quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Ode a um Rouxinol (John Keats)




John Keats

Ode a um Rouxinol
Ode to a Nightingale

Meu coração dói, e um torpor aflige
Meus sentidos, como se ébrio de cicuta,
Ou sorvido algum vapor de ópio
Um minuto passou, e no Letes afunda: (1)
Não é inveja de teu fado feliz,
Mas feliz em tua felicidade -
Tu, lúcida-alada Dríade no bosque, (2)
Em tal melodiosa trama
De faia verde, e de sombras inúmeras,
Cantaste o Verão à plena garganta.
.
Ó fruto da vinha! Que repousas
Tanto tempo na profunda terra,
Degustar de flora e verdes campinas
Dança, canção provençal, e diversão,
Ó taça cheia do caloroso Sul,
Cheia de real e rubra Hippocrene, (3)
Com espuma cintilante até a borda
E a manchar a boca de púrpura,
Que beberei, e deixar o mundo não-visto,
E contigo sumir na floresta sombria:
.
Afaste, dissolva, e esqueças tudo
O que entre as folhas jamais conheceste,
O tédio, a febre, a irritação
Aqui, onde os homens em gemidos mútuos
Onde o torpor abala tristes cãs,
Onde os jovens pálidos, débeis, morrem,
Onde pensar é ser cheio de mágoas
E desespero no olhar;
Onde a Beleza perde o olhar lustroso,
Ou o Amor gasta-se no dia seguinte.
.
Para longe! Eu desejo voar contigo,
Não guiado por Baco, e seus convivas, (4)
Mas nas invisíveis asas da Poesia,
Mesmo que a mente se atrase confusa:
Estarei contigo! Suave é a noite!
E por sorte a Rainha-Lua no trono,
Cortejada por suas brilhantes Fadas;
Mas aqui lua não há
Salvo a brisa que desce do céu
Em penumbras e trilhas sinuosas.
.
Não posso ver flores aos meus pés,
Nem o incenso a flutuar sobre os ramos,
Mas, nas trevas suaves, aprecio cada um
Onde a bela estação oferece
A grama espessa, e a árvore silvestre;
O espinheiro-branco, e a flor pastoral;
Violetas a murcharem sob as folhas,
E o broto de plena Primavera,
O almíscar-rosa, de vilho orvalhado,
O zumbir de moscas em tardes de Verão.
.
Sombrio eu ouço; e por muito tempo
Meio atraído pela suave morte,
A chamei com nomes doces nas rimas,
Para arrebatar meu fôlego calmo;
Pois parece proveitoso morrer,
À noite, cessar tudo sem dor alguma,
Enquanto derramas toda a tua alma
Em semelhante êxtase!
Cantarias ainda, em vão, meus ouvidos
Ao teu nobre requiém viraram relva.
.
Não nasceste para morrer, ave eterna!
Gerações ávidas não te derrubam;
Ouço nesta noite a voz já ouvida
Outrora por imperador e curinga;
Talvez a mesma melodia na trilha
Ao triste coração de Rute, saudosa, (5)
Ansiava o lar, em pranto, no exílio;
O mesmo a encantar outrora
Mágicas janelas, abertas à espuma
De mares bravios, em terras lendárias.
.
Desolado! as palavras ressoam
A levar-me de ti à minha solidão!
Adeus! A fantasia não ilude
Como dizem, ela, a falsa ninfa.
Adeus! Adeus! Teu queixoso hino finda
Além das campinas, além dos riachos,
Além das colinas, já sepulto
Nas clareiras do vale próximo;
Foi uma visão, ou um devaneio?
Foi-se a melodia: - acordei ou durmo?
.
ago/10
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(1)Lethe/Lete é o rio do esquecimento, que atravessa o Hades, na
Mitologia grega.
(2)Dríade é um entidade da mitiologia grega, uma espécie de ninfa que
habitava a essência das árvores do bosques intocados.
(3)Na mitologia grega, Hipocrene é uma fonte mística no Monte Helicon,
consagrada às Musas. A fonte nasceu de um coice do cavalo-alado
Pegasus.
(4)Baco é o nome do deus do vinho e do êxtase na mitologia romana,
o Dionísio da mitologia grega.
(5)Rute é uma moabita, mas heroína da tradição judaica, ao se
tornar ancestral do Rei Davi. Simboliza aquela que vive em terra
estrangeira, e faz novos 'laços de amizade' com a nova pátria.
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sábado, 21 de agosto de 2010

Ode a uma Urna Grega - John KEATS




John Keats

Ode a uma Urna Grega
Ode on a Grecian Urn

I

Tu, ainda intacta noiva da quietude
Tu, filha adotada do silêncio e da demora
Historiadora selvagem, que podes então expressar
Uma estória florida mais suave que nossa rima:
Que legenda folheada assusta tua forma
De deuses ou mortais, ou de ambos,
no Tempo ou os vales da Arcádia ?
Que homens ou deuses são estes? Que donzelas inertes ?
Que louca caçada ? Que luta para escapar ?
Que flautas e tamborins? Que êxtase selvagem ?
.

II

Melodias ouvidas são suaves, mas as não ouvidas
São mais suaves; assim, tocai as melódicas flautas;
Não ao ouvido sensual, porém, mais queridas,
Flauta ao espírito, cantigas sem tom:
Bela juventude, sob as árvores, não podeis deixar
Tua canção, nem podem as árvores desfolhadas;
Amante audaz, nunca, nunca, podeis beijar,
Embora alcançando o alvo – ainda não lamente;
Ela não mingua, embora não tenhas teu gozo,
Para sempre desejas amar, e ela será bela!
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III

Ah felizes, felizes ramos! Que não podeis soltar
Vossas folhas, nem mesmo a Primavera dizer adieu;
E, feliz melodista, incansável,
Para sempre tocando canções sempre novas;
Felicíssimo amor! Mui feliz, feliz amor!
Para sempre quente e ainda para gozar,
Para sempre arfante, e para sempre jovem;
Toda ofegante paixão humana elevada,
Que deixa um peito magoado e pesaroso,
Uma fronte ardente, e uma língua árida.
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IV

Quem são estes chegando ao sacrifício ?
Ao verde altar, ó misterioso sacerdote,
Trazes esta novilha a mugir aos céus,
E os quadris vestidos com grinaldas ?
Que aldeia à beira-rio ou beira-mar,
Ou pacífica fortaleza erguida no monte,
Está vazia de pessoas, nesta piedosa manhã ?
E, aldeia, tuas ruas para sempre
Serão silentes; e não uma alma a dizer
Porque estás desolada, poderá voltar.
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V

Ó forma grega! Formoso gesto! Com crias
De mármore homens e donzelas feitos,
Com ramos da floreta e ervas amassadas;
Tu, forma silente, deixa-nos fora da razão
Como faz a eternidade: Fria Pastoral !
Quando a velhice a esta geração destruir,
Permanecerás, em meio a pesares além
Dos nossos, uma amiga ao homem, a quem dizes,
Beleza é verdade, verdade é beleza, - eis tudo
O que sabeis aqui, e tudo o que precisais saber.

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sábado, 14 de agosto de 2010

Rimas Gerais das Minas





Rimas Gerais das Minas

ao poeta tropeiro Ricardo Evangelista

Empoeiradas estradas, de rubra terra
Pisada pelas muitas tropas rumo à serra

Onde flutua a neblina entre os ramos
Das encurvadas árvores que deixamos

Ao subirmos do vale ao arraial nascente
E que na busca do ouro encheu-se de gente:

“Tudo o que temos extraímos das lavras
Por isso na lida somos de pouca palavra,

Por desconfiança somos gente quieta
- Vertemos em suor tudo o que nos afeta;

O hoje viver, e não o amanhã em aberto,
No agitar das bateias o fado é incerto.”

Mas segue numa tropa mil mercadorias,
Junto aos muares de mascates tantos dias:

“Quem julga só de brilho viver, não cultiva,
Sem nossas carroças de grãos não há quem viva,

Daí em caravanas cruzamos os sertões
P'ra nas vilas poder alimentar os peões,

Dizem que levamos o ouro que extraem na lida,
Mas não é o preço p'ra se arriscar na vida?”

O bandeirante não suporta o luso falar,
E em nativo põe-se logo a confabular:

“Das Gerais os Emboabas devem sumir
Que as Minas são nossas enquanto existir;

Por ventura trilhamos as tantas pedreiras,
Ferindo nossos pés desnudos nas ladeiras,

Para tudo aos de botas grosseiras entregar,
Aos forasteiros que só querem nos expulsar?”

Meio ao pó, que da estrada sobe, podemos ver
As tropas nas vilas o comércio abastecer,

E nas vendas os peões facas afiando
E muitas senhoras, nos casarões, rezando:

O conflito na terra onde é preto o ouro
e quando rubro se torna é mau agouro!
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sábado, 7 de agosto de 2010

Que importa o poema? (VFC)




VINICIUS FERNANDES CARDOSO


ANOMIA "(...) O mundo nunca esteve tão certo de cabeça para baixo."
{Do livro Situacionista, teoria e prática revolucionária.
São Paulo: Conrad Livros, 2002}.

Que importa o poema / se o pânico assoma?
Que importa a pena / se a mão nada cria?
Que importa a página / sem quem a leia?
Que importa a saudade / se não há amada?
Que importa a confidência / se não há amigo?
Que importa o Eu, / se não cabe em si mesmo?
Que importa a família / se parece polícia?
Que importa a igreja / se não for sagrada?
Que importa a Bíblia / se o padre interpreta?
Que importa o pastor / se cobra pelo show?

Que importa o desejo / se será recalcado?
Que importa o médico / se só receita remédio?
Que importa a verdade/ se não pode ser dita?
Que importa o governo / sem legitimidade?
Que importa o povo/ sem identidade?
Que importa a política / se expressão de poder?
Que importa a decisão / se vinda de poucos?
Que importa a crítica / sem critério? superficial?
Que importa a crítica / se assimilada pelo sistema?
Que importa contestar / sem nada propor?
Que importa a cidade / sem cidadãos, só idiotas?
Que importa a revolução /a caminho da decadência?
Para trás ou para frente.
Destino sem meio-termo.
Da Grécia à Idade Média.
Caminhamos para trás?
A História se repete?
Que temer o império / sendo tigre de papel?
Que importa a mudança / se não for mundial?
Que importa a revolução / se não for permanente?
Que importa a revolução / se vitoriosa, for traída?
Que importa o socialismo / se não for universal?
Que importa o socialismo / sem democracia direta?
Que importa a libertação / se não for radical?
Que importa mudar / se for para manter?
Boa via a Reforma?
Mudança de cima para baixo?
Antes a via pacífica?
Que importa a reflexão/ se assistem televisão?
Que importa a razão / se apenas instrumental?
Que importa a teoria / se não ilumina? total?
Que importa a prática / sem orientação teórica?
Que importa o gesto / se globalizam a ação?
Que importa a diferença / se sinônimo de variação?
Que importa o intelecto / se cheio de estereótipos?
Que importa a democracia / se todos pensam igual?
Que importa a opinião / se politicamente correta?
Que importa o corpo / se estética sem saúde?
Que importa a beleza / se pura padronização?
Que importa o Ocidente / de costas para o Oriente?
Que importa o Outro / se um nome virtual?
Que importa as pessoas / se interagem na internet?
Que importa a pergunta / se aceitam sem crítica?
Que importa pensar / sem direito à errar?
Que importa a consciência / sem direito à incoerência?
Que importa estudar / se para tirar nota?
Que importa o cotidiano / se banal, sem encanto?
Que importa o sagrado / se asfaltam o floresta?
Que importa o natural / se cimentam o quintal?
Que importa o animal / se não for nosso irmão?
Que importa o furacão / se expressão natural?
Que importa a palavra / se limita o pensar?
Que importa a imagem / se limita o olhar?
Que importam as idéias / se não transcendem?
Que importa o pensamento / se não for original?
Que importa a obra / sem criatividade?
Que importa a técnica / sem haver expressão?
Que importa a criação / se não segue a intuição?
Que importa o programa / se apenas paliativo?
Que importa o pacote / se privilegia poucos?
Que importa os juros / se isso nada diz?
Que importa superávit / se para pagar dívida?
Que importa o imposto / sem voltar em benefício?
Que importa o concurso / se mais um caça-níquel?
Que importa o referendo / se é conversa fiada?
Que importa o país / se parte dum sistema?
Que importa a nação / se uma encenação?
Que importa o projeto / se não for nacional?
Que importa a burguesia / se atravanca a evolução?
Que importa o proletariado / se ignora o desempregado?
Que importa o Estado / se ditadura de classe?
Que importa o sindicado / se só reivindica salário?
Que importa a O.N.G / se não dá para comer?
Que importa criar fundo / se o mundo já afundou?
Que importa o social / se só pensam em si?
Que importa o jornal / se nunca imparcial?
Que importa a imprensa / se mais uma empresa?
Que importa o petróleo / se mais um monopólio?
Que importa o mercado / sem haver competição?
Que importa a sociedade / se ainda de classe?
Que importa a sociedade / se ainda hierárquica?
Que importa o policial / se espanca o irmão?
Que importa o soldado / se torna-se um sádico?
Que importa o gesto / se engessado, repetido?
Que importa o pobre / se vota no patrão?
Que importa o rico / se só no condomínio?
Que importa o cristão / se peca por omissão?
Que importa moral / se virar moralismo?
Que importa o exemplo / se o esperto aproveita?
Que importa ser bom / se lhe fazem de bobo?
Que importa a pessoa / sem personalidade?
Que importa o herói / sem nenhum caráter?
Que importa o sexo / sem sexualidade?
Que importa o amor / se um dia acaba?
Que importa o cômodo / se serve para dividir?
Que importa o muro / se serve para separar?
Que importa a porta / se serve para fechar?
Há liberdade?Há igualdade?Há fraternidade?
Que importa o parque / fechado quando posso?
Que importa a praça / escura e esvaziada?
Que importa a boca / se só diz Não?
Que importa a música / se não toca na rádio?
Que importa o sábado / se não tem mais embalos?
Que importa a festa / se acaba cedo?
Que importa o bar / se não vai até tarde?
Que importa a vitrine / se não posso tocar?
Que importa o produto / se não posso comprar?
Que importa a partida / se o time joga mal?
Que importa a seleção / se seleção de vaidades?
Que importa o esporte / se mais uma commodity?
Que importa a declamação / se não prestam atenção?
Que importa o artista / se ninguém valoriza?
Que importa a vida / se só sobrevivência?
Que importa o suicídio / se consideram crime?
Que importa a eutanásia / sem psicologia para tal?
Que importa o funeral / se fica caro o caixão?
Que importa as leis / se não são para todos?
Que importa as instituições / se não funcionam?
Que importa as eleições / se são farsas festivas?
Que importa o século 21 / se é apenas mais um?
Que importa o tempo / se relógio, não interior?
Que importa deus /se for um juiz?
Que importa rezar / se sempre para pedir?
Que importa ser adulto / se cá dentro o menino?
Que importa conhecer / sem oferecer redenção?
Que importa a lucidez / senão ápice da loucura?
Que importa transcender / se não for na imanência?
Que importa a ciência / se não for mística?
Que importa o poema / se não for sem fim?
Que importa escrever / se exigem beletrismo?
Que importa a literatura / se só tinta e papel?
Que importa o autor / se não for todos nós?
Que importa tentar / se não for até o fim?
Que importa o fim / sem ao menos tentar?
Que importa caminhos / se há de se escolher?
Que difícil escolher / tendo que renunciar.
...

Dialética, constante. Humildade, sempre.


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Vinicius Fernandes Cardoso
poeta e sociólogo de Contagem/ MG
http://www.academiacontagensedeletras.webs.com/
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domingo, 1 de agosto de 2010

"É proibido comer a grama" de Wander Piroli




sobre “É proibido comer a grama” (2006)
contos de Wander Piroli (1931-2008)

A Literatura enquanto anti-ajuda


A Arte enquanto mercadoria tem dominado no curto século 20,
com suas vanguardas e seus quadros valiosos, seus gênios e
loucos, seus mecenas e marchands, produzindo para mostrar,
mostrando para vender, vendendo para lucrar. Vejam Van Gogh
que, em vida, vendeu apenas um quadro, enquanto praticamente
morria de fome, e depois os quadros do holandês atingem
preços milionários!

Com a Literatura não poderia ser diferente. Ao lado de escritores
preocupados com a arte literária, os textos, a linguagem, os
enredos, assim os mestres Kafka, Proust, Mann, J Joyce, dentre
outros, haviam também os que escreviam atentos a demanda, ao
público de leitores em potencial. O mercado exigia 'pluralidade'
e também 'entretenimento' , o que atraiu a dedicação de escritores
donos de uma escrita fácil, lúdica, envolvente, com ênfase mais
no Enredo do que na Linguagem.

Ao longo das últimas décadas (desde os anos 60 e 70) o fenômeno
dos best-sellers, os mais vendidos, já é comum para o mercado
consumidor de Literatura. São aqueles autores que escrevem
bem – e recebem merecida atenção. Ou são os escritores que
escrevem o que os grupos populares querem ler (ou somente
conseguem ler, por deficiência educacional ou por lavagem
cerebral feita pela Indústria Cultural via dominância midiática)
e assim já 'conquistam' uma ampla fatia do mercado (além de
críticos já especializados em 'nichos culturais', crítica dita
especializada, em jornais, revistas e tablóides)

Outros autores ficam no meio termo: são eruditos e são populares;
são artistas e também políticos; sabem conciliar o útil com o
agradável. (No Brasil, podemos citar: Érico Veríssimo, Jorge Amado,
Fernando Sabino, Nelson Rodrigues, Dias Gomes, Chico Buarque...)
São adaptados em minisséries 'globais', são indicados para leitura
em vestibulares. São entretenimento, mas sem apelos comerciais,
ou voltados para o que é 'vendável'.

Mas os vendáveis, estes sim: já pensam como 'agradar' o leitor.
Fazer o leitor se sentir o máximo, esquecer os problemas pessoais
e sociais, anestesiar as indagações já dispondo respostas prontas.
Assim são as literatura de fantasia (bruxinhos e dragões, aliens
e vampiros, etc), de mistério ou policiais (desde Agatha Christie
e Georges Simenon até um Dan Brown), de erotismo (inúmeros
exemplos), de auto-ajuda (todo um segmento que se ampliou
monstruosamente! ), de espitualismo (com a decadência da
Religião o que não faltam são os religiosos de inúmeras seitas
e credos e crenças e superstições)

Pois bem, enquanto existe hoje a glamourosa e rentável literatura
de auto-ajuda, o fato é que sempre existiu aquela de anti-ajuda.
Aquela escrita que esmaga, sufoca, oprime o Leitor até que este
também realize uma Catarse, ao lado do Autor. Uma Escrita que
faz perguntas e não responde; faz insinuações e não explicita;
faz ameaças e nunca nos elimina de verdade. Onde não há final
feliz, onde o Mal sempre impera, onde o Caos zomba da Ordem,
onde o mocinho nunca vence (pelo menos, ao lado da mocinha).

Assim, enquanto anti-ajuda, é a obra do mineiro, belorizontino
(ali do boêmio bairro Lagoinha ) Wander Piroli, jornalista e escritor,
recém-falecido. Seus contos são narrações ao estilo jornalístico,
a lembrar aqueles tablóides ensanguentados vendidos a poucos
centavos nos semáforos. A lembrar a pressa de um Hemingway,
e a tragicidade de um Nelson Rodrigues. Uma escrita sem frescuras,
apresentando o fato desnudo, que devemos engolir cru e à seco.
O Leitor se angustia justamente pela arte não 'artística', pelo frio
tiquetaquear das teclas de uma velha Remington.

Nos contos de “É proibido comer a grama”, temos as faces
da miséria humana. Tema muito destilado em Dostoiévski (para
ficarmos no clássico), onde a miséria é fértil em gerar outras
misérias, onde penúrias geram indignidades, que geram crimes.
Mas ao contrário do escritor russo (a tecer digressões, afundando
as personagens na lama, pouco a pouco, em redemoinhos de
filosofia e psicologia), o autor mineiro se satisfaz em apresentar
o fato em manchete, o fato jornalístico, a violência que já é banal.
A morte descrita com precisão de médico-legista. (Até quando
é apenas sugerida, a morte – ou a violência que a antecede –
está assustadoramente presente, nas entrelinhas)

São narrativas curtas, centradas em poucas personagens, dramas
banais, porém demasiado humanos. Com as exceções de quatro
contos longos, o do Professor Thales, o do taxista Fernandes (e o
defunto), o do homem sério que se envolve com uma prostituta,
e do Coronel Rosendo, que lembra um pouco a 'ambiência' de
O Coronel e o Lobisomem”, de José Cândido de Carvalho
(que em se tratando de romance tem outra linguagem, enredo, etc),
os textos ferem nossa sensibilidade de 'beleza' e 'harmonia',
nossas crença na 'bondade humana', no 'homem cordial' e
no 'pacato cidadão'.

Com o predomínio da 3a pessoa, um narrador muito direto, pouco
espaço deixando aos devaneios das personagens (mais
característicos na escrita da Clarice Lispector), onde a Miséria
(quase corporificada! ) é personagem coadjuvante (e quase
protagonista! ) em todos. Aqui encontramos relatos de assaltos,
estupros, antipatias e assassinatos, acidentes, brigas em bar,
adultérios e tragédias consequentes. Tudo aquilo para golpear
o Leitor acostumado a leitura de tablóides de 25 centavos.

Então qual o diferencial: justamente esta Ironia com a Escrita!
Sem idealizar, sem emoldurar, sem divagar, sem 'encher lingüiça',
o Autor continua a empurrar os vomitórios goelas adentro; a
arrastar uma enxurrada de detritos desumanizados, os mesmos
que enchem as nossas ruas e praças. Culpa das vítimas? Não,
mas de um sistema que precisa reproduzir a miséria para garantir
o lucro de uns poucos privilegiados! Onde uns se entopem de
comidas sofisticadas e outros sentam no meio-fio para devorarem um
marmitex frio.

A miséria não dá tréguas. Assim notamos na literatura de Graciliano
Ramos ("Vidas Secas" é o relato trágico onde o humano se animaliza),
de Nelson Rodrigues ("Beijo no Asfalto" é a tragicomédia da alienação
urbana), de Rubem Fonseca ("Agosto" mostra o histórico e o trágico
lado a lado), onde a Escrita apresenta sem floreios a vida nua e crua
dos seres explorados e vitimados, dos 'humilhados e ofendidos'
(novamente Dostoiévski), para nossa edificação e catarse. Para
vomitarmos e escarrarmos na miséria do próximo – e no dia seguinte
pensarmos: antes ele(a)s do que Eu??

Quando as personagens individualizam problemas que são coletivos
(a miséria passa a ser culpa da vítima!) percebemos o grau de
alienação política (e existencial) que afetam nossos cidadãos
despolitizados, explorados pelas ânsias de lucro burro, dopados pelos
programas televisivos, com suas caixas cranianas agitadas pelo
tremor dos ônibus suburbanos. Assistimos aos dramas alheios
como filmes de Hollywood, distantes e plenos de efeitos especiais –
um espetáculo – e nada mais. O mendigo ali na esquina é um bom ator,
e nada mais. O senador corrupto também interpreta uma personagem:
a de senador honesto. Assim somo todos bons 'atores sociais'
(quem quiser pode ler Durkheim, Weber, Benjamin, Touraine
e Peter Berger)

Transitando nos bordéis da Guaicurus, ou nas ruas escuras da
Lagoinha, ou nas avenidas centrais, assaltados e violentados,
perseguidos e aprisionados, somos iguais às personagens, sozinhas
e coisificadas em seus dramas, pequenas tragédias cotidianas, em
mal-entendidos que terminam em poças de sangue e gritos de horror.
Belo Horizonte, para Wander Piroli, é igual a uma 'selva de pedra',
com tigres e onças rasgando a carne macia das ovelhas, ou
rinocerontes turbinados esmagando formigas aleijadas.
É o “salve-se quem puder!” da vida urbana.

Enquanto sobra por aí a dita 'literatura de auto-ajuda', a coletânea
de contos “É proibido comer a grama” de Wander Piroli, é a
literatura de anti-ajuda, de des-ajuda.
Não vem adular ou encantar o Leitor ávido de leitura fácil.
Não vem anestesiar o cidadão nem ignorar os dramas
sociais, não vem responder nem propor soluções. Vem desmascarar,
abrir as feridas, vomitar sobre os plebeus, ironizar os burgueses,
humilhar a dita Ordem que as autoridades, em vão, proclamam.
Ordem que somente poderá existir quando os cidadãos, plenamente
socializados, compartilharem suas riquezas, e quando, plenamente
politizados, assumirem o controle sobre as suas próprias vidas.


Ago/09
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