Sobre “Reversión” (Anome / Tropofonia / 2010)
poemas de Javier Galarza (Argentina)
Diante da Seriedade da Poesia
A Recepção
Em épocas de ironias e auto-ironias, quando a Expressão Poética serve aos imperativos da fugacidade, da futilidade e do entretenimento, encontramos afortunadamente uma Voz dissonante que procura lembrar a Seriedade do fazer poético.
Encontramos nos poetas de língua hispânica uma seriedade que vem a faltar nos poetas de outras línguas – principalmente inglês, francês e alemão – depois das revoltas de 1968. A Poesia tornou-se auto-referente e irônica. Nada é levado mais à sério. A futilidade tomou conta em nome da 'liberdade de expressão' e da 'tolerância' diante da 'pluralidade'.
A auto-referência da Poesia (falar de si mesma) é na verdade um esvaziamento do discurso. A queda das ideologias e a sutilidade da hegemonia, o império do Capital e a idolatria do Mercado, tudo podem seduzir e contaminar (“qual é o teu preço?”) no rodízio de consumo de mercadorias e serviços, onde a Poesia é mais um item no catálogo.
Assim, é essencial o surgimento de Poetas que venham renovar o próprio processo de fazer poesia – não somente estética, mas a recepção. (Importante: entre a estética e a recepção há algo fundamental: a divulgação. Publicar, distribuir, vender. Mas aí o Poeta improvisa: cópia em mimiógrafo, cópia em xerox. Ou impressão doméstica e distribuição mão a mão.)
Continuando: a estética se realiza na Escrita, e a recepção na Leitura. A Linguagem que sofrerá a interpretação (co-enunciação) na simbiose Autor-Leitor. Deste diálogo teremos a recepção – como o Leitor 'se apoderou' da Obra do Autor, e passa a re-criar a Obra no processo de ler. Aqui a Linguagem é fundamental. E a Linguagem poética é construída de palavras de um dado idioma (ou um mosaico de idiomas, se lembramos de “Finnegans Wake”...)
A Língua de Reversión
A solenidade do español, a nobreza da fala castellana, é perceptível pela tonalidade fonética, pela fluidez das palavras, pela densidade discursiva, com as características que tornam a língua hispânica uma singularidade. Nenhuma língua é igual a outra. Todo conjunto de sons e significados – fonética e semântica – de um idioma o 'individualiza' perante os demais. Mesmo quando ocorrem níveis de 'dialetização' – dialetos internos ou próximos. Assim o español próximo ao catalão, ou o português em relação ao galego.
Por mais que português e español se aproximem, sempre haverá distanciamentos. Se o português é plástico – isto é, entendemos bem, mesmo quando se fala 'errado' – se o alemão é formal e até áspero; se o italiano é melódico e até lírico; se o inglês é bárbaro; se o francês é elegante; se o russo soa épico, pungente; o español soa nobre, solene, denso. Um poeta em español deve se levar à sério mesmo quando ironiza, pois deixa uma amargura nas entrelinhas, na própria seleção das palavras.
Mesmo a figura cômica de Don Quixote é triste – 'cavaleiro da triste figura' – com toda uma profunda tristeza de ousar ser o 'protetor' dos humilhados e ofendidos (imagem de Dostoiévski), ao assumir seu delírio de cavaleiro andante. A comédia espanhola tem algo de angustiante, não é cômica ou satírica ao nível da inglesa ou norte-americana. Há algo de doloroso.
A seriedade da Poesia em español reflete a peculariedade da Língua? Digamos, a seriedade ou nobreza da poesia de Octavio Paz ou Gabriela Mistral, quando ousam um resgate da 'fala primordial' (O Paz) ou da 'voz lírica' (G Mistral). São poetas que falam seriamente, tematizam problemas humanos, e não se destacam por jogos de palavras ou sátira. São poetas que dialogam com o leitor e se fazem respeitar.
O Poeta enquanto Leitor
Em “Reversión”, do poeta argentino Javier Galarza, encontramos esta seriedade. Um intercâmbio com o leitor, numa relação de confidências, construída com respeito. Mas o Autor solicita o mesmo nível de profundidade ou de sutileza por parte do Leitor.
Galarza é Poeta Leitor para outros Poetas Leitores. Toda uma Poética impregnada de leituras – e digestão de leituras. A realizar a antropofagia (no bom sentido dado por Oswald de Andrade) dos Clássicos . A dizer em relação aos Clássicos – e assim re-posicionar o que seja 'clássico'. Característica que encontramos num argentino – Borges – e num italiano – Calvino – que demasiadamente Leitores se arriscam a ser Escritores. Sofrem terrivelmente aquela “síndrome [ou angústia] da influência”, diagnosticada pelo scholar Harold Bloom.
As palavras nos poemas de Galarza estão impregnadas pela Alteridade, pela Intertextualidade, pelo Dialogismo. Quando o Poeta escreve 'desamparo' já pensamos em Freud; quando escreve 'poemas mínimos' lembramos de Emily Dickinson e Paul Celan, quando usa 'imagens mitológicas', lembramos de Hölderlin, Novalis; quando ele escreve em caracteres minúsculos lembramos de e. e. cummings.
As vastas e diversas leituras do Poeta recriam na Escrita o experimento da Leitura. Clássicos espanhóis lado a lado com poetas chineses da Dinastia Tang. Ou Poeta italiano ao lado de Psicanalista francês. Ou Filósofo grego pré-socrático e Poeta de fala alemã nascido em Praga. Tudo dialoga num mosaico de referências que a partir da Leitura desembocam na Escrita.
Assim, podemos dizer que os poemas de Galarza se equilibram numa fina lâmina entre o dentro e o fora, entre o intrínseco e o mundo exterior, entre o que o poema é em si mesmo e o que o poema é enquanto leitura/reescrita de outro poema. Precisamos de uma leitura centrípeta e também de uma centrífuga (para citarmos N. Frye), ou seja, ora do texto, ora do texto para o mundo.
A vertigem de imagens possibilita este equilíbrio. Pode soar como paradoxo, mas é sério. As imagens estão no Texto e estão no Mundo. Estão DENTRO do poema e estão na Tradição. As imagens que são mitológicas, tanto quanto representativas. A identidade é simbolizada em Narciso; o abandono em Eurídice, a enamoramento em Eco; todos a reevocarem imagens primordiais, ditas 'arquetípicas', da condição humana.
Sendo as imagens 'humanas, demasiadamente humanas' (para citarmos Nietzsche) não podem existir independemente da emoção. A imagem se explica por si mesma (aqui, O. Paz) e dispensa paráfrases.
guarnecer un secreto. guardado y resguardarlo. manternerlo
como un sussurro en la mansión del silencio.
(guarnecer um segredo. guardá-lo e resguardá-lo. mantê-lo
como um sussurro na mansão do silêncio.)
ou
ventanas húmedas permeables al anuncio de tormentas
el Todo es la dicción pura de uma interioridad
(janelas úmidas permeáveis ao anúncio de tormentas
o Todo é a dicção pura de uma interioridade)
As imagens DENTRO do poema são belas, visto inexplicáveis. São sentidas (de modo sinestésico) e não apreendidas pelo intelecto (usado apenas para 'decodificar' o idioma, a ligação gramatical, a semântica). Mas estão FORA do poema quando tecem referências aos temas mitológicos, filosóficos, psicanalistas, culturais. É um rede que envolve o Leitor que não lê um poema – mas um elo de corrente.
Sem conhecer o drama de Eurídice como sentir todo o peso trágico de “
Monólogo de Eurídice”? Quem é /foi Eurídice? A Wikipédia que nos socorra! (
http://es.wikipedia.org/wiki/Eurídice ) Enamorado pela ninfa Eurídice, o grande músico Orpheu (aquele mesmo destinatário dos sonetos de R M Rilke) desce aos Infernos para resgatar a amada – encantando todos os grotescos seres com a força poética de sua lira – o que conseguiria desde que não contemplasse o rosto da ninfa, mas no momento de deixar o Hades, ele se volta, olha para trás – a duvidar – e perde aquela que tanto ama.
Aqui, no poema, é Eurídice – e não Orpheu – quem se pronuncia,
quisiera encantarme uma vez más en las melodias
de tu condenada lira
...
cómo sostendré entre mis brazos las dimensiones
de esta sombra que soy
(gostaria de encantar-me outra vez com as melodias
de tua lira condenada
...
como sustentarei entre os meus braços as dimensões
desta sombra que sou)
Voilà! A tensão aí está. Se não conhecemos o objeto da referência – o mito grego – perdemos 90% da imagem (ainda que os 10% que sobrem sejam perfeitamente poéticos) Desculpem-me, o tom contabilista e estatísitco, mas um Poeta Leitor exige muitos dos seus Leitores. Ainda mais quando um poema dialoga com outros. Quem é Höderlin? Quem é Lacan? Quem é Li Po? Quem é Antonio Porchia? Quem é Natalia Litvinova? (Pode soar pedante, mas quem julgaria, p.ex., Borges pedante? O erudito Borges que não apenas citava autores, como também inventava autores!)
Daí, usar o termo 'equilíbrio'. Se as imagens não criassem uma beleza em si mesmas, teríamos tão-somente um poeta beletrista que soaria pedante, enciclopédico, a citar meio mundo de outros literatos. Seria um chato igual ao Pound ou ao Eliot. Iguais aos nossos professores de Literatura. Que falam de Goethe como se fosse o jornaleiro da esquina.
A Escrita enquanto re-Leitura
Em “La Guardia en Elsinor” encontramos o ato ousado de Galarza em se apropriar de cenas de Hamlet é também sua superação. Pois, não se incomoda Shakespeare em vão. H. Bloom que o diga. Pairando no terraço do castelo da nevoenta Elsinore, na Dinamarca, o fantasma de Hamlet pai assombrou (e assombra) miríades de autores – que recriam o tema em tragédia [vide o Hamlet na pele de Laurence Olivier] ou em comédia [vide o “Hamlet em quinze minutos” de T. Stoppard] – mas sempre precisam manter a tensão inicial: há um crime, há um criminoso, e alguém precisa desvelar o crime e punir o criminoso.
O filho precisa vingar a morte do pai, que ainda por cima é um Rei. E o filho hesita, perde-se em filosofias, monológos, futilidades, e nada de agir! Esta tensão – será Hamlet um idiota? Será Hamlet mais sábio que todos nós juntos? Será Hamlet o autor de Shakespeare? [J Joyce adorava brincar com essas questões. Vide “O Retrato do Artista quando Jovem” e “Ulisses”.] Diante do fantasma do próprio pai, Hamlet se perde em meditares funestos. Será obra do demônio? Será mesmo a alma penada do rei assassinado?
vamos. las preguntas nos agobian en el terraplén.
a qué oscuro designio obedece tu presencia?
somos peones de un juego cuyas reglas desconocemos
y nuestro reino es todo el mundo.
habla con tua boca de sepulcros
con tua furia insepulta
porque nuestro amigo está triste y sólo tú tienes las
respuestas
qué há profanado tu descanso?
(vamos. as perguntas nos agoniam no terraço.
a qual obscuro desígnio obedece tua presença?
somos peões de um jogo cujas regras desconhecemos
e nosso reino é todo o mundo.
fale com tua boca de sepulcros
com tua fúria insepulta
porque nosso amigo está triste e somente tu tens as
respostas
o que terá profanado teu descanso?)
O problema de Hamlet filho e Hamlet pai é um problema freudiano, digo, edipiano? Ou um problema metafísico: os mortos interferem na vida dos vivos? Ou sobrenatural: os mortos adoram assombrar os vivos? Ou de comunicação: como podem dois interlocutores em níveis diferentes (um morto, outro vivo) estabelecer alguma co-enunciação?
O problema de comunicação nos interessa aqui. Seja enunciação de imagens ou de palavras, seja interlocução de semânticas ou de corpos. Como assim? Há toda uma problemática do Corpo na comunicação. Gestos, mímicas, sorrisos, lágrimas. O corpo comunica. Somos o corpo e mais do que o corpo. Corpos que hesitam em se aceitar na condição de corpos.
Gestualidade Corporeidade Sensualidade
Corpos que seduzem e fascinam – e são atirados às fogueiras da inquisição (“Salem”). Ou corpos que se distanciam incomunicáveis (“Lejos”, “Distancia Cuerpos Luz”). Ou corpos que precisam do carinho de uma ama (“Nurse”),
ya ama, ten mis drogas prestas
abre la ventana a las tormentas
tiende las constelaciones
pues puedo sedarme en tu palidez
(oh ama no me dejes)
(agora, ama, tenha prontas as minhas pílulas
abra a janela às tormentas
estenda as constelações
pois posso sedar-me em tua palidez
(ó ama, não me abandone))
Os corpos se estranham! A incapacidade de se aceitar enquanto corpo contamina sensações e relações, cria muros de incomunicabilidade. Nem corpos e muito menos 'almas' se entregam ao diálogo. (E pensar que o poeta Manuel Bandeira dizia 'se as almas não se entendem, que ao menos os corpos se entendam'...! “As almas são incomunicáveis. /Deixe o teu corpo entender-se com outro corpo,/ porque os corpos se entendem, as almas não.”, Arte de Amar)
2.
¿aún hablaríamos si supiéramos acariciarnos?
3.
perpetramos contra el sumo poder del silencio
por esta necessidad de hablar los cuerpos acechados
(2.
ainda falaríamos se soubéssemos nos acariciar?
3.
perpetramos contra o sumo poder do silêncio
por esta necessidade de falar os corpos espreitados)
A corporeidade está presente em toda a Obra neste emaranhado de gestos e enunciações, que podem ou não seduzir. Igual a própria poesia que pode fascinar uns e deixar outros na plena indiferença. A presença de um corpo é mais do que a constação de uma 'coisa' – não somos uma coisa! - , é mais que um conjunto de enzimas e hormônios – não somos enzimas e hormônios! - mas um universo outro que podemos (ou não) ter acesso. O desejo de posse física no ato sexual nada mais é do que esse 'acesso' ao Outro – desejar e ser desejado.
4.
cuerpo. enigma a descifrar bajo uma amenaza
permanente: la aniquilación
5.
¿qué puede hablar un cuerpo sino violencia e desnudez?
¿qué lo constituye sino fluidos de dulzura e río alguno y
cataclismos?
(4.
corpo. enigma a decifrar sob uma ameaça
permanente: a aniquilação
5.
o que pode falar um corpo senão de violência e nudez?
o que o constitui senão fluidos de doçura de algum rio e
cataclismas?)
É inutil a divisão da Obra Reversión em temáticas estanques – corpo, neogótico, disposição & advento, poemas mínimos – pois a poética não se divide, mas se interpenetra, em reverberações cria e re-cria as temáticas dentro de outras, em interdiscursos – que provam a impossível 'depar-tamentalização' da Poesia. Em Reversión [reversão] podemos ler o final e aí re-encontrar o início, tal o rio que flui em Finnegans Wake, mais próximo da poesia do que da prosa, em seu fluxo circular onde o fim re-vém, reinicia. Em versos e reversos a Poesia apresenta o quão séria é a nossa trajetória de tentativas e vitórias, quedas e redenções, mortes e recomeços.
mar/10