domingo, 18 de julho de 2010

sobre Trapecio / Trapézio de Noé Zayas




Sobre a obra Trapecio/ Trapézio
do escritor Noé Zayas (República Dominicana, 1969-)
(Ediciones Angeles de Fierro/ Anome Livros)
(tradução: Cristiane Grando)

Literatura enquanto denúncia da miséria humana

Quando se pensa nas funções da Literatura, as sociais e as individuais, quando se permite pensar a Escrita enquanto algo-além-do-texto, surge a questão do Testemunho, da Denúncia, de uma voz a declamar e desabafar, mobilizando e trans-formando os Leitores.

A Escrita pode surgir como um testemunho das misérias do Autor ou do Mundo do Autor, de uma realidade dentro e também fora. Uma tragédia a ser denunciada, um mundo que exige mudança e reforma. O Autor aponta (e ironiza) o erro, o ridículo do erro, no propósito de denunciar e superar – restabelecer o equilíbrio. (Senão, então, por que escreveria? Para re-afirmar o Erro? Mas aí não seria um 'erro' para o Autor...)

Mas a Escrita não é apenas Panfleto. Possui um Texto tecido de Linguagens, visa emocionar e informar, causar náusea ou prazer. Tendo um Enredo – com características estilísticas - para dizer algo, apresenta-se como um deus-de-duas-faces: o texto e o contexto. O que diz de si-mesma e o que diz dos outros e para os outros. Em resumo: Enredo/Forma, Estilo/Conteúdo.

A obra Trapecio/ Trapézio (contos? poema em prosa?) do escritor Noé Zayas mostram bem o dilema da Escrita diante da miséria humana: estetizar ou denunciar? Ser arte ou panfleto? Como conciliar ambas das perspectivas?

Encontramos as personagens todas suspensas no circo social, umas e outras se equilibram em acrobacias e saltos mortais, neste desfile de desgraça humanas, neste 'vale de lágrimas', onde se debatem todas em loucura, violências, homicídios, homofobia, traição, indignidades.

Todos os dramas carregados de humanidade e lágrimas, mas retratados (logo intermediados) pela Linguagem. A Escrita alivia ou dramatiza ainda mais? O Autor é mero observador? Um simples médium? Ou sofre junto, tem com-paixão, com as personagens?

No gênero literário pode-se definir como conto, mas a Linguagem é de poema em prosa (o que lembra muito os textos de Baudelaire), com narrativas curtas, concentradas, com algum 'realismo mágico', com o Narrador, em busca de cumplicidade, se dirigindo ao Leitor.

Ou então, interpela a Personagem, confunde a mesma com a Voz narrativa (a causa a leve impressão de ser em 1a pessoa...), apresenta com ironia lírica as imagens da decadência. Contos curtíssimos que não poupam o Leitor das nuances da indignidade, enquanto 'aquela espiadinha' revela o voyeur em potencial. Ver a desgraça alheia é entretenimento?

Um parágrafo basta – se é que é um conto – quando a impressão da miséria é mais do que o suficiente - “La perspectiva del sueño em la realidade inconstante” - “No era un sueño, ni uma alucinación, ni un extravío de la mente. Era, indudablemente, su cuerpo lacerado; uno que otros perros ladrándole a él, no a su cuerpo, y el ruido de un vehículo que huía.”

Na tradução (correta e direta) de Cristiane Grando: “Não era um sonho, nem uma alucinação, nem um deambular da mente. Era, indiscutivelmente, seu corpo lacerado; um ou outro cachorro ladrando para ele, não para o seu corpo, e o ruído de um veículo que fugia.”

Onde o Leitor precisa imaginar – recompor – o restante. Alguém caído ao asfalto, atropelado (¿propositalmente?), a ver a vida se esvair no 'corpo lacerado'.

Assim, o Autor espera a atenção e a imaginação do Leitor. Não entrega o serviço pronto, não facilita. Dicas e sugestões são a matéria-prima. Digressões, alucinações. Tudo para narrar as nuances da degradação. A violência policial, a pobreza das favelas, a infidelidade e a crise familiar, os abusos sexuais, o aprendizado da violência através da violência, o suicídio, o psicótico que assassina o psiquiatra, o êxodo rural, a desigualdade gerando violência, a visão irônica do milagre, a arte mumificando a realidade, os pecados nossos de cada dia.

Assim, cada conto (ou poema em prosa) é um golpe, uma navalhada a mais, na face do leitor que busca entretenimento, que espera algo 'de alto astral' para adormecer ou levantar com pé direito. (Quando li Trapecio pela primeira vez, ousado que sou, tive pesadelos, até ser obrigado a desistir. Um mês depois, eis que reanimado...) Aqui, Noé Zayas não vem apresentar literatura fácil ou de auto-ajuda, para insones e depressivos do cotidiano. É contra-indicado para pessimistas crônicos. (Nem sei porque fui insistir em ler...)

Alguns contos possuem tinturas kafkanianas, algo de sombrio, a lembrar o lúgubre E. A. Poe, algo se surreal, a lembrar o nosso Murilo Rubião, como é o exemplo de “El sonãdor/ O Sonhador”, onde inquieto por sonhos recorrentes, relativos a própria morte, o cidadão, no entanto, segue seguro, pois julga tudo um sonho, nada mais que um sonho. Mero engano: de repente, a tragédia onírica é apenas a ante-câmara da tragédia real. O Autor reduz ao essencial, deixa de lado toda compaixão. Descreve como se fosse um jornalista. Sequer faz a gentileza de nomear o protagonista. Trata-se de um homem anônimo, outro qualquer nas multidões. No final, sabemos que algo medonho será ruminado em nossa imaginação.

Naquela manhã despertou do sonho em que era apunhalado por sua esposa, para imediatamente reconhecer o homem que, dirigindo-se até ele, descarregava o revólver em seu peito. Não se surpreendeu, como não o surpreendia nenhum dos sonhos em que constantemente morria em mãos de algo ou de alguém. Foi nessa mesma manhã, a caminho do trabalho, quando cruzava a avenida Liberdade que viu, sem dúvida que viu, aquele Mercedes Benz rosado que se dirigia até ele. Por um breve instante o atormentou a dúvida, mas essa se dissipou com a consciência de que isso era apenas outro de seus sonhos e seguiu caminhando; desta vez tudo foi diferente.” (trad. Cristiane Grando)

Se o objetivo do Autor é nos assustar com seus pesadelos íntimos e seus recortes sangrentos da realidade, então obteve sucesso. Nada aqui é gratuito, tudo aqui tem seu preço. E custa caro. Depois do terceiro título, já passamos a temer pela Personagem, a esperar o pior. Ninguém se salva, todos caem dos trapézio, todos caem sem qualquer rede para aliviar a queda. E o chão é duro e fatal.

Se o propósito do Autor é conquistar nossa compaixão de Leitores, no sentido de sofrermos junto com os protagonistas e figurantes em miséria, pouco consegue. Ou o trivial: a miséria ama companhia. Ou: antes ele do que eu. Ou ainda: desde que não aconteça comigo! Nós, os Leitores, somos observadores do alheio, das vidas alheias, somos corvos empoleirados nos bustos de Palas, a se deliciar com o horror. (Afinal, Poe não é um sucesso? O Marquês de Sade não é um sucesso?) A miséria alheia (ainda mais de protagonistas, mocinhos e mocinhas, vilões, figurantes...) não desperta nossa compaixão, mas nosso desprezo. Jogamos uma moedinha para o mendigo e viramos a face – caso contrário, há o perigo de cuspirmos imediatamente na miséria.

Set/09
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