quinta-feira, 16 de junho de 2011

Bloom na zona boêmia (Ulysses)









Ulysses / Ulisses

James Joyce / 1922


Episódio 15 (Circe)


(A Rua Mabbot na entrada da zona boêmia, diante da qual se estende um não-pavimentado desvio dos trilhos do bonde disposto com trilhos-esqueletos, fogos-fátuos rubros e verdes e sinais de alerta. Fileiras de frágeis casas com boquiabertas portas. Raros lampiões com indistintos atiçadores-arco-íris. Ao redor da parada gôndola de gelo do Rabaiotti tolhidos homens e mulheres discutiam. Eles agarravam biscoitos finos entre os quais são entalados massas de carvão e neve de cobre. Sugando, eles se dispersam lentamente. Crianças. O colo de cisne da gôndola, alto-levantada, molda-se através da escuridão, alva e azulada sob um farol. Assobios chamam e respondem.)

OS CHAMADOS: Espere, meu amor, e vou ficar contigo.

AS REPOSTAS: Lá atrás do estábulo.

(Um idiota surdo-mudo com olhos arregalados, com a boca disforme babando, move-se aos trancos ao passar, agitado numa dança de São Vito. Uma corrente de mãos infantis o aprisionam.)

AS CRIANÇAS: Canastrão! Viva!

O IDIOTA: (levanta o paralisado braço esquerdo e gorgoleja) Fodlham-se!

AS CRIANÇAS: Onde está a luz grandona?

O IDIOTA: (escarrando) Exsumam-se.

(Elas o libertam. Ele move-se aos trancos. Uma mulher anã balançava numa corda suspensa entre as balustradas, contando. Uma forma esparrama-se contra uma caixa de areia e amortecido por este braço e chapéu move, geme, rangendo dentes resmungando, e ressona de novo. Num passo um gnomo cambaleando no meio de um monte de lixo agacha-se para erguer aos ombros um saco de trapos e ossos. Uma megera de pé com uma fumarenta lâmpada-a-óleo força a última garrafa na goela do saco. Ele levanta seu espólio, arrasta de lado a capa com pala e dá o fora mancando em silêncio. A megera dá as costas voltando para o seu covil a balançar a lamparina. Uma criança entortada, agachada no degrau da porta com uma peteca de papel, rasteja esgueirante atrás dela [da megera] em impulsos, agarra sua saia, engatinha com dificuldade. Um estivador bêbado agarra com ambas as mãos as grades de uma área, movendo-se pesadamente em solavancos. Numa esquina dois guardas noturnos em capas curtas sobre os ombros, com suas mãos sobre seus coldres, se destacam altivos. Um prato quebra; uma mulher grita; uma criança se lamenta. Imprecações de um homem ressoa, resmunga, cessa. Figuras vagueiam, furtivamente, tentam enxergar desde as cercas. Numa sala iluminada por uma vela enfiada numa boca de garrafa uma mulher desarrumada penteia as madeixas do cabelo de uma criança tuberculosa. A voz de Cissy Caffrey, ainda jovial, canta estridente numa viela.)

[…]

(O soldado Carr e o soldado Compton voltam-se e retrucam, suas túnicas brilhante-sangue num clarão do lampião, os encaixes negros de suas capas sobre suas aparadas cabeças loiras, Stephen Dedalus e Lynch atravessam a multidão junto aos casacos-rubros.)

[…]

(Stephen, brandindo a bengala em sua mão esquerda, canta com prazer o introito da época da Páscoa. Lynch, com seu boné de jockey baixo em sua testa, presta atenção a ele, um sorriso desdenhoso de descontente enrugando sua face.)

STEPHEN: Vidi aquam egredientem de templo a latere dextro. Alleluia.

(Os famintos cacos de dentes pontudos de uma velha vulgar projeta-se de um vão de porta.)

A VELHA PUTA: (Sua voz sussurrando rouca) Xst! Venha cá e vou te dizer. Uma donzela lá dentro. Eia!

STEPHEN: (Altius aliquantulum) Et omnes ad quos pervenit aqua ista.

A VELHA PUTA: (Cospe no caminho deles o jorro de veneno dela) Médicos da Trinity. Trompa de Falópio. Tudo pica e nenhum tostão.

(Edy Boardman, fungando, agachada com Bertha Supple, puxa seu xale até o nariz.)

EDY BOARDMAN: (Discutindo) E uma diz: eu vi você na praça Faithful com seu traficante do quarteirão, o mais seboso da ferrovia, no seu chapéu ir-pra-cama. Você viu, eu disse. Que não é pra você dizer, eu disse Você nunca me viu numa armadilha de homem [bordel] com um escocês casado. Os gostos dela! De macho que é. Teimosa igual a uma mula! E ela que anda com dois caras de uma vez, Kilbride o maquinista e o lanceiro Oliphant.

STEPHEN: (Com triunfo) Salvifacti i sunt.

(Ele agita sua bengala fazendo tremer a imagem do lampião, estilhaçando a luz sobre o mundo. Um branco-pardo cão spaniel a vaguear esgueira-se atrás dele, rosnando. Lynch enxota o cão com um chute.)

LYNCH: Então o quê?

STEPHEN: (Olha atrás de si) Eis que gesto, não música, nem o cheiro seria a língua universal, a dádiva das línguas fazendo visível não o senso comum (leigo), mas a primeira enteléquia, o ritmo estrutural.

LYNCH: Pornosófica filoteologia. Metafísica na rua Mecklenburg.

STEPHEN: Nós temos Shakespeare dominado-por-megera e Sócrates dominado-pela-mulher. Mesmo o todo-sábio estagirita [Aristóteles](1) foi mordido, domado e cavalgado por uma luz de amor.

LYNCH: Ora bolas!

STEPHEN: De qualquer modo, quem deseja dois gestos para representar um pão e uma jarra? Este movimento representa o pão e o jarro de pão e vinho em Omar. Segure a minha bengala.

LYNCH: Dane-se sua bengala amarela. Aonde estamos indo?

STEPHEN: Lince lascivo, para a la belle dame sans merci [a bela dama sem clemência](2), Georgina Johnson, ad deam qui lactificat juventutem meam.

(Stephen espeta a bengala nele e lentamente estende suas mãos, sua cabeça recuando até ambas as mãos ficarem até um palmo do seu peito, para baixo virou em planos intersectantes, os dedos separados, a mão esquerda mais acima.)

LYNCH: Qual é o jarro de pão? Não dá certo. Aquela ou a alfândega.
Represente aí você. Aqui, pegue sua muleta e vá em frente.

(Eles passam. Tommy Caffrey escala um lampião a gás e, agarrando-se, sobe em espasmos. Lá de cima ele escorrega abaixo. Jacky Caffrey se agarra para subir. O estivador cambaleia à contra-luz. Os gêmeos correm no escuro. O estivador, oscilando, aperta um dedo contra o lado do nariz e espirra daí um jato de meleca. Apoiando o ombro no lampião ele vacila para longe através da multidão com seu chamejante balde de brasas.

Serpentes da névoa do rio rastejam lentas. Desde os esgotos, fendas, fossas, lixões sobem de todos os lados fumos estagnantes. Um brilho saltita no sul além da direção do mar alcança o rio. O estivador cambaleante adianta racha a multidão e oscila adiante até o desvio dos trilhos. No lado mais afastado sob a ponte da ferrovia Bloom aparece afogueado, ofegando, pão embrulhado e chocolate num bolso lateral. De uma janela do cabeleireiro Gillen um retrato composto mostra-lhe a galante imagem de Nelson (3). Um espelho côncavo ao lado apresenta-lhe desolado-de-amor há muito perdido lúgubre Booloohoom. O solene Gladstone (4) vê a ele ao nível, Bloom por Bloom. Ele passa, golpeado pelo olhar fixo de truculento Wellington (5), porém no espelho convexo sorriso amplo não-golpeados os olhos de porquinho e queixo-gordo pedaço-de-bochecha de alegre-poldy o rixdix doldy.

Diante da porta de Antonio Rabaiotti, suado, Bloom faz uma pausa, sob as brilhantes lâmpadas em arco. Ele desaparece. Numa momento ele reaparece e se apressa.)

BLOOM: Peixe e trapos. N.g. Ah!

(Ele desaparece dentro da Olhousen's, o açougue [de carne suína], sob o declinante porta-de-aço. Uns poucos momentos mais tarde ele emerge de sob a veneziana, arquejante Poldy, resfolegante Bloohoom. Em cada mão ele carrega um pacote um contendo uma tépida pata de porco, o outro, uma fria perna de carneiro, borrifada com pimenta inteira. Ele ofega, mantendo-se de pé. Então inclina-se para um lado, comprime um pacote contra a costela e geme.)

BLOOM: Pontada aqui do lado. Por que eu corri?

(Ele toma fôlego com cuidado e segue adiante lentamente rumo ao desvio junto ao lampião. O brilho salta novamente.)

BLOOM: O que é aquilo? Um relâmpago? Holofote.

(Ele para na esquina da Cormack's, observando.)

BLOOM: Aurora borealis ou uma fundição de aço? Ah, a brigada, claro. Em todo caso lá pros lados do sul. Grande brilho (6). Deveria ser a casa dele [Blaze, brilho = Blaze Boylan]. Moita de mendigo. Estamos salvos. (Ele cantarola mudamente com satisfação) Londres em chamas, Londres em chamas! Em chamas, em chamas! (7)(Ele tem a visão do estivador cambaleando através da multidão no lado mais afastado da rua Talbot) Eu o perdi. Corre. Rápido. Melhor atravessar aqui.

(Ele se apressa para cruzar a rua. Uns moleques gritam.)

OS MOLEQUES: Preste atenção, senhor! (Dois ciclistas, com iluminadas lanternas de papel oscilando, passam por ele, raspando, com as sinetas tagarelando.)

AS SINETAS: Ooooppaaaaaaltooooolaaaaá !

BLOOM: (Ele para erguido picado por um espasmo) Opa!

(Ele olha ao redor, apressa-se adiante subitamente. Através da névoa que sobe um dragão espalhador-de-areia, viajando com cuidado, cai pesadamente sobre ele, seu grande rubro farol piscando, seu vagão assobiando no fio. O condutor golpeia sua buzina. )



pp. 425-429(*)




trad. livre: Leonardo de Magalhaens




Referências


(1)Estagirita é o filósofo Aristóteles, pois nascido na cidade de Estagira
http://pt.wikipedia.org/wiki/Aristóteles


(2)O poema Belle Dame sans Merci de John Keats
http://www.bartleby.com/126/55.html


(3)O almirante Nelson que comandou a Marinha britânica durante as Guerras Napoleônicas
http://pt.wikipedia.org/wiki/Horatio_Nelson

(4)O primeiro-ministro britânico Gladstone
http://pt.wikipedia.org/wiki/William_Ewart_Gladstone

(5)O general Duque de Wellington – famoso na vitória em Waterloo
http://pt.wikipedia.org/wiki/Arthur_Wellesley,_1.º_Duque_de_Wellington

(6)Blaze Boylan é o amante de Molly, a esposa (in)fiel de Bloom.

(7)“Londres em chamas”, refere-se ao Grande Incêndio de 1666, e uma cantiga infantil (nursery rhymes).
http://pt.wikipedia.org/wiki/Grande_Incêndio_de_Londres


(*)O episódio 15 é composto de 107 páginas, todo no estilo teatro expressionista.


Links ULYSSES

episode 15 Circe

Wikisource
http://en.wikisource.org/wiki/Ulysses_(novel)/Chapter_15
.
Project Gutenberg
http://www.gutenberg.org/catalog/world/readfile?fk_files=853163&pageno=362

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Ulysess
http://en.wikipedia.org/wiki/Ulysses_(novel)
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LdeM

Um comentário:

  1. Ordem do Mérito Cultural - Tema de 2011 – Homenagem a Pagu, indique a Catitu

    Um sonho que virou realidade
    Há 11 anos aconteceu o encontro dos poetas Marco Llobus (Marco Antônio de Melo Rodrigues) e o poeta Ricardo Evangelista. Foi ali, no bar do Batista, que surgiu o sonho de levarem juntos a poesia pra todo canto da cidade e do mundo. Iniciando assim, um processo de ativismo cultural e artístico na região norte de Belo Horizonte (Vetor Norte - Pampulha, Venda Nova e região Norte).
    Esse encontro ocorreu na criação do Sarau de Poesias do Centro de Cultura Lagoa do Nado - Estação Permanente da Poesia - Criado por Waldelice de Souza (então servidora do centro de cultura Lagoa do Nado), participaram dessa construção os poetas Babilak Bah, Rogério Salgado, Evandro Nunes, Priscila Borges, Agnes Bibiane, Seu Ribeiro, Thiago Araujo, Jair Barbosa, Thibau, Hamilton Tom, Patrícia, Maroca, Sônia Stheling, Vinicius Carvalho, Gibran Müller e outros.
    Desde do ano de 2000, este grupo foi responsável pela criação e influienciou a geração de inúmeros saraus pela cidade de Belo Horizonte. Em 12 de abril de 2007 os poetas fundaram e organizaram juridicamente a Associação Rede Catitu Cultural, em conjunto com o ator e diretor Fernando Fabrini, historiador Daniel Silva Porto, Músico Célio Augusto Souza Pereira, Veterinário - homeopata e agente cultural Kolia Patrice, Agente Social Valéria Evangelista.
    Para saber mais sobre essa história acesse e indique a Catitu como personalidade do ano - categoria: Artes integradas, http://redecatitucultural.blogspot.com/2011/07/ordem-do-merito-cult...

    Obs.:Indicaçãa até dia 22/7/2011

    História contada por Ricardo Evangelista ( poeta, sociólogo, declamador, percussionista, gestor cultural, produtor do dueto Sarau Tropeiro e sócio fundador da REDE CATITU CULTURAL ).
    Desde já obrigado.

    Sarau Tropeiro
    http://sarautropeiro.blogspot.com
    faacebok.com/ricardoevangelista2
    twitter: @sarautropeiro

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