúrbio de meus lábios, ou meu cabelo se enroscou serpentino ao vento de fuligens.


É assim: de súbito, um olhar me enternece. Uma garota de meu interesse, que penso já ter visto antes, talvez num dos agitares do mercado, alguém enfim que percebo admirar.


Aproximei-me, puxei assunto. Ela, meio assim desconfiada, mas ainda certa atenção. Percebo meus passos, enquanto sigo ao lado daquela de olhos tão abraçantes. Aí ela entra na igreja.


Olhei o altar, ali uns poucos fiéis, e aquele cheiro de incenso me nauseava. Ela se encaminhou aos últimos bancos, deixando meia igreja de bancos vazios entre ela e os devotos. As devotas.


O que fiz? Sentei-me o lado dela, meio deslocado. Levantei-me e, assim inclinando, cochichei ao seu ouvido: “Querida, você não quer que conversemos na igreja, quer?” ela se levantando, assim meio contrariada, mas sem outras hostilidades, olhando assim com aquela timidez, mas parecia querer se entregar - ali contida ainda por alguma desconfiança. Algum meditar a retinha.


Penso, logo desisto. (Citação, meu velho.)


Ela foi seguindo à minha frente. De súbito, parou.


É que ela, voltando-se para mim, verteu olhares perplexos. (enfrentei muitos olhares, mas aquele era.) Possuída pelo olhar, ela exclamou irada: “Bem que minha mãe me alertou!” Deu-me as costas, seguindo para a porta. Tentei sair no seu encalço, fui barrado por uma voz autoritária: - “Parado aí, amigo.”


Amigo? Dois policiais ali estão. Braços cruzados à altura do peito, na representação correta de autoridades, donas de meu ir-e-vir. Mas eis a porta e vou abri-la assim mesmo. O ar da igreja me sufoca. Abri mesmo. Alguém ainda diz, à milhas: -“Eles vieram é pra te prender.”


Como já disse, abro a porta. Na calçada os vultos, quase humanos, de mais dois policiais. Fardas furando na retina a profunda calma. É um suor o que me afoga a nuca, e singra meandros do pescoço? Blá, blá, blá. Na viatura, do outro lado da rua, mais dois. De repente parece que já esperava por tudo aquilo. Um batalhão para me prender!


É uma manhã isenta de sol ( acho que já disse isso...) e digo, aborrecido: “Tão cedo!”


Garras metálicas a beliscarem-me o retesar dos pulsos.


Vejo, à distância, a moça se esvaindo nas brumas do asfalto quente.



Leonardo de Magalhaens

http://leoliteraturaescrita.blogspot.com.br



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